Postura antropofágica

Por Vahan Agopyan, reitor da USP

 11/11/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 13/11/2019 às 14:53
Vahan Agopyan – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Em 2005, um dirigente da Universidade de Harvard, durante uma entrevista, fez uma declaração sexista que explicitava preconceito contra as pesquisadoras da área de ciências exatas. Ele foi duramente criticado em todos os setores (na época as redes sociais eram era menos influentes), o que resultou no afastamento do cargo que ocupava.

No entanto, que eu tenha conhecimento, nenhum jornalista, acadêmico ou formador de opinião emitiu qualquer crítica à instituição. As críticas eram sempre dirigidas à pessoa física. Uma delas até expressava a insatisfação de que Harvard tivesse um dirigente como aquele. A sociedade respeitou e respeita suas entidades de renome, pois elas contribuem para o fortalecimento de toda a comunidade.

As universidades estaduais paulistas (USP, Unicamp e Unesp), depois da autonomia administrativa e financeira conquistada em 1989, tiveram um desempenho marcante e hoje estão entre as melhores da América Latina.

A USP, em particular, nas últimas avaliações internacionais (QS e Times Higher Education), foi considerada como a melhor universidade da Ibero-América, superando instituições centenárias de Portugal, Espanha e da América Espanhola.

A melhoria dos indicadores das universidades paulistas não foi reflexo apenas da eficiência de suas atividades, com os poucos recursos disponíveis em comparação com as congêneres com desempenho similar, mas se refletiu no aumento da qualidade de sua produção científica. Por qualquer análise cuidadosa, a autonomia resultou em melhor aplicação dos recursos públicos paulistas investidos na educação superior.

O que deveria ser um motivo de orgulho para os brasileiros, na verdade, tornou-se razão para aumentar os ataques às atuações e realizações dessas instituições. As críticas construtivas são sempre muito bem recebidas, pois somente com elas podemos aprimorar o sistema. Por isso, as gestões das três universidades mantêm programas de avaliação, inclusive com a atuação de avaliadores externos.

A preocupação com as críticas infundadas diz respeito ao fato de estas se embasarem em dados parciais ou incompletos, portanto errados, e pela generalização da ação de um único docente, aluno ou funcionário, buscando, com isso, denegrir a imagem de toda a instituição, sem comprovação alguma. Os exemplos a seguir apresentados são apenas ilustrativos e não necessariamente foram os mais prejudiciais nos últimos tempos.

No início de 2019, as universidades paulistas foram surpreendidas com a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa. O objeto formal da CPI era bem agressivo: “investigar irregularidades na gestão das universidades”. O relatório final da comissão não apontou qualquer situação comprometedora. Fez menção a casos administrativos pontuais, que facilmente puderam ser esclarecidos, muitos dos quais resultantes da falta de familiaridade com o funcionamento da estrutura universitária.

As administrações das universidades tiveram muito trabalho durante todo o processo, mais pelo volume de informações do que pela dificuldade em responder aos questionamentos dos deputados.

Constatamos que temos que melhorar na comunicação das atividades das universidades públicas com o parlamento paulista e, consequentemente, com a população. Temos que explicar e divulgar mais e melhor o que fazemos e a nossa importância para a sociedade.

As universidades têm a obrigação de fornecer toda a informação solicitada pelos parlamentares e assim o fazem rotineiramente, não havendo a necessidade de se criar o ambiente inquisitório de uma CPI para isso. Importante destacar que a maioria das informações solicitadas está disponível nos sites das instituições.

Outra situação ocorreu na última semana de outubro, também na Assembleia Legislativa. Foi feita uma denúncia de que a prova de seleção para um curso de especialização, oferecido pela USP na modalidade a distância, tinha perguntas ideologicamente tendenciosas. Não se tratava, portanto, de um curso formal de graduação ou de pós-graduação.

A USP tem quase seis mil docentes, que devem elaborar cerca de 5.000 provas por semestre. A faculdade onde isto ocorreu imediatamente cancelou a prova e instalou uma sindicância. Apesar de a grande imprensa ter sido cautelosa e sempre ter divulgado o caso ouvindo a opinião da Universidade, nas redes sociais os comentários foram os mais agressivos possíveis contra a USP.

Como reitor, recebi mais de 100 mensagens, quase todas criticando a Universidade e algumas ofendendo e ameaçando a USP. Lamentavelmente, 30 delas foram de docentes, alguns aposentados, de universidades públicas, inclusive das três estaduais paulistas, que conhecem bem o ambiente e os procedimentos, mas mesmo assim não se furtaram em atacar a instituição.

Este fato acabou me fazendo lembrar os comentários que, em um jantar, há mais de dez anos, o ilustre engenheiro Ozires Silva fez sobre a conduta dos brasileiros. Ele afirmou que não gostamos dos que se destacam e sempre que possível os atacamos, sejam pessoas ou entidades, mas gostamos e temos compaixão com os perdedores. Na época ele comparou o nosso comportamento como antropofágico com os vencedores, tão bem abordado artisticamente por Oswald de Andrade e seus companheiros. Hoje talvez eu fizesse referência à autofagia, bem descrita por Mário de Andrade em Macunaíma.


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