Graduada em Artes Cênicas na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Dodi Leal volta à Universidade dez anos depois, com uma responsabilidade ainda maior: atuar como professora, ocupando um espaço que ainda carece de corpos não hegemônicos. Como parte de uma iniciativa do Laboratório de Práticas Performativas, do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC), a artista foi convidada pelo professor Marcos Bulhões para ministrar a disciplina Fabulações Travestis sobre o Fim, que acontece entre março e maio deste ano.
Dodi fica grata com a oportunidade e conta que é uma sensação gostosa voltar à ECA, agora como professora. Apesar de ser uma conquista, ainda há muita invisibilização de pessoas trans dentro da Universidade, segundo a professora. “Espero que não seja a última vez. Pelo contrário, espero que seja só o começo de muitas edições, e que não seja só eu”, afirma.
Além da licenciatura na ECA, Dodi é graduada em Ciências Contábeis na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP, onde desenvolveu seu mestrado em Controladoria e Contabilidade. Em 2018, obteve o título de doutora em Psicologia Social, no Instituto de Psicologia (IP) da USP. A pesquisadora se manteve envolvida em projetos sociais relacionados à economia solidária, educação popular, arte e cultura. Atualmente Dodi é professora efetiva da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e docente colaboradora da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).
Para o professor Marcos Bulhões, autor do convite, Dodi é uma pesquisadora com um trabalho muito relevante, que irá acrescentar positivamente ao departamento. “O cruzamento entre questões de gênero e a produção artística é um campo em que ainda não há tanta produção.” Além disso, Bulhões comenta que o curso preparado integralmente por ela reúne um conteúdo bastante original e uma bibliografia complexa e densa.
“A fala de uma professora doutora travesti, reconhecida nacional e, cada vez mais, internacionalmente, dentro do PPGAC é uma renovação de ares, é uma luz a mais. É uma abertura epistemológica para outros corpos que estão falando deste lugar da docência da pós-graduação, que não são os mesmos corpos hegemônicos, em geral brancos, héteros e cisgêneros”, afirma o professor.
Após a divulgação de que Dodi assumiria uma disciplina na ECA, ainda que como convidada, diversos ataques à professora surgiram nas redes sociais. O PPGAC se manifestou contra os comentários em uma nota de repúdio, alegando que são atitudes como estas que “contribuem para a perpetuação de dinâmicas transfóbicas de pensamento e convívio social, responsáveis por tornar o Brasil o país que mais mata pessoas trans e travestis”. O professor Marcos, além de lamentar e condenar os ataques, mantém a esperança: “Acredito em mudanças na universidade, em um futuro utópico, quando uma professora doutora travesti não assustar tanto assim”, acrescenta.
Para estudantes do programa, é uma honra ter aulas com a artista. Morgana Manfrin, doutoranda trans do PPGAC, conta que a convivência com uma pessoa tão renomada e forte, como Dodi, “faz com que a gente também se fortaleça, faz com que eu me reconheça”.
O mestrando Oliver Olívia, que se identifica como uma pessoa trans não binária gênero fluido, destaca que o convívio na faculdade se torna mais confortável. “Se a professora é trans, as pessoas cis tendem a se ligar mais sobre como receber e tratar bem pessoas trans. Elas começam a prestar atenção nelas mesmas e a não ‘passar pano’ para transfobias. Elas querem trabalhar profundamente a convivência com uma pessoa trans, isso já é incrível”, relata.
Fabulações Travestis sobre o Fim
A disciplina ministrada por Dodi é baseada em um artigo publicado por ela em 2021, na revista Conceição/Conception. O curso é intensivo, com duração de três semanas, e em formato híbrido, o que permite a realização, além da reflexão teórica, de atividades práticas em conjunto com a turma, formada por 14 pessoas.
A pesquisadora conta que o programa trata de escritas, como roteiros, escritas de imaginário, programas performativos e até bilhetes, a partir da cosmopercepção trans — um posicionamento relacionado a desobediências de gênero de ruptura com os paradigmas cisnormativos — e faz uma crítica sobre os estudos do fim. Seja o fim da arte, fim do gênero, fim da humanidade ou o fim do mundo, todos se tornaram um produto estético e são alvos da vendabilidade, como ela chama.
“O que está sendo vendido com isso é o desespero, a ansiedade para que pensem: ‘o mundo vai acabar, então eu preciso comprar e vender tudo que eu necessito, tudo que existe. Eu preciso chegar às últimas consequências, para me salvar do fim do mundo ou acabar logo de uma vez’”, explica a professora. Além disso, são experienciados jogos desenvolvidos a partir da abordagem da Teatra da Oprimida aplicados às práticas performativas, uma das áreas de pesquisa de Dodi. Como método avaliativo, a turma deve criar e executar programas performativos fabulares.
Para enriquecer as discussões, a artista convidou outras duas mulheres trans para participar das aulas. A roteirista Alice Marcone foi convidada a dar uma oficina de textualidade no audiovisual e a artista-educadora Isadora Ravena ofereceu uma oficina de fabilhetações (de fábulas + bilhetes) na cena e uma conferência sobre travestilidade ambiental.
Laboratório de Práticas Performativas
O grupo atua em interface com outras áreas — como dança, música, tecnologia, arquitetura e urbanismo — e também se dedica a produzir pesquisas, performances e espetáculos performativos de cena expandida, sendo reconhecido e premiado internacionalmente por essas obras.
Segundo Bulhões, as reuniões do laboratório para discutir temas de pesquisa acontecem quinzenalmente e estão de portas abertas para quem se interessar.
Com texto de Mariana Zancanelli, do Laboratório Agência de Comunicação (LAC)
Mais informações podem ser obtidas no perfil do grupo no Instagram