Mobilidade urbana deve ser eficaz para garantir o acesso a diferentes destinos

Mauro Zilbovicius e Mateus Humberto avaliam que é possível compreender a importância da mobilidade urbana por essa ser uma atividade derivada de outros processos

 09/11/2023 - Publicado há 6 meses
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Estudo aponta que a qualidade de vida é diretamente afetada pelo deslocamento urbano na cidade – Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
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Aproximadamente 36% da população nacional passa mais de uma hora no transporte todos os dias para realizar suas atividades cotidianas, de acordo com uma pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Trabalho (CNT). Ainda de acordo com o estudo, metade dessas pessoas declara que a sua qualidade de vida é diretamente afetada — principalmente com relação ao estresse desenvolvido em decorrência desse fator. 

Além disso, a pesquisa revela que o campo profissional dessas pessoas é o mais afetado pelas complicações que envolvem a mobilidade urbana nacional, uma vez que 60% dos entrevistados relataram atrasos no trabalho por problemas no transporte. A partir desses dados, é possível avaliar a importância que a mobilidade urbana apresenta na vida dos indivíduos em diferentes setores. 

Mauro Zilbovicius – Foto: Reprodução/PRO-Poli USP

Mauro Zilbovicius, professor do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica (Poli) da Universidade de São Paulo, explica que os maiores problemas associados à mobilidade urbana podem ser encontrados nas grandes metrópoles nacionais. Assim, cada uma das regiões apresenta uma especificidade, mas, de uma forma geral, um problema sistemático, que é observado em todos os locais, é o fato de as pessoas trabalharem em regiões distantes de onde moram. 

“Para não falar do uso que as pessoas deveriam poder fazer do transporte para outras ocasiões, porque as pessoas não existem só para trabalhar. Elas existem para visitar amigos e parentes, para o lazer, para ir no posto de saúde, entre outras atividades”, explica o especialista. 

Desafios 

Um dos maiores problemas associados a esse debate encontra-se na falta de mobilidade oferecida pelos modais de transporte, ou seja, faltam ônibus, trens, Metrô e outros transportes de média capacidade. Zilbovicius avalia que é necessário um maior número de corredores para os ônibus e a prioridade absoluta ao transporte coletivo, já que ele representa também uma saída aos problemas das mudanças climáticas. 

O professor também avalia a tarifa como um problema. “Em um país como o Brasil, e em São Paulo, uma cidade com todos os contrastes e as desigualdades que existem, os dados mostram que uma parte importante da população não usa o sistema de transporte coletivo porque não pode pagar a passagem”, comenta. 

Atualmente, existem alguns mecanismos que colaboram com a melhora dessa situação, como a existência de vales-transporte, contudo, com o aumento do trabalho informal, grande parte desses recursos não chega a quem mais precisa. Em alguns cenários, a falta de mecanismos para pagar tarifas apresenta-se como um desafio até mesmo para chegar a hospitais e postos de saúde. 

 O professor comenta da possibilidade de implementação de um programa de tarifa zero, como foi feito nas últimas eleições em que, em algumas cidades, as pessoas não pagaram para se locomover por meio do transporte público. 

Bilhete Único é um sistema de bilhetagem eletrônica que unifica, em apenas um sistema, toda a bilhetagem dos meios de transporte, oferecendo desconto ou isenção da tarifa ao se utilizar meios de transporte dentro de um determinado período de tempo – Foto: Tony Winston/Agência Brasília via Agência Brasília/Flickr

 

Zilbovicius nega também a possibilidade de as pessoas utilizarem o transporte público de forma negativa, degradando o patrimônio público ou usando esses recursos à toa — como argumentam aqueles que são contrários à aplicação da tarifa zero —, uma vez que este é utilizado como meio de deslocamento e não como atividade final. 

Mateus Humberto, professor do Departamento de Engenharia de Transportes da Escola Politécnica (Poli) da USP, expõe que as externalidades negativas — custos sociais associados ao deslocamento — estão envolvidas em todo o processo de gestão da mobilidade urbana e são um dos desafios marcantes desse setor. Assim, um dos maiores problemas da mobilidade urbana contemporânea é o constante congestionamento viário, ou seja, a perda de tempo e espaço sofridos como consequência de uma falta de planejamento. 

Qualidade de vida 

As mortes e lesões sofridas no trânsito também se destacam nesse cenário, já que afetam diretamente a qualidade de vida e a saúde populacional. Somados a isso, a poluição do ar e sonora e o consumo de recursos também atrapalham a melhora dessa gestão. Um fenômeno destacado por Humberto é o fato de que o transporte é um meio para acessar oportunidades, ou seja, as pessoas utilizam diferentes modais para chegar à escola, às consultas médicas, ao mercado, entre outros destinos. “A gente costuma falar, na área de transporte, que ele é uma atividade derivada. São raros os casos em que as pessoas saem de bicicleta apenas para andar de bicicleta, caminhar por caminhar, ou mesmo andar de ônibus por andar de ônibus”, comenta. 

Com isso, nota-se que, sem uma mobilidade urbana efetiva, não é possível acessar uma série de oportunidades. A falta de planejamento das últimas décadas, juntamente com a falta de investimentos, o aumento da precarização desse sistema e o valor das tarifas — que não são compatíveis com a qualidade do serviço que é oferecido — colaboram com a fomentação desse cenário. Humberto explica, portanto, que esse não é um problema atual, já que a priorização dos investimentos públicos no transporte rodoviário existe há décadas. 

Privatização 

Recentemente, foi possível observar o desejo da implementação de privatizações e concessões no Estado de São Paulo, com essas ações sendo associadas principalmente às linhas de trem e Metrô. Humberto considera que, nos últimos anos, esse debate deixou de ser técnico ou econômico e tornou-se político, já que há décadas o poder público vem restringindo o seu poder em fazer investimentos efetivos. 

Mateus Humberto – Foto: Arquivo Pessoal

“Essa lógica da privatização ou da concessão de serviços públicos tem sido feita com o  argumento de que o Estado não tem capital ou recursos para promover a expansão da estrutura e uma boa gestão, o que, em partes, é verdade e em partes foi produzido”, analisa o especialista. 

Assim, o professor comenta que, no processo de desestatização, o que está em jogo não é a venda total do patrimônio, fator que não torna esse debate menos importante. A tendência de concessões pode ser observada, portanto, na gestão de diferentes frentes políticas e é uma realidade desde a década de 90. 

No cenário internacional, essas concessões também foram observadas e, de acordo com Humberto, as principais mudanças que seriam observadas nesses ambientes seriam a redução da tarifa para o usuário, o aumento da qualidade do serviço e a redução dos subsídios governamentais. Contudo, nota-se que grande parte das empresas desiste de promover esse serviço e as operações voltam a ser realizadas pelo ente privado ou há uma constante renegociação dos contratos. 

Parece haver, dessa forma, uma dificuldade por parte dos entes públicos e privados em admitir a existência de um fracasso em determinados cenários, assim, a concessão, muitas vezes, acaba tendo um efeito contrário ao que era esperado. O processo de privatização apresenta outras dificuldades, como o desafio em fazer diferentes atores cooperarem em uma metrópole complexa como São Paulo e o fato de as empresas que lidam com essas estruturas se organizarem em monopólios e oligopólios. 

Esse fator torna esse debate sensível, já que existem poucas empresas lidando com grandes recursos. Além disso, em alguns locais falta um ente regulador para fiscalizar o processo de funcionamento desses transportes. “As empresas também precisam de subsídios estatais constantes, mesmo que a instituição tenha capital para fazer perfurações, operar e comprar trens”, adiciona Humberto. 

Caminhos

Mauro Zilbovicius complementa ainda que a privatização requer, entre diferentes fatores, um retorno alto e aceitável para a empresa privada, já que esse é um dos fatores que explicam os motivos para essas instituições investirem capital. Além disso, é necessário que exista um risco baixo e o máximo tempo possível da situação de estabilidade. Dessa forma, o professor explica que o funcionamento é prático em alguns locais, como na Linha Amarela do Metrô, porque o subsídio feito pelo Estado é maior que a tarifa paga pelos usuários. 

A Linha Amarela do Metrô é uma das linhas privatizadas da capital paulista – Foto: Reprodução/Marco Aurélio Esparza via Panoramio/Wikimedia Commons/CC 3.0

 

A tarifa parece ser, portanto, o grande problema dessa logística, uma vez que ela é o único mecanismo que permite a privatização e também a ferramenta que muitas vezes inviabiliza o cidadão de utilizar esse serviço. “O Estado deve oferecer água, esgoto, transporte público, segurança, educação e saúde. Essas coisas não podem ser privatizadas”, afirma o especialista. 

O professor destaca que, se a política de tarifa zero fosse implementada, seria esperado que a demanda aumentasse. Por isso, seria também importante uma melhora real desse sistema, com um aumento dos corredores, a implementação da prioridade ao ônibus e o aumento das tecnologias associadas a esse processo. “O direito de ir e vir só é um direito se você não paga por ele, se você tem que pagar, para exercer um direito, ele não existe”, afirma Zilbovicius. 

Mateus Humberto avalia que esse tema levanta a discussão de um aspecto fundamental no setor de transportes: a separação entre custo de operação e a forma como a tarifa é repassada para o usuário final. “O custo de uma linha de ônibus não está associado a quantas pessoas ele carrega. Um ônibus custa mais ou menos igual com motorista, combustível e manutenção de pneu se ele carrega uma ou se ele carrega cem pessoas”, comenta. 

Para avaliar a funcionalidade efetiva das concessões, o especialista declara a necessidade de acesso a dados que possibilitem uma análise comparativa sobre a operação desses serviços — ação que pode ser realizada com a ajuda de centros de pesquisa e universidades. 

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira


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