Escrito por mães pesquisadoras, livro expõe mecanismos de exclusão nas universidades

Dificuldades enfrentadas por mães no ambiente acadêmico são tema de e-book gratuito; organizada por pesquisadores da USP, publicação conta com relatos de cientistas em diversas regiões do Brasil

 05/10/2023 - Publicado há 7 meses

Texto: Laura Pereira Lima*
Arte: Carolina Borin**

Livro investiga e problematiza os mecanismos de exclusão das mães no ambiente acadêmico - Imagem: Drazen Zigic/Freepik

“Tenho muito trabalho com a casa, as crianças, o laboratório e as lições – e nem sei onde dar com a cabeça!” A frase foi retirada de uma carta escrita em 1905 pela cientista mais consagrada da história: Marie Curie. Viúva aos 39 anos, a vencedora do prêmio Nobel criou as duas filhas sozinha — que tinham um e oito anos quando o pai faleceu — enquanto enfrentava uma jornada tripla, conciliando afazeres domésticos, maternidade e trabalho em pesquisa. Mais de cem anos depois, o cenário não mudou muito para as mães pesquisadoras. 

Lançamento do Portal de Livros Abertos da USP, a coletânea Mães cientistas: perspectivas e desafios na academia investiga e problematiza os mecanismos de exclusão das mães no ambiente acadêmico em 15 capítulos, escritos por pesquisadores e mães de diversas regiões do Brasil. Organizada por Júlio César Suzuki, Rita Lima de Castro e Alessandra Garcia Soares, do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam/USP), a coletânea expõe relatos pessoais e pesquisas em dois volumes, disponíveis gratuitamente para leitura ou download.

“Buscamos criar um espaço de reflexão, percepção e ação sobre como a academia pode modificar suas próprias estruturas para ter estruturas mais equitativas”, analisa Rita Lima de Castro, organizadora do livro.

Além do impacto da maternidade na produção de pesquisadoras da pós-graduação, o livro também aborda as dificuldades enfrentadas por alunas de graduação que engravidam e as implicações da maternidade na carreira de professoras universitárias. A condição materna é analisada sob diversos recortes e em diversas universidades do Brasil. Raça e classe são trazidos para o centro das análises e narrativas, que se situam em universidades como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade Estadual do Pará (UFPA).

Marie Curie e suas duas filhas, Ève e Irene, em 1908 - Imagem: Reprodução/Wellcome Collection via Wikimedia Commons/CC BY 4.0

Falta de assistência e infraestrutura

Capa do livro Mães Cientistas: perspectivas e desafios na academia - Imagem: Divulgação/Portal de Livros Abertos da USP

A maternidade só foi devidamente reconhecida no âmbito da pesquisa acadêmica em 2010, com a concessão de licença-maternidade às estudantes bolsistas de mestrado e doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que estabeleceu a prorrogação da bolsa por até quatro meses. Até então, as pesquisadoras que tinham filhos durante o mestrado ou doutorado tinham suas bolsas canceladas ou suspensas.

Mesmo com a implementação da licença-maternidade, outras questões dificultam a ascensão de mães na academia e no meio científico: as jornadas extenuantes de pesquisa criam dificuldades em conciliar a carreira e a maternidade, e a culpa é um fator comum nos relatos das mulheres, que muitas vezes precisam se ausentar do cuidado dos filhos para se dedicar à produção acadêmica.

Além das dificuldades em conciliar o tempo, as universitárias grávidas são negligenciadas pela infraestrutura; a experiência no campus não é pensada para esses corpos, e alunas relatam desconforto nos ônibus, escadas, mesas e cadeiras.

Um dos relatos coletados no livro é o de Valentina*, estudante de Geologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A jovem descobriu a gravidez pouco antes de iniciar o terceiro período do curso e se desesperou, com medo de precisar interromper os estudos. “Eu nunca tinha visto uma mãe aqui na universidade”, conta em entrevista coletada por Maurício Fernandes Rocha e Juliana Borges de Souza e transcrita no livro. A graduanda da UFRJ cogitou abortar, mas manteve a gravidez — e permaneceu cursando a graduação. Por necessidade financeira começou a estagiar; acordava às 4 horas e só voltava para casa às 19 horas. “E tinha o terceiro turno, que era dar de mamar a madrugada inteira”, relata.

*Na publicação, o nome foi modificado para preservar a identidade da estudante

Pensar sobre a academia

O livro é um convite para discutir as relações dentro da própria academia, explica Rita. “A coletânea tem um potencial de aproximar a sociedade do que está sendo produzido na Universidade”, conta a pesquisadora, ressaltando que a obra está disponível gratuitamente e pode ser acessada por toda a população.

A iniciativa da coletânea surgiu a partir da constatação de que o meio acadêmico é direcionado aos corpos masculinos e, buscando denunciar essas estruturas injustas, os organizadores convidaram mulheres pesquisadoras para narrarem suas próprias histórias e pontos de vista. “Quando damos voz a quem vive o problema, permitimos uma compreensão mais sensível e empática”, conta Rita.

Rita Lima de Castro - Foto: Arquivo Pessoal

Rita Lima de Castro - Foto: Arquivo Pessoal

Serviço

E-book Mães cientistas: perspectivas e desafios na academia 

414 páginas


E-book Mães cientistas: relatos de experiências e reflexões teórico-metodológicas

286 páginas

Ambos disponíveis no Portal de Livros Abertos da USP

*Estagiária sob supervisão de Tabita Said

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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