Existe ética na mentira?

Segundo o professor Renato Janine, não existe um dever absoluto de dizer a verdade, especialmente quando esta pode servir a um criminoso ou diz respeito à questões íntimas

 19/07/2023 - Publicado há 10 meses

 

Vamos começar com a regra geral: mentira é uma infração à confiança recíproca. Então, se nós queremos ter uma sociedade em que as pessoas confiem umas nas outras, é importante a gente não mentir. Esse é o princípio básico. Agora, mentir não é obrigação universal. Eu não tenho essa obrigação, por exemplo, em relação a um criminoso que chegar para mim e perguntar onde está a pessoa que ele quer matar, roubar ou até estuprar. Eu não tenho obrigação nenhuma de dizer para ele onde está. Na verdade, do ponto de vista ético, eu devo proteger essa pessoa que é o alvo dele.
O interessante é que essa foi uma discussão importante no século 18. O grande filósofo Emanuel Kant, um dos principais filósofos da história humana, argumentou que em hipótese alguma você deve mentir. É uma discussão mais complexa, mas chega aí, e justamente pela confiança que deve haver entre os membros de uma mesma sociedade. Um pensador do tempo dele, Benjamin Constant, nascido na Suíça, pensador francês liberal, muito ativo no final do século 18, começo do século 19, retrucou: “E o que eu vou fazer se um criminoso quer saber onde está a possível vítima dele? Eu devo dizer a verdade? Porque se eu disser a verdade, eu estou colocando essa pessoa à mercê dele”. E ele começa a responder e se enrola.
É  interessante porque quando eu li essa passagem do Kant fiquei chocado. Ele diz que nós devemos dizer a verdade em todos os casos. É uma resposta quase burocrática, como se fosse o culpado pelo assalto, assassinato ou estupro fosse o assaltante, o assassino ou estuprador, mas não a pessoa que disse a verdade. É uma visão burocrática: “Eu só respondo pelo que eu fiz”. E aí ele engata numa explicação, que é mais absurda ainda. Ele diz: “Bom, se eu disser que a vítima foi pela direita, quando ela na verdade foi para a esquerda, mas se depois que sair da minha vista a vítima virar para o lado que eu disse que ela não foi, será que dessa forma eu terei causado esse crime? Então, não devo mentir em hipótese alguma”.

Essa discussão é importante, é longa etc. É curioso porque, como Kant é filósofo muito respeitado nos departamentos de filosofia, inclusive no meu na USP, é muito difícil alguém ter coragem de criticá-lo. Eu já vi comentários em que os comentadores se viram de tudo que é jeito para defender o indefensável, que é essa tese do Kant de que eu devo ser cúmplice na prática do assassinato, do roubo, do estupro como mencionado. É interessante que Umberto Eco tem um artigo em que ele desmonta a tese. Ele fala que Kant estava num dia ruim para dizer essa bobagem gigantesca. Talvez uma boa saída seja uma leitura que é feita por um colega nosso, professor Yves de La Taille, do Instituto de Psicologia da USP, que diz que a obrigação de dizer a verdade não é universal, é obrigação relacional. Quando é relacional, ela se torna num certo sentido relativa. A quem eu tenho obrigação de dizer a verdade? Eu tenho obrigação de dizer a verdade a pessoas honestas, a pessoas que não vão fazer uma chantagem, não vão cometer um crime etc. E vamos até citar um caso mais específico. Há alguns anos, o presidente Bill Clinton, dos Estados Unidos, foi processado por um adultério que ele cometeu com uma estagiária na Casa Branca e houve toda uma questão. Tentaram até mesmo fazer o impeachment, porque ele mentiu sobre esse  relacionamento. É interessante porque ninguém tem o direito de saber com quem Clinton manteve relações ou não, a não ser a mulher e talvez a filha dele. Outras pessoas,  eu, você, não é da nossa conta e esse ponto é muito importante. Nós não temos o direito de chegar para qualquer pessoa e cobrar dela informações sobre assunto que não é da nossa conta, sobre as quais não temos direito. E o caso mais grave, efetivamente, é quando se trata de um criminoso querendo, com base nessas informações, cometer um crime.


Ética e Política
A coluna Ética e Política, com o professor Renato Janine Ribeiro, vai ao ar quinzenalmente, quarta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9) e também no Youtube, com produção da Rádio USP,  Jornal da USP e TV USP.

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