Fotomontagem com imagens de domínio público.

Escravocratas paulistas conseguiram manter seu poder político, mesmo com o final da escravidão

Na Primeira República, no período pós-abolição, o controle dos grandes fazendeiros negou à população pobre e ex-escravizada condições adequadas de vida e educação

 23/02/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Antonio Carlos Quinto

Arte: Joyce Tenório

O fim da escravidão, decretado pela Lei Áurea, em 1888, não reduziu o poder dos escravocratas, em sua maioria grandes proprietários de terras e com fortes influências sobre as políticas dos municípios paulistas. Eles formavam a elite produtora de café do Estado de São Paulo e continuaram a exercer influências sobre a economia e a política das cidades. “Assim, foram se transformando em figuras centrais do chamado coronelismo paulista e mantinham o controle da terra e do trabalho, mesmo sem terem seus escravos”, descreve o cientista social Josué Lima Nóbrega Junior.

Em sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, intitulada Escravidão, raça e coronelismo: municípios e finanças públicas em São Paulo na Primeira República, orientada pelo professor Paolo Ricci, Nóbrega Junior analisa este e outros efeitos do fim da escravidão para os negros (ex-escravizados), para os escravocratas e para as finanças das cidades do Estado de São Paulo durante a Primeira República, no período entre 1888 e 1930. O estudo envolveu todos os municípios do Estado de São Paulo, mais especificamente as regiões de cultura do café. “O auge da exploração escravista paulista esteve muito ligado à expansão da economia cafeeira”, como conta o pesquisador ao Jornal da USP.

Josué Lima Nóbrega Junior. Foto: Arquivo pessoal

“Eles desejavam que a abolição por aqui seguisse o modelo norte-americano, ou seja, que não terminasse de imediato em todo o País, mas que fosse se acabando de forma gradativa de acordo com as necessidades de cada Estado.”

Nóbrega Junior optou por conduzir sua pesquisa analisando três aspectos que afetaram as cidades paulistas depois do final da escravidão: o político, o racial, com a discriminação, e as finanças dos municípios. Os dados de análise da pesquisa envolveram os censos de 1872 e 1890, além das informações municipais dos anuários estatísticos do Estado de São Paulo e da imprensa da época até 1930.

Interesse pela escravidão

Nóbrega Junior conta que boa parte dos escravocratas paulistas queria um final diferente para a escravidão. “Eles desejavam que a abolição por aqui seguisse o modelo norte-americano, ou seja, que não terminasse de imediato em todo o País, mas que fosse se acabando de forma gradativa de acordo com as necessidades de cada Estado”, conta o cientista político.

Segundo ele, as justificativas dos escravocratas para que a escravidão não fosse declarada totalmente extinta estavam, por exemplo, na oposição de políticos paulistas em relação à Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, que determinava que os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir dessa data seriam livres, bem como na resistência das câmaras municipais paulistas à Lei dos Sexagenários, de 28 de setembro de 1885, que libertava escravos com mais de 60 anos. “Esses senhores propunham uma escravidão até 1910. Segundo eles, a escravidão acabaria naturalmente, com a morte dos escravos mais velhos e com o nascimento das crianças negras livres”, conta Nóbrega Junior.

“Mas os gastos com as cidades ainda continuavam a ser influenciados por ex-escravocratas. Quanto maior a população negra de um determinado município, menores eram os gastos com educação e infraestrutura destinada a essa camada da sociedade.”

Contudo, de acordo com o pesquisador, mesmo diante das pressões políticas abolicionistas que culminaram na libertação total da população escravizada, os escravocratas continuaram a agir politicamente em suas cidades como um grupo com interesses em comum mesmo após a abolição. “Os interesses dos escravocratas se manifestaram no aumento do controle da política local. Os municípios que mais exploravam o trabalho escravo direcionavam uma parcela maior dos recursos municipais para beneficiar os interesses econômicos dos antigos proprietários de escravos, principalmente em projetos de infraestrutura, como construção de estradas e sistemas de abastecimento de água.” Essas atitudes dos ex-escravocratas eram mais evidentes em cidades com uma forte cultura cafeeira, como na região do Vale do Paraíba, bem como no chamado “oeste” cafeeiro. Nessas regiões, havia uma carga tributária mais alta, mas os impostos não eram aplicados em benefício da população em geral, conforme descrito pelo pesquisador.

Sem direitos básicos

Com o fim da escravidão, o País passou a receber um fluxo migratório de europeus. “Houve aumento da população de uma forma geral”, conta o cientista social, que analisou dados da população negra provenientes do Censo imediatamente após o fim da escravidão, do ano de 1890. Com o aumento populacional, os gastos das cidades também aumentaram, mas tudo ainda estava sob controle dos grandes proprietários de terras, como conta o pesquisador. “Mas os gastos com as cidades ainda continuavam a ser influenciados por ex-escravocratas. Quanto maior a população negra de um determinado município, menores eram os gastos com educação e infraestrutura destinados a essa camada da sociedade”, descreve o pesquisador.

“Naquele momento, mesmo os contratos de trabalho eram diferenciados, com vantagens exclusivas para os imigrantes brancos que não existiam para os ex-escravos negros.” O Estado de São Paulo passava por um processo de tentativa de “branqueamento” de sua população.

Para Nóbrega Junior, fica evidente a influência de uma ideologia discriminatória no período pós-abolição. O fator racial era extremamente relevante para as decisões em políticas públicas, como conta o pesquisador. “Naquele momento, mesmo os contratos de trabalho eram diferenciados, com vantagens exclusivas para os imigrantes brancos que não existiam para os ex-escravos negros.” O Estado de São Paulo passava por um processo de tentativa de “branqueamento” de sua população. Tanto que não apenas os grandes fazendeiros, mas também o governo do Estado de São Paulo, financiaram a vinda de imigrantes europeus tendo como critério dentro da lei fatores raciais relacionados com a origem dos trabalhadores. A legislação estabelecia políticas públicas de incentivo exclusivas, como para a propriedade da terra, moradia e serviços municipais, em detrimento da população negra. Segundo o cientista social, as evidências apontam para a força da mentalidade discriminatória da elite paulista na época, que adotava um pensamento “eugenista”, no qual tudo de origem africana era considerado inferior.

“A Redenção de Cam”, Modesto Brocos (1895). A obra vencedora da medalha de ouro do Salão Nacional de Belas Artes do Brasil em 1895 de Modesto Brocos. Nela, intitulada “A Redenção de Cam”, o ideal eugenista de melhoramento racial pela introdução de formas embranquecedoras de miscigenação está retratada e, como descrito pelo próprio título da obra, se trataria de uma forma de redimir o país e seu povo em direção a um futuro mais europeu e menos africano em termos raciais Na obra, mesmo entre as formas de miscigenação, o ideal seria que as novas gerações perdessem com o tempo suas características africanas e caminhassem para um futuro mais branco e europeu. Foto: Domínio público

De escravocratas a coronéis

A extensão do poder político dos grandes proprietários de terra e escravos não se limitou ao período escravocrata, tendo influenciado a própria organização do Partido Republicano Paulista (PRP). Mesmo após a abolição, essa elite continuou exercendo influência direta nas administrações públicas municipais, utilizando seu poder de direcionamento dos recursos públicos locais para obter o apoio de setores mais amplos das elites coronelísticas, que controlavam os votos nas localidades. De acordo com Nóbrega Junior, embora um “coronel” pudesse controlar apenas uma quantidade limitada de votos, o poder de controle político sobre as administrações municipais passou a ter também uma dimensão partidária, e passou a ser utilizado para canalizar recursos públicos e aumentar a capacidade de mais coronéis em obter uma quantidade maior dos chamados “votos de cabresto”.

De acordo com Nóbrega Junior, a pesquisa evidencia a mobilização de recursos para a mobilização eleitoral, em um contexto de dificuldades do Partido Republicano Paulista (PRP) em manter a hegemonia política do Estado. A influência do PRP foi decisiva para influenciar as administrações das câmaras municipais a canalizar recursos para atender os coronéis das cidades, principalmente após as eleições de 1910, em que houve a derrota do candidato apoiado pelo partido, Rui Barbosa. “A partir de 1912, as dificuldades políticas em manter a hegemonia do PRP, especialmente no Legislativo nacional, levaram a uma mobilização ainda maior de recursos públicos locais para obter mais apoio e, consequentemente, mais votos para fortalecer candidatos do partido.”

Mais informações: josuenobrega@usp.br

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