O compositor santista Gilberto Mendes - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Gilberto Mendes compõe a infinitude. E alça voos “entre temperos e gostos”

Centenário do compositor é lembrado com extensa programação musical e cultural em Santos, com participação de professores da USP

 07/10/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 10/10/2022 as 11:51

Texto: Leila Kiyomura

Arte: Guilherme Castro

Quando um urubu solitário pousou na janela da cozinha para cobiçar o almoço do compositor Gilberto Mendes, ele não poderia imaginar que voaria tão alto. Bastou uma mordida no peixe que estava sobre a pia para o menos inspirador de todos os pássaros cair na pauta e virar a sonata Seul Un Urubu Solitaire. A música, dedicada ao solista e maestro Yuri Serov, foi apresentada num festival de canções sobre pássaros em São Petersburgo. E ganhou asas pousando em vários países.

Contada ao Jornal da USP em junho de 2013, essa é uma das inúmeras histórias transformadas em composições por Gilberto Mendes, que era professor do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Notas e pausas iluminadas pela criatividade que continuam a ser partilhadas entre as novas gerações de músicos. Um legado infinito do compositor, que, no ano do seu centenário, está sendo homenageado pela cidade de Santos, no litoral paulista, onde ele nasceu, em 13 de outubro de 1922, e viveu até sua morte, em 1º de janeiro de 2016.

A programação do Centenário Gilberto Mendes, realizada pela Secretaria Municipal de Cultura de Santos, começa nesta sexta-feira, dia 7, com atrações musicais, cinematográficas e literárias. E se estende até o dia 16, feita especialmente por amigos, professores, pianistas e compositores que preservam e divulgam a sua obra como referência.

O evento contará com apresentações do pianista José Eduardo Martins, também professor da ECA, e do compositor, maestro e pianista Rubens Russomanno Ricciardi, professor do Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP.  Estarão presentes Arrigo Barnabé, Júlio Medaglia, André Mehmari, Livio Tragtenberg, Luís Gustavo Petri e Márcio Barreto, entre outros músicos. Importante também a programação literária, com o lançamento dos livros Gilberto Mendes, Notas Bibliográficas, do poeta Flávio Viegas Amoreira, com prefácio de José Eduardo Martins, e Poéticas do Agora, organizado por Márcio Barreto, com artigos sobre Gilberto Mendes e o Festival Música Nova. 

“Não se ensina composição propriamente dita, porque cada aluno deve desenvolver por si próprio seu espírito inventivo e seu métier de compositor. Mas podemos instigar o pensamento crítico, estimulando-o a alçar voos nas possibilidades do gosto e seus temperos, em meio às linguagens musicais.” (Gilberto Mendes)

Rubens Ricciardi e Gilberto Mendes em Uffenheim, Alemanha, em 1994 - Foto:

Os cem anos de Gilberto Mendes contam com a homenagem de um pianista que o conheceu ainda muito jovem. Quando entrar no Teatro Guarany de Santos, no dia 16, às 19 horas, para apresentar canções do mestre, Rubens Ricciardi vai expressar o convívio de décadas como aluno e amigo. “Ele repetia uma frase que marcou a minha trajetória e a de muitos estudiosos. Dizia: ‘Não se ensina composição propriamente dita, porque cada aluno deve desenvolver por si próprio seu espírito inventivo e seu métier de compositor. Mas nós, professores, podemos pelo menos instigar o pensamento crítico, estimulando-o a alçar voos nas possibilidades do gosto e seus temperos, em meio às linguagens musicais’.”

A lição de Gilberto Mendes está no cotidiano “com gosto e temperos” de Ricciardi. “Neste centenário de Gilberto Mendes, quando já contamos com um maior distanciamento crítico em relação à sua obra, nós nos encontramos, quem sabe, em melhor condição para novas propostas conceituais envolvendo as suas fases poéticas, o que inclui uma reavaliação de seus desdobramentos estilísticos”, acredita. A amizade entre o professor e o aluno continuou por décadas. “Desenvolvemos muitos projetos no Brasil e no exterior. Viajamos muito em turnês, palestras, cursos e concertos. ”

Ricciardi ficou com o legado musical de Gilberto Mendes. Além de divulgar as composições do mestre, ele tem sob sua responsabilidade o Festival Música Nova, um evento anual e internacional de música contemporânea surgido em 1962, em Santos, tendo o compositor santista entre seus fundadores. “Em 2011, foi desejo expresso pelo próprio Gilberto Mendes que, a partir de então, a USP de Ribeirão Preto se tornasse um porto seguro à manutenção do Festival Música Nova, incumbidos que fomos da responsabilidade de conceber e realizar suas novas edições. Contudo, mesmo a partir de 2012, já tendo a USP de Ribeirão Preto como sede do festival, jamais deixamos de não apenas manter vivo o núcleo de Santos, cuja parceria agora se intensifica com a atuação conjunta com Márcio Barreto.”

Entre muitos concertos, Ricciardi lembra um deles, que está no seguinte link do Youtube:

“Certa vez, ao me ouvir tocar o 4º Noturno, de Gabriel Fauré, Gilberto Mendes disse: ‘Daria toda minha obra para ser autor dessa música’. A sua relação com a música e também com a poesia era total.” (José Eduardo Martins)

O pianista José Eduardo Martins também esteve presente no dia a dia de Gilberto Mendes. Muitas histórias para lembrar e tocar. Com essas lembranças, Martins abre a programação musical, nesta sexta-feira, dia 7, às 20 horas, no Teatro Guarany de Santos, apresentando composições de Mendes. 

“Eu o conheci quando apresentei dois recitais no Parque Balneário, em Santos. Estava interpretando a integral para teclado de Jean-Philippe Rameau. Estávamos em 1971 e os encontros foram protocolares. Foi a partir de 1982, quando ingressei na USP, que nosso relacionamento se tornou intenso e perene. Éramos os únicos a almoçar na cantina do departamento, pois levávamos nossas marmitas. Aqueles inesquecíveis momentos eram enriquecidos, por vezes, pela presença de seu ilustre irmão, o saudoso amigo Erasmo Mendes, Professor Emérito do Instituto de Biociências da USP. Gilberto e eu tínhamos um tema constante, a música e seus desdobramentos, criação e interpretação.” 

O compositor em sua casa, em Santos - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Quando algum aluno faltava, Mendes ía até a sala do pianista para ouvi-lo tocar e conversar sobre os processos da criação. “Certa vez, ao me ouvir tocar o 4º Noturno, de Gabriel Fauré, disse: ‘Daria toda minha obra para ser autor desse Noturno’. Despojamento. A sua relação com a música e também com a poesia era total.”

A admiração era mútua. Gilberto Mendes dedicou 30 composições para José Eduardo Martins. “Eu as divido em duas fases. Primeiro, aquelas da década de 1950, que ele guardou em um baú e me apresentou durante um almoço em seu apartamento. Fiquei muito interessado. Mas ele hesitou. Só que, graças à insistência de sua esposa, a dedicadíssima Eliane, Gilberto aquiesceu.”

O pianista começou a ler e tocar a Sonatina à la Mozart. “Gilberto sorriu e disse: ‘Não é que ela é bonita?’. Estava aberta a porta reveladora. Meses depois, durante o Festival Música Nova, interpretei as 20 peças que ‘jaziam’ no baú. Após o recital, Gilberto me entregou um documento a dizer que todas aquelas criações do passado estavam dedicadas ao seu amigo que acabara de apresentá-las.”

Tempos depois, no convívio na USP,  Gilberto Mendes escreveu, em um nova fase, mais dez composições, de 1985 a 2009. “Sempre atendia os seus pedidos para executá-las no Brasil ou no exterior. Além das obras que me dedicou, apresentei inúmeras composições de Gilberto Mendes: Saudades do Parque Balneário, para saxofone e piano, Longhorn, para trompete, trombone e piano, Rimsky, para quarteto de cordas e piano e Concerto para Piano e Orquestra, entre outras.”

José Eduardo Martins e Gilberto Mendes - Foto: Arquivo pessoal

Gilberto Mendes confiava no amigo e sempre o deixou livre na sua interpretação. Martins destaca: “Sua produção foi significativa e abrange muitos gêneros musicais. Ela é plena de sapiência, humor, irreverência por vezes, criatividade que saía pelos poros. Transitou com alegria pelas tendências que adotaria ao longo da existência, academicismo, ensinamentos de Darmstadt, minimalismo e outras mais, a serviço de obras que permanecerão, mercê também de uma teatralidade inerente em cada composição, mesmo que aparentemente oculta“.

O professor sugere: “Recomendo ao leitor ouvir duas composições de Gilberto Mendes que gravei em Sófia, na Bulgária, e Mullem, na Bélgica, respectivamente: Sonatina à la Mozart Estudo, Ex-tudo, Eis tudo pois” . Elas podem ser ouvidas nos links abaixo.

 A programação completa do evento Centenário Gilberto Mendes, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Santos, está disponível neste link:

https://www.santos.sp.gov.br/?q=noticia/atividades-em-santos-celebram-o-centenario-do-genio-gilberto-mendes


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