estudantes da USP vindos das periferias têm suas trajetórias contadas em vídeos

Em série de vídeos desenvolvida por grupo de pesquisa do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, participantes reforçam a ideia de que a cabeça pensa onde os pés pisam

 31/10/2022 - Publicado há 2 anos

Autor: Danilo Queiroz

Arte: Ana Júlia Maciel

Já percebeu que a maioria das vezes que a mídia se refere às favelas e periferias urbanas costuma ser carregado de representações e estigmas que dificultam uma compreensão ampla da realidade social das populações que ali vivem? Infelizmente, essa é uma narrativa, ainda latente, que a comunicação desenvolve em nosso País. Essas visões distorcidas podem direcionar, de maneira imprecisa, as políticas públicas e os investimentos privados nestes espaços. 

Nas universidades, esse sintoma também existe com frequência. Costumeiramente associamos as produções científicas no Brasil às instituições públicas. É um fato. Mas será que a ciência tem desejado se aproximar dos espaços e das vivências dos pesquisadores? Vem amplificando a ideia de que a cabeça pensa onde os pés pisam e popularizado suas contribuições acadêmicas à sociedade?

Esse é o questionamento formulado pelo nPeriferias, grupo de pesquisa das periferias do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, desde sua criação, em 2019. Como o próprio nome do projeto carrega, é preciso compreender que não há somente uma ideia única de periferia, mas há inúmeras narrativas que permeiam os becos do Brasil. O grupo atua apresentando que as periferias devem ir além dos objetos de estudos e, para isso, é preciso dar voz às pessoas que estão inseridas ali. O nPeriferias atua não só pelas redes sociais de internet, como também pelo canal de Youtube do projeto. 

Visando a possibilitar uma comunicação transparente, livre de cegueiras e imprecisões, as organizadoras do projeto acreditam que é preciso extrapolar a noção dos espaços geográficos que esses grupos ocupam e desenvolver conexões com esses ambientes e os sujeitos que ali habitam ao difundir, nas mídias sociais, resultados de pesquisas, atividades e produtos realizados pelos pesquisadores do projeto, popularizando tais conhecimentos. Os participantes do projeto são estudantes de graduação ou pós-graduação da USP e estão inseridos no grupo por meio do Programa Unificados de Bolsas (PUB). 

Para Erika dos Santos, estudante de Fisioterapia da Faculdade de Fonoaudiologia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (Fofito) da USP e participante do projeto, é possível utilizar os mecanismos acadêmicos e institucionais da Universidade para expandir a discussão colocando a periferia como principal articuladora do debate. Para ela, o grupo atua trazendo e inserindo pessoas periféricas ao mostrar suas pluralidades e atuações dentro e fora da Universidade, rompendo com a lógica de homogeneização que é direcionada socialmente às pessoas periféricas.

Erika dos Santos - Foto: Arquivo Pessoal

Ativismo periférico

Esse faz parte de um dos objetivos do grupo, que visa a constituir um espaço de formação de intelectuais, lideranças e pesquisadores das periferias. Atualmente uma das atuações do nPeriferias é a série de vídeos Vida de Estudante Periférico, que discute desde as dificuldades desses estudantes ao ingressarem na USP, como a defasagem educacional do ensino básico e público, a permanência estudantil, os desafios em conciliar trabalho e estudo, até questões de adaptação ao espaço universitário que, em certas ocasiões, não é receptivo a quem tem sua origem na favela.

Assim, esses relatos tornam-se não só ferramentas para que as pessoas que estão na fase de pré-vestibular, sobretudo em situação de vulnerabilidade social, possam enxergar nesses estudantes pessoas de referência, como também atua servindo como um canal de escuta para os próprios participantes do projeto e discentes periféricos da Universidade.

De acordo com Fagner de Sousa, estudante de Lazer e Turismo da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e atuante na frente de comunicação e mídias sociais do nPeriferias, a ideia da série surgiu com o desejo de passar a discutir as problemáticas e limitações envolvidas em ser um sujeito periférico dentro da USP, oferecendo um espaço de fala para que externalizem suas dificuldades, vitórias e vivências.

Ele não acredita em discursos que, hoje, estão sendo popularizados na mídia, como “a favela venceu”, pois apenas solapam as reais condições desses espaços. “Eu discordo deste pensamento, pois em minha opinião, ‘a favela vencer’ é respectivo às conquistas que abarcam as favelas como um todo, é sobre vencer individualmente e aplicar esse sucesso (ou a própria correria) ao território, principalmente em retorno de conhecimento”, diz.

Morador de favela há 20 anos, Fagner ressalta que é possível pensar sobre a falta de equipamentos de lazer para as favelas e periferias, que se relaciona com o lazer e dialoga com a cultura, a arte, os esportes e até mesmo o ócio, que é de extrema importância para o desenvolvimento criativo, intelectual e produtivo das pessoas que habitam esses territórios - Foto: Arquivo Pessoal
moradores de comunidades afetadas pela violência policial apresentam maiores chances de desenvolverem diferentes doenças —  como hipertensão, insônia, ansiedade e depressão -

A série, que é desenvolvida principalmente por estudantes de graduação e pós-graduação que compõem o projeto, é coordenada por Gislene Santos e visa desenvolver ações nos espaços virtuais amplificando o protagonismo nos becos e vielas por meio do ativismo digital e a educação marginal. Ela afirma ao Jornal da USP que é preciso se distanciar dessa ideia que separa o que há entre “nós”, comunidade universitária, e “eles”, comunidade externa.

A pesquisadora e professora da EACH ressalta que após a inserção da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), é preciso que a Universidade passe a investir em estudantes tão criativos, com trajetórias de vida tão distintas e que têm tanto a oferecer para a USP, um espaço melhor, inclusive respeitoso e que estime seus alunos negros, negras e pobres que vieram de diferentes regiões socialmente vulneráveis de São Paulo e do País. 

Ela também pontua a riqueza de saberes que há nas periferias e que poderiam ser muito bem aproveitados se aliados à academia, de forma mais humana e compartilhada, tornando esses espaços não análises estatísticas, mas pessoas com potencial de transformação sociopolítica. “Nós sabemos que as periferias são potentes, criativas, ricas em ideias e conhecimentos que não são valorizados, na maioria das vezes, pela academia. A academia vai à periferia em busca de dados para nutrir pesquisas e essa perspectiva torna quem vive lá objetos para a investigação e não sujeitos que têm um conhecimento importante a compartilhar”, diz.

“Estudantes da USP que vêm das periferias trazem esses saberes que nos ajudam a transformar a Universidade a partir de uma lógica nova que é a de ouvir, aprender com aqueles que, antes, eram tratados e considerados nossos objetivos de pesquisa."

Por isso, o projeto estimula, sobretudo, uma comunicação que preza em ouvir os participantes do grupo de pesquisa. Tornando-os não só ativos nesse processo, mas também reconhecendo que suas trajetórias de vida podem ser ouvidas e aliadas à academia. Gislene, que também é uma das coordenadoras do nPeriferias, acredita que ao ouvir esses jovens se conhece e se compartilha o mundo nos quais vivem e o que produzem em termos de cultura, de saberes, de articulações sociais e políticas, quando têm pouco ou quase nenhum investimento dos poderes públicos para estabelecer esse comportamento.

O grupo decidiu investir na comunicação com a comunidade oriunda das periferias, dentro da USP, utilizando uma linguagem que os jovens valorizam e que permite alcançar mais pessoas de um modo direto, envolvendo a comunidade de estudantes, mas também, trazendo para a Universidade o que esses jovens vivenciam em suas comunidades nas periferias por meio de suas referências nesses locais. 

Gislene Santos é professora associada da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), docente do curso de Gestão de Políticas Públicas e do Programa de Pós-graduação em Direito - Foto: Acervo pessoal

Gislene percebe o quanto os estudantes gostam das atividades desenvolvidas pelo nPeriferias e o tanto que se dedicam porque sabem que esse espaço é uma oportunidade para trazer para a Universidade tudo aquilo que eles valorizam e que é desprezado pela academia. Ela destaca o quanto isso “é uma oportunidade de que falem com pessoas como eles, que criem redes e que mostrem a potência criativa que eles têm e que os lugares de onde eles vêm também.”

Periferia protagonista

Hoje, os conteúdos produzidos se concentram em debater o protagonismo de pesquisadores, produtores culturais e ativistas periféricos, como também suas trajetórias. Os programas que atualmente são produzidos e estão disponibilizados nas mídias são: Voz Ativa, Dicas Para ingressantes na USP, Divulgação da Agenda Cultural e Vida de Estudante Periférico.

A proposta do nPeriferias em suas frentes de atuação se concentra em aliar os conhecimentos produzidos pelos participantes às atividades acadêmicas, não se restringindo a esses espaços. Para Nicolli de Sousa, estudante de Gestão Ambiental da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), é preciso salientar a responsabilidade que os estudantes possuem de devolver o conhecimento que adquirem aos seus locais de origem quando ingressam na Universidade.

Atualmente moradora do Jardim Keralux, bairro vizinho da EACH, Nicolli atua no projeto na área de comunicação, e relata que decidiu ingressar no nPeriferias por conta da bolsa concedida, pois considera que o valor, não só acadêmico, mas financeiro contribui para sua permanência dentro da Universidade. 

Ela pontua que a comunicação é o pontapé inicial para trazer um olhar livre de estigmas e preconceitos às periferias. E o grupo vem desenvolvendo isso com a série de vídeos que estão produzindo, sobretudo, Vida de Estudante Periférico, que permite que o estudante se expresse e possa fazer desse espaço um ambiente de escuta e troca de saberes com a Universidade, amplificando o protagonismo e a informação nas vielas do País.

“Eu venho de escola pública e cursinho popular. Até meus 17 anos, eu não sabia da existência de universidades públicas e gratuitas. Com frequência eu via o nome USP aparecer em reportagens na televisão, e imaginava que por ser uma instituição tão renomada se tratava de uma universidade privada, com uma mensalidade extremamente cara.”

Nicolli de Sousa - Foto: Arquivo Pessoal

Foi apenas naquele cursinho na cidade em que nasceu, Jandira, que graças aos professores Nicolli passou a enxergar e conhecer um novo mundo, distinto daquele em que vivia e constantemente era associado a uma visão distorcida. “Eram espaços de ensino público que poderiam ser ocupados por mim e meus colegas de classe. Não saber que é possível cursar o ensino superior de forma gratuita não é algo que se restringia somente a mim. Diversos outros alunos do meu cursinho não sabiam sobre as universidades estaduais e federais por um simples motivo: nós não vemos os nossos ocupar esses espaços”, ela diz.

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Nicolli, hoje, passou a enxergar que movimentos e atuações, como o nPeriferias, possibilitam ser uma ponte entre a universidade e pessoas como ela: jovens pretos e periféricos que muitas vezes têm seus sonhos e suas expectativas moldados pela realidade social em que estão inseridos. Por isso, ela e outros participantes do projeto decidiram contar as trajetórias de um estudante periférico. Aliando o conhecimento que adquire na Universidade, ela percebe o quanto o conhecimento acadêmico deve e pode se tornar acessível e popular. Prova disso foi o fato de, em uma das aulas da graduação, perceber que o racismo permeia também uma questão ambiental e que essa temática se relacionava com o projeto de pesquisa. 

“As pessoas precisam ver que estamos ocupando espaços dentro da Universidade. A USP é pública, gratuita e nossa. Quando você vê os seus ali, isso acende em você uma chama de ser o próximo. E, para mim, de nada adianta obter conhecimento acadêmico dentro da Universidade e não o devolver de alguma forma para a minha comunidade”, ressalta a participante do nPeriferias que ingressou no projeto este ano.

Para além do virtual

Para além do virtual, outras ações também são desenvolvidas pelo grupo de pesquisa nas periferias de forma concreta. O nPeriferias vem se articulando com alguns projetos como o Centro Maria Antonia (CEUMA) da USP e a Feira Ilé-Ifè, permitindo construir conexões mais profundas ao passo que estimula a cultura e o afroempreendedorismo nessas regiões que ainda carecem de políticas públicas para desenvolverem esse comportamento, de modo efetivo.

Para Maria Eduarda Ferraz, estudante de Fisioterapia na Fofito, o nPeriferias atua mostrando que as pessoas periféricas apesar de estarem inseridas em um só contexto, possuem a sua individualidade, cultura, hábitos e crenças diferentes, o que torna um ambiente heterogêneo.

Participante do segundo episódio no quadro Vida de Estudante Periférico, ela reforça o quanto, ainda, os estudantes periféricos são minoria na USP.  A partir de trajetórias de alunos de graduação que são de periferias, os episódios demonstram que essas pessoas têm vivências completamente diferentes umas das outras. 

Ela destaca que “a forma com a qual o projeto envolve os estudantes de graduação oriundos das periferias, mediante atividades focalizadas na difusão de experiências, conhecimentos, partilha de informações sobre a Universidade de São Paulo e sobre suas vivências nas periferias, reafirma todo dia que o lugar de jovens periféricos também é nas universidades públicas.”

Hoje, o grupo atua apoiando um projeto do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), que desenvolve um observatório de coletivos culturais nas zonas sul e leste da cidade de São Paulo, e se  constitui numa plataforma on-line com informações sobre a criação e as ações de coletivos culturais. Além disso, o nPeriferias atua em outras frentes, como saúde e promoção de direitos humanos nas periferias.

Maria Eduarda Ferraz - Foto: Arquivo Pessoal

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