Mulheres negras em profissões elitizadas causam mudanças e geram “fissuras” na estrutura racial brasileira

Estudo realizado na Faculdade de Educação (FE) da USP inaugura um novo conceito na sociologia da educação, que são as “práticas de fissura” provocadas por mulheres negras que atuam em profissões elitizadas

 04/03/2024 - Publicado há 2 meses

Texto: Antonio Carlos Quinto

Arte: Simone Gomes

Pesquisa de doutorado teve como base entrevistas com 11 mulheres atuantes em profissões elitizadas nas áreas do Direito, Medicina e Engenharia - Mulheres – Foto: Freepik

Numa sociedade marcada pela desigualdade racial, como a brasileira, mulheres negras que chegam ao topo de suas profissões, principalmente as consideradas elitizadas, causam impactos nas estruturas de trabalho e abrem caminhos para mais pessoas pretas, entre outras consequências. “Um desses impactos é o que denomino em meu estudo como as ‘práticas de fissura’”, explica a pesquisadora Adriana Sousa. Ela é autora do estudo de doutorado intitulado Mulheres negras em profissões elitizadas: as práticas de fissura, defendido na Faculdade de Educação (FE) da USP sob a orientação da professora Fabiana Augusta Alves Jardim. 

 A pesquisa de Adriana, concluída no ano de 2022, recebeu no ano seguinte (2023) o Prêmio Tese Destaque USP, na área de Inclusão Social e Cultural.

Para realizar seu estudo, Adriana entrevistou 11 mulheres atuantes em “profissões elitizadas” nas áreas do Direito, Medicina e Engenharia. “De início eram cerca de 30 mulheres, mas ao final do trabalho entrevistei três do Direito, quatro da Medicina e outras quatro da Engenharia”, explica Adriana Sousa, que prefere tratar suas entrevistadas como “interlocutoras”.

Adriana considera que seu tema de pesquisa seja inédito, visto que não há dados e existe pouca literatura que permita avaliar questões de raça com relação à trajetória de mulheres negras inseridas em áreas de prestígio do mercado de trabalho.

Adriana Sousa - Foto: Marcos Santos

 Como ela cita em seu estudo: “Há silêncios acerca dos lugares profissionais de mulheres negras nas áreas do direito, da medicina e da engenharia. Ainda assim, é a academia brasileira que mais carece avançar nos estudos sobre a atuação profissional de mulheres negras em áreas do trabalho elitizado”. De acordo com Adriana, que analisou 56 trabalhos até a conclusão de seu estudo, “não havia estudos no campo da educação com objetivo igual ou semelhante aos desta pesquisa”.

Um novo conceito no campo das pesquisas em educação

O termo “práticas de fissura” pode ser considerado como um novo conceito a serviço dos estudos em sociologia da educação. Além disso, é a parte central de meu trabalho.
Adriana Sousa

Adriana propôs o conceito de práticas de fissura para defender que a presença e a atuação de mulheres negras em carreiras elitizadas têm consequências na estrutura racial informada nas dinâmicas cotidianas. E nesse sentido, como ela descreve, práticas de fissura são os impactos que mulheres negras em carreiras elitizadas causam nas relações do dia a dia no trabalho. “Esses impactos, provocados tanto por sua presença quanto pelo conhecimento coletivo ancestral que elas mobilizam e usam para alterar suas chances no interior dessas profissões, abrem espaços para a entrada de mais pessoas negras e para a construção de relações sociais mais justas nos espaços em que atuam”, explica a pesquisadora.

Para reforçar sua hipótese, Adriana lembra a citação de Angela Davis, intelectual americana e um dos nomes mais importantes no debate feminista sobre a exclusão das mulheres negras: Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela. “O meu estudo demonstra como isso ocorre”, ressalta Adriana.

Adriana Sousa no 12º Prêmio Tese Destaque por "Mulheres negras em profissões elitizadas - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

As novas velhas formas de racismo

Durante as entrevistas com suas interlocutoras, Adriana Sousa constatou que, mesmo que essas mulheres ocupem cargos de destaque em suas organizações, isso não as protege. “São algumas das estratégias do apagamento da mulher negra”, como descreve a pesquisadora. Ela cita como exemplo o caso de uma de suas interlocutoras, que atua como neurocirurgiã. “Ela relembrou que ao sair de uma cirurgia, um grupo de cirurgiões que atuava no mesmo hospital ficou surpreso ao constatar que ela havia realizado a cirurgia [julgavam que ela atuava apenas como assistente] e questionou como seu colega permitia aquilo. Ora! O que faz uma cirurgiã se não cirurgias?”, diz Adriana.

Situações semelhantes ocorreram com mulheres negras que atuam nas áreas de Direito e Engenharia. “Uma engenheira que comandava uma equipe de mais de 100 trabalhadores sofreu tentativa de morte por um mestre de obras diante de todos. Ao afirmar que demitiria seu agressor, foi indagada pelo seu superior se ela tinha certeza dessa decisão. Ela precisou organizar argumentos relacionados ao sucesso da obra para que tal providência fosse tomada”.

 

De acordo com Adriana, caso a situação tivesse ocorrido com uma pessoa não negra, outras providências certamente seriam tomadas, “como simplesmente chamar a polícia”. O fato, como conta a pesquisadora, é que cerca de três meses após o ocorrido o funcionário veio em busca de emprego no mesmo canteiro de obras em que quase cometeu um crime.

Fatos como esses permitem perceber claramente como a presença de mulher negra no lugar de comando provoca impactos em suas áreas de atuação
Adriana Sousa

Fabiana Augusta Alves Jardim, orientadora - Foto: Sites -USP

“Fazem parte desses impactos as estratégias que elas constroem ao gerar novos formatos nas relações de trabalho”, conta a pesquisadora. “A engenheira, por exemplo, realizou mudanças nas condições de trabalho quando estabeleceu negociações com a diretoria para que os trabalhadores tivessem acesso à mesma qualidade de alimentação dos executivos daquela empresa”, lembra.

Na área do Direito, ela destaca que uma juíza tratou das relações raciais no Judiciário e conseguiu implementar propostas como programa de bolsa numa escola superior de magistratura para pessoas vulneráveis e cotas raciais, questões nunca discutidas no contexto do seu trabalho.

Dentre outros dados levantados no estudo, estão as desigualdades de acesso e remuneração de mulheres negras, que permanecem nas três áreas investigadas. “O número de mulheres nestas áreas aumentou, embora ainda seja pequeno se comparado aos grupos de homens e mulheres brancos e homens negros”, constata Adriana, enfatizando a necessidade de visibilizá-las em pesquisas que pensem o acesso de mulheres no Direito, na Engenharia e na Medicina no País.

“Cortando a água”

“- Mãe, a água já cortou.
 – Pois, agora, troque de pote. Cuidado para não derramar e nem baldear.”

Natural de São João do Piauí, às margens do Rio Piauí, distante cerca de 550 km da capital Teresina, Adriana lembra, quando ainda criança, que ouvia de sua mãe a recomendação. Aos finais de semana, no interior da cidade, sua função era buscar água para o consumo de casa. “Porém, no período do final do inverno a água já estava barrenta”, recorda-se a pesquisadora.

Depois de transportar o líquido até sua casa, ela depositava sobre aquela água “barrenta” algumas pedras hume. “Esse mineral tinha a capacidade de manter todo o barro contido na água no fundo do recipiente, deixando na parte de cima a água pronta para beber”, conta Adriana.

Essa rotina de Adriana, ainda jovem, percorreu suas memórias até tornar-se uma pesquisadora da FE.

O meu caminhar ao encontro das médicas, engenheiras e profissionais do direito, para colher suas histórias e analisá-las, evocou em mim as caminhadas ao encontro das águas de beber.
Adriana Sousa

Talvez, como reforça a pesquisadora, tenha sido aí o seu primeiro contato com processos de pesquisas.

Cristais de Pedra Hume - Foto: Cedida pela pesquisadora
Pedra Hume colocada para "cortar a água"- Foto: Cedida pela pesquisadora

Na pequena São João do Piauí, que fica no sudeste do Estado, Adriana iniciou sua graduação e viu chegar à região uma unidade da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Já na capital, Teresina, ingressou no mestrado. “Isso foi no ano de 2013”, relembra.

São João do Piauí - Foto: saojoaodopiaui.pi.gov.br saojoaodopiaui.pi.gov.br

Nessa trajetória, Adriana compreendeu a importância de se pesquisar. Ainda hoje, ela tem seus familiares residindo em São João do Piauí.

Além de ter estudado na Universidade de São Paulo, Adriana fez parte dos seus estudos de doutorado no Center for Womens & Gender Studies da Universidade do Texas, nos EUA.


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