Os veículos públicos de comunicação nos Estados Unidos são regidos pela Lei de Radiodifusão Pública de 1967, aprovada durante o governo do presidente Lyndon Johnson. A história da radiodifusão pública norte-americana, no entanto, começou antes disso. As primeiras emissoras educativas de rádio datam dos anos 1920.
Nos anos 1940, parte do espectro eletromagnético da FM foi reservada para emissoras educativas de rádio. Na década seguinte, a televisão pública também teve espaço assegurado entre os canais comerciais.
A professora Patricia Aufderheide contou durante a entrevista que havia uma profunda insatisfação com o ambiente da televisão comercial dos Estados Unidos nos anos que antecederam a aprovação da Lei de Radiodifusão Pública. Naquele momento, os canais educativos em funcionamento tinham baixo orçamento e muitos transmitiam professores escrevendo em um quadro negro.
Grandes instituições filantrópicas privadas como a Fundação Ford e a Corporação Carnegie de Nova York apoiavam a proposta de uma radiodifusão pública bem financiada e que pudesse fornecer informação de qualidade e programação educativa ao público norte-americano.
“A radiodifusão comercial tinha acabado de passar por uma série de escândalos. As atrações mais populares eram programas de perguntas para as pessoas adivinharem a resposta certa. Mas acontece que eles eram – o que pode soar como um grande choque – manipulados. Havia talvez 15 minutos de noticiário na programação à noite”, conta a professora da American University.
Em 1961, o então presidente da Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos (FCC, na sigla em inglês), Newton Minow, chamou o ambiente da radiodifusão comercial dos Estados Unidos de uma “imensa terra devastada”.
As redes comerciais de televisão com transmissão para todo o país estavam estabelecidas àquela altura. As redes vendiam publicidade nacional e forneciam programação para os canais privados locais. “Essas redes comerciais estavam interessadas em obter uma grande audiência com uma programação voltada para atrair o maior número possível de telespectadores. E pessoas preocupadas com a democracia pensavam: ‘como as pessoas vão ficar sabendo das coisas?'”, descreve a professora Patricia.
Nesse contexto em que canais públicos sofriam com escassez de recursos e os canais comerciais recebiam diversas críticas, a Corporação Carnegie de Nova York estabeleceu a Comissão Carnegie para estudar as demandas das emissoras educativas em 1965. O relatório da Comissão Carnegie apresentou uma lista de recomendações para a radiodifusão pública e lançou as bases para a Lei de Radiodifusão Pública de 1967. No entanto, nem todas as propostas da comissão foram incorporadas à legislação.
“Acontece que passar pelo processo político, negociar com diferentes partidos políticos, os militares e todos esses interesses diferentes muda bastante o arranjo”, disse a professora Patricia. Para a pesquisadora da American University, a Lei de Radiodifusão Pública de 1967 criou um conjunto descentralizado de organizações e não exatamente um sistema público de radiodifusão.
“Este é um sistema que não é um sistema. Às vezes as pessoas falam ‘sistema público de radiodifusão’. Não é. É um serviço para as estações. Não existe sistema. A radiodifusão pública [dos Estados Unidos] é uma ecologia. É um ambiente”, argumenta.
Inicialmente, o projeto de lei da radiodifusão pública tratava apenas dos canais públicos de televisão e tinha o nome de Public Television Act. Autores do livro This is NPR contam que as palavras “and radio” (e rádio, em português) foram datilografadas repetidas vezes, cortadas com tesoura e coladas nas páginas da proposta durante uma noite de inverno de 1967, antes do projeto sair da Casa Branca e seguir para o Congresso. O título da lei foi então modificado para Public Broadcasting Act (Lei de Radiodifusão Pública). A palavra radiodifusão incorpora a tecnologia de rádio e de televisão com transmissão por ondas eletromagnéticas. A inclusão do rádio na legislação foi resultado de um intenso lobby de emissoras de rádio nos bastidores da política de Washington. A professora Patricia também comentou sobre a incorporação do rádio na legislação.
“O rádio entra sorrateiramente no final, embora acabe sendo o campeão da história. Mas todo mundo estava pensando na televisão assim: ‘rádio, coisa velha. Televisão, coisa nova e brilhante’”, descreveu a professora.
Quando chegou ao Congresso norte-americano, a proposta de lei sofreu mudanças relevantes. O formato de financiamento recomendado pela Comissão Carnegie era de um endowment, uma forma de investimento pouco comum no Brasil, que garantiria recursos de longo prazo para as instituições sem que precisassem recorrer ao orçamento federal anualmente. O endowment é um fundo patrimonial que rende recursos que são revertidos para a própria instituição.
Diferentemente do que propunha a Comissão Carnegie, os congressistas norte-americanos escreveram na lei que as emissoras públicas de rádio e de televisão devem ser financiadas por dotações orçamentárias anuais, o que obriga que os recursos sejam aprovados periodicamente pelo Congresso.
Outra mudança feita pelos legisladores norte-americanos que contradiz as recomendações da Comissão Carnegie foi a de impedir que a corporação que recebe as dotações orçamentárias e distribui os recursos para as emissoras públicas locais pudesse interconectar as emissoras públicas em rede, como era prática nos canais comerciais.
A instituição criada com a Lei de Radiodifusão Pública foi a Corporation for Public Broadcasting (CPB), que tem um conselho de administração formado por 8 membros, indicados pelo presidente dos Estados Unidos e aprovados pelo Senado. O conselho tem sempre quatro indicados do Partido Republicano e quatro do Partido Democrata. O presidente é eleito pelo próprio conselho.
A CPB recebe os recursos do orçamento federal norte-americano destinados à radiodifusão pública e os repassa para as emissoras públicas locais de rádio e de televisão. A dotação orçamentária para a CPB prevista no ano fiscal de 2024 é US$ 525 milhões, o equivalente a mais de R$ 2,5 bilhões.
Além da verba de orçamento federal, que geralmente representa entre 10% e 15% do orçamento das instituições, as emissoras públicas norte-americanas dependem de doações de fundações privadas, ouvintes e telespectadores. Alguns canais recebem também recursos de impostos locais e estaduais, o que difere de acordo com a legislação local. Os canais públicos não transmitem publicidade, mas podem vincular o nome de empresas privadas patrocinadoras de programas em formato de apoio institucional ou cultural.
Periodicamente, as emissoras públicas fazem campanhas de arrecadação de fundos de ouvintes e telespectadores. Para a professora Patricia Aufderheide, o método utilizado para arrecadar recursos através de doações “é exaustivo para todos, mas é assim que as estações locais se mantêm”.
Em 1969, emissoras públicas de televisão formaram a Public Broadcasting Service (PBS). A PBS interconecta as emissoras e distribui programação para a rede. Atualmente cerca de 350 emissoras públicas de televisão compõem a PBS, uma organização privada sem fins lucrativos gerida por um conselho de administração e mantida com o dinheiro de taxas pagas pelas emissoras locais associadas para transmitir a programação da rede. A PBS também recebe doações de telespectadores, empresas e de fundações privadas.
O conselho de administração da PBS é composto de 27 integrantes: 14 diretores de emissoras públicas locais, 12 diretores gerais e um presidente, eleito pelo próprio conselho. Por 21 anos consecutivos, a PBS tem sido apontada em pesquisas nacionais como a marca mais confiável dos Estados Unidos. A programação infantil da PBS Kids e programas de documentários como Frontline estão entre as principais referências da televisão pública norte-americana.
A PBS transmite desde 1969 a série infantil Sesame Street. O programa ganhou uma adaptação no Brasil nos anos 1970 com o nome de Vila Sésamo e era transmitido pela TV Cultura e pela TV Globo. Em 2007, uma nova adaptação foi lançada para o público brasileiro.
Em 1970, a rede de rádios públicas National Public Radio (NPR) foi fundada para fornecer programas para as emissoras. A NPR produz e distribui programação nacionalmente. Mais de duzentas emissoras públicas de rádio compõem a NPR atualmente. A NPR é uma organização de mídia independente, sem fins lucrativos, gerida por um conselho de administração composto de 23 membros: 12 diretores de emissoras locais, nove diretores, o presidente da Fundação NPR e o diretor-presidente da NPR, que é escolhido pelo conselho.
Como a PBS, também a NPR detém uma marca bem avaliada pelo público norte-americano. A professora da American University conta que, se somadas as audiências dos noticiários All Things Considered e Morning Edition da NPR, o alcance é o mesmo do programa do apresentador Sean Hannity na rede comercial Fox News.
Ao longo dos anos, outros serviços provedores de programação surgiram tanto para o rádio quanto para a televisão. Entre as instituições que produzem e distribuem programas estão: Public Radio Exchange (PRX), Public Radio International (PRI), American Public Television (APT) e The National Educational Telecommunications Association (Neta).
Nos anos 1970, o então presidente Richard Nixon tentou, mas não conseguiu, acabar com o financiamento federal concedido para as emissoras públicas locais norte-americanas. A tentativa de enfraquecer a radiodifusão pública não foi adiante, mas a iniciativa deixou presente no imaginário de dirigentes de emissoras públicas locais a percepção de que pode ser “perigoso transmitir programas sobre qualquer coisa que tenha a ver com notícias ou com temas de interesse público”, afirmou a professora da American University.
Apesar de pressões políticas, a radiodifusão pública dos Estados Unidos foi capaz de contribuir significativamente para o debate público em diversos momentos. Uma dessas situações foi durante as audiências do escândalo de Watergate. A NPR e a PBS transmitiram os depoimentos sem interrupções. “Há muito da história da radiodifusão pública dos Estados Unidos que tem a ver com as pessoas reconhecendo que esse é um recurso valioso para a democracia”, afirmou a professora.
“A radiodifusão pública pode desempenhar um papel crucial sendo um recurso comunitário em nível local, uma fonte confiável de notícias nacionais e fornecendo modelos de como ter conversas civilizadas em um momento em que há muitas forças promovendo ativamente a dissidência, a polarização, a noção de que você está em batalha e sob ataque e ameaça”, argumenta a professora Patricia. Ela acrescenta ainda que a realidade é que a sociedade enfrenta diversas crises: “Estamos enfrentando uma crise ambiental, uma crise política e uma crise de confiança. E as soluções para isso são comunidades mais fortes, nas quais as pessoas têm mais autonomia para construir melhores maneiras de viver juntas”.
Durante a entrevista, a pesquisadora Patricia Aufderheide falou também sobre os desafios da radiodifusão pública no contexto do ecossistema midiático digital. O programa está disponível em formato de podcast.