Apesar de contar com um ambiente político sempre bastante agitado, a Argentina tem se caracterizado, desde a redemocratização do país, em 1983, por um quadro de bipolaridade. Opõem-se, tradicionalmente, especialmente nas eleições presidenciais, o peronismo e o liberalismo. Esses dois polos não são coesos, cada um deles contando com diversas vertentes e facções, mas, ao fim e ao cabo, é a contraposição entre eles que marca cada eleição presidencial.
Com o presidente Alberto Fernández, os peronistas estão atualmente no poder, podendo ser associados a um perfil social-democrata, em que sobressaem a defesa de uma presença maior do Estado na economia e o amplo financiamento de políticas sociais. Já a atual oposição, que tem nas suas fileiras o presidente anterior, Mauricio Macri, possui um perfil liberal na economia, preconizando menor intervenção do Estado, e é mais conservadora em matéria de costumes. Esse cenário reproduz, de certa forma, o padrão de bipolaridade europeu ou norte-americano.
A novidade na eleição presidencial deste ano é que esse quadro político pode sofrer uma alteração radical, o que se daria pela primeira vez após 40 anos. Por isso mesmo, a atual disputa política está despertando muita atenção. O candidato peronista é o atual ministro da Economia, Sergio Massa. E a candidata liberal é Patricia Bullrich, que foi ministra de Segurança no governo anterior. A grande novidade é o surgimento de uma terceira via, representada pelo deputado Javier Milei, que lidera as pesquisas. Sua vitória, se ocorrer, acabará com a habitual oscilação pendular da política argentina.
O primeiro turno da eleição será em 22 de outubro. Se houver necessidade de um segundo turno, os dois candidatos mais votados no primeiro turno farão a disputa em 19 de novembro. Por mais que peronistas e antiperonistas venham se enfrentando eleitoralmente ao longo dos anos, tem havido um amplo consenso político na Argentina em torno da defesa e promoção da democracia, do Estado de Direito e dos direitos humanos. Javier Milei representa a ruptura desse consenso. Declarando-se um candidato antipolítico revela seu apreço pela ditadura que existiu naquele país antes de 1983, sendo um negacionista feroz da repressão política que houve no período dos governos militares.
Sem deixar de reconhecer as diferenças evidentes entre os dois países, pode-se dizer que Milei representa na eleição deste ano, na Argentina, o que Bolsonaro representou na eleição presidencial brasileira de 2018, quando, declarando-se contrário à política tradicional, rompeu com a polarização entre PT e PSDB. E, ao vencer, Bolsonaro instaurou um período de horror, que teve nos mais de 600 mil mortos pela covid a expressão mais emblemática de seu descaso pelos direitos dos seres humanos. Portanto, a eleição presidencial argentina deve ser acompanhada de perto e com muita atenção. Não só pelo que poderá significar de retrocesso naquele país, mas pelo impacto negativo que poderá ter em toda a América Latina, inclusive no Brasil.
Globalização e Cidadania
A coluna Globalização e Cidadania, com o professor Pedro Dallari, vai ao ar quinzenalmente, quarta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9) e também no Youtube, com produção da Rádio USP, Jornal da USP e TV USP.
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