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O que é e para que serve a Convenção 169 da OIT?
Especialistas da USP explicam como o tratado da Organização Internacional do Trabalho (OIT) ajuda a proteger os direitos dos povos indígenas e comunidades quilombolas
Brasil ratificou a Convenção 169 da OIT em 2002 e suas regras passaram a vigorar no País em 2003, ano em que o STF lançou uma edição do texto na língua Kaiapó - Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF/Agência Brasil
Redigida há 35 anos, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é um dos principais tratados internacionais sobre os direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais no que diz respeito à sua organização e modo de vida. Adotada na Conferência Geral da OIT realizada em 1989 na cidade de Genebra, na Suíça, a Convenção 169 teve por objetivo eliminar todos os tratados internacionais mais antigos que ainda contivessem ideias retrógradas sobre os direitos dos povos originários. Suas principais inovações foram a noção de autorreconhecimento dos povos indígenas, a afirmação da profunda relação dos povos com suas terras tradicionais e o protocolo de consentimento prévio, livre e informado.
O Brasil ratificou a Convenção 169 da OIT em 2002 e suas regras passaram a valer no território nacional em 2003. Desde então, o Estado brasileiro é legalmente obrigado a implementar as diretrizes da convenção – e já foi condenado em um tribunal internacional quando falhou em fazê-lo. Para entender quais são os principais pontos da Convenção 169 e como ela ajuda os povos indígenas e comunidades quilombolas a lutar por seus direitos, a reportagem do Jornal da USP conversou com dois especialistas no tema da proteção dos direitos de minorias:
- Paulo Borba Casella, professor da Faculdade de Direito (FD) da USP e coordenador do Grupo de Estudos em Direitos das Minorias (Gepim);
- Cássio Zen, advogado com experiência em cortes internacionais, doutor em Direito Internacional pela FD e integrante do Gepim.
Por que a Convenção 169 é importante?
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A Convenção 169 da OIT foi o primeiro tratado internacional vinculante que trata especificamente dos direitos dos povos indígenas e tribais. Vinculante, nesse caso, quer dizer que os países que assinam e ratificam o tratado são obrigados a obedecer suas disposições. Isso inclui, por exemplo, as obrigações dos Estados nacionais na demarcação de terras indígenas.
Em 1989, ano em que a convenção foi adotada, o documento representou um avanço por abandonar a ideia de que os povos indígenas seriam paulatinamente assimilados às sociedades hegemônicas dos países onde vivem. Em vez disso, o tratado reconhece a autonomia dos povos originários, fala da importância das terras tradicionais em suas cosmovisões e modos de vida e destaca a necessidade de preservar as línguas, costumes e formas de auto-organização das comunidades originárias.
Segundo o livro Criminalização e reconhecimento incompleto: Obstáculos legais à mobilização indígena no Brasil, de autoria de Luiz Eloy Terena e Ana Carolina Alfinito Vieira, a Convenção 169 foi adotada no contexto político em que alguns países latino-americanos começaram a debater a possibilidade de suas Constituições admitirem a existência de mais de uma nação habitando o mesmo território. Nascia assim a ideia das nações multiculturais ou multiétnicas. Nas décadas seguintes, a Convenção 169 influenciou no conteúdo de muitas novas Constituições, como a da Colômbia e a da Bolívia.
A quem a convenção se aplica?
Os direitos previstos na Convenção 169 se aplicam a “povos tribais em países independentes cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros segmentos da comunidade nacional e cuja situação seja regida, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por uma legislação ou regulações especiais” e “povos em países independentes considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que viviam no país ou região geográfica na qual o país estava inserido no momento da sua conquista ou colonização ou do estabelecimento de suas fronteiras atuais e que, independente de sua condição jurídica, mantêm algumas de suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas ou todas elas”. Nos dois casos, a autoidentificação é o critério fundamental para definir que povos são esses. Assim, no Brasil, a Convenção 169 se aplica tanto aos povos indígenas quanto às comunidades quilombolas.
Para o advogado Cássio Zen, os conceitos de povos tribais e indígenas utilizados na Convenção 169 são bastante relevantes no direito de proteção de minorias. “Não é dado o direito só à pessoa que faz parte de uma comunidade originária, mas ao próprio grupo. Não se trata de uma proteção somente individual. É uma proteção coletiva”, comenta.
De que forma a convenção protege os povos indígenas?
Na opinião do professor Paulo Borba Casella, um dos aspectos mais importantes da Convenção 169 é a garantia da titularidade sobre as terras originárias. Não se trata meramente de uma questão fundiária, pois a proteção das terras indígenas é fundamental para a preservação das línguas e culturas indígenas, além de ter impactos sobre a saúde das pessoas – como se viu no caso emergência humanitária da Terra Índigena Yanomami, em Roraima, onde a invasão do garimpo ilegal provocou contaminação da água, um forte surto de malária e uma situação crítica de desnutrição e mortalidade infantil que ainda não foi superada.
“A primeira coisa é entender que a ligação com a terra é muito mais coletiva e vai muito além de um mero título de propriedade. Para os povos indígenas, não existe essa ideia dos brancos de um indivíduo proprietário da terra. A terra é parte da identidade coletiva e é fundamental para a manutenção desse povo, dessa cultura e das tradições. A relação com a terra vai muito mais longe do que uma estrutura de propriedade de um imóvel rural”, diz Casella. “A segunda coisa, que é quase tão importante quanto a terra, é ter um ambiente no qual a cultura, a língua e as tradições possam ser preservadas”, completa. Nesse sentido, um exemplo positivo é o da educação escolar indígena, que é um direito previsto na Constituição Federal e está presente em diversos territórios.
Chegou a hora de reconhecer que a Terra não nos pertence, nós é que pertencemos à Terra; que nossa missão no mundo é velar pelos direitos, não só dos seres humanos, mas também da Mãe Terra e de todos os seres vivos.
Trecho de discurso de Evo Morales na Assembleia Geral da ONU, em 22 de abril de 2009. O pesquisador Cássio Zen destaca a fala como ilustrativa da maneira que os povos indígenas veem sua relação com a terra.
O que é a consulta prévia mencionada na Convenção 169?
A consulta prévia antes da ação faz parte do protocolo de consentimento prévio, livre e informado que deve ser colocado em prática toda vez que um empreendimento planejado possa trazer impactos às comunidades indígenas ou quilombolas. O empreendimento pode ser uma obra pública de infraestrutura ou uma planta de exploração de minérios, por exemplo. Não precisa necessariamente estar em terra indígena para que a consulta prévia se torne obrigatória; basta que a implantação em uma área vizinha tenha o potencial de impactar o modo de vida da comunidade e colocar sua integridade em risco.
“Aí talvez esteja o principal dispositivo, que incomoda muita gente aqui no Brasil. Qualquer coisa que possa afetar o direito desses povos deve passar pela consulta, para garantir a plena efetividade de direitos”, afirma Cássio Zen.
Nesse tipo de consulta, autoridades e empreendedores têm de garantir amplo acesso à informação sobre o projeto discutido e inclusive garantir tradutores e intérpretes, se for necessário. “Vamos pensar em uma barragem que possa afetar o modo deles de pescar. Isso precisaria passar pelo licenciamento ambiental e também pela consulta às comunidades originárias que seriam afetadas. A Funai tem que participar disso. E, se não tem aprovação dos indígenas, em teoria não poderia ser aprovado licenciamento para a obra. Infelizmente, a gente vê ações predatórias em terras indígenas, muitas vezes o projeto, digamos, vindo de cima para baixo”, lamenta o pesquisador.
A Convenção 169 tem força de lei?
Sim, no Brasil a Convenção 169 da OIT tem força de lei. “O Brasil, quando assina e ratifica [o tratado], cria duas obrigações. Uma é de assegurar que isso seja implementado na ordem interna. Outra é que o Brasil se compromete, perante os demais países que ratificaram a convenção, a trabalhar para que isso seja efetivado. Então, há um duplo compromisso”, explica o professor Casella.
O não cumprimento das disposições da convenção não gera necessariamente uma punição formal, como ocorre quando um indivíduo comete um crime dentro do território nacional. Porém, diversas organizações não governamentais, centros de pesquisas e universidades monitoram a implementação da Convenção 169 no País, bem como suas falhas. “A punição pelo descumprimento é a má publicidade que o país recebe, seja (por meio de) relatórios da própria OIT, seja em relatórios de outras entidades. Então, em uma busca rápida sobre a Convenção 169, aparece que o Brasil falha sistematicamente no cumprimento dessa convenção”, diz o docente.
Além da má publicidade no âmbito das relações internacionais, os povos e comunidades prejudicados pelas falhas de implementação da convenção podem recorrer a tribunais internacionais para exigir reparações.
Um caso que chegou a uma dessas cortes foi o do povo indígena Xucuru. Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou a responsabilidade do Estado brasileiro pela violação de direitos dos Xucuru, devido à demora de mais de 16 anos no processo administrativo de demarcação de suas terras e territórios ancestrais. A corte sentenciou o Brasil a concluir o processo de desintrusão do território indígena Xucuru, pagar indenizações e remover qualquer tipo de obstáculo ou interferência sobre as terras em questão.
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