Capa do livro "A Lua do Oriente e Outras Luas", resultado de tese de doutorado defendida na USP em 2017 - Foto: Divulgação

Um “estrangeiro metafórico” na fronteira entre mundos adversos

Livro traz a biografia e poemas inéditos do poeta, tradutor, crítico literário e psiquiatra Jamil Haddad

 02/09/2022 - Publicado há 2 anos

Texto: Luiz Prado

Arte: Guilherme Castro

Se a liberdade poética estiver permitida, podemos pensar a história da cultura como um céu noturno parcialmente encoberto. Cada estrela avistada representaria um dos grandes nomes que iluminam, com mais ou menos intensidade, as gerações que os sucederam. Mas, por detrás das nuvens, como suspeitamos, o espaço é ainda mais povoado de astros do que podemos enxergar.

Na literatura brasileira, uma dessas estrelas escondidas é Jamil Almansur Haddad (1914-1988), poeta, tradutor, crítico literário e psiquiatra líbano-brasileiro, contemporâneo da Geração de 45 e autor de sete livros publicados e três inéditos. Com uma obra poética que flui do erotismo ao Alcorão e do orientalismo exotizante ao engajamento político, Haddad foi considerado “fora de lugar” e “incoerente” pela crítica de seus contemporâneos. Um “poeta menor”, nas palavras de Antonio Candido. Adjetivos apropriados para descrever mais a dificuldade que sua obra inspira do que sua suposta irrelevância.

Essa é justamente a ideia que aparece nas páginas do livro A Lua do Oriente e Outras Luas: Biografia e Seleção de Poemas de Jamil Almansur Haddad, escrito pela jornalista Christina Stephano de Queiroz. Resultado da tese de doutorado de Christina, defendida em 2017 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – e ganhadora do Prêmio Tese Destaque USP em 2018 -, o volume transita entre o jornalismo e as letras, mobilizando análise poética, repertório teórico e histórico ao lado de entrevistas e pesquisas em jornais, revistas, bibliotecas, acervos particulares, sebos e na internet. A edição é da Ateliê Editorial.

Jamil Almansur Haddad nasceu em São Paulo, filho de pais libaneses, e foi o único de cinco irmãos que aprendeu o árabe com a mãe, uma jornalista e feminista considerada, poderíamos dizer, “à frente de seu tempo”. Simpático aos escritores “malditos”, como tradutor Haddad foi responsável pela primeira versão integral brasileira de As Flores do Mal, de Charles Baudelaire. Também introduziu as obras do Marquês de Sade no Brasil, em uma época em que o autor era proibido nas livrarias francesas. Já como crítico literário, apresentou novas leituras da poesia de Castro Alves e de Álvares de Azevedo e dos discursos do Padre Antônio Vieira.

Christina Stephano de Queiroz - Foto: Arquivo pessoal

Christina Stephano de Queiroz, autora do livro - Foto: Arquivo pessoal

Durante as décadas de 1940 e 1950, Haddad teve papel de destaque nos círculos da intelectualidade nacional. Colaborou regularmente com a imprensa e publicou por grandes editoras, como José Olympio, Brasiliense, Saraiva e Record. Ao longo da vida, escreveu dez livros de poesia, dos quais sete chegaram às livrarias, além de ter no currículo mais de 30 traduções do francês, árabe e inglês. Também organizou antologias, produziu diversos estudos críticos e ensaios e passou pela presidência do Clube de Poesia, fundado pelos poetas da Geração de 45.

Essa bagagem musculosa, contudo, não foi suficiente para que o autor figurasse entre o primeiro escalão dos escritores nacionais ou recebesse atenção da historiografia. A razão disso, conforme aponta Christina, envolve a dificuldade que os críticos tiveram para entender e classificar sua poesia, sem conseguir inseri-la nos movimentos artísticos brasileiros de seu tempo e tampouco encontrar um lugar satisfatório para Haddad junto às suas raízes libanesas. “Verborrágica” e “inclassificável” foram alguns dos termos usados para definir sua produção poética, considerada menor, subversiva e pornográfica – o que lhe rendeu até mesmo a vigilância da polícia política a partir dos anos 1940 e a necessidade de autorização para deixar o País.

Inclassificável e fora de lugar, pondera a pesquisadora, talvez em virtude da abrangência e versatilidade de temas percorridos em sua obra. Em Alkamar,  a Minha Amante (1935), seu primeiro livro, há o flerte com o orientalismo. Depois, o poeta mergulharia na poesia engajada, chegando a abraçar a revolução capitaneada por Fidel Castro em Romanceiro Cubano (1960). Já na última década de vida, as suratas do Alcorão seriam a linha de base para Aviso aos Navegantes (1980).

Mas houve algumas tentativas um tanto descompassadas de enquadrar sua lírica. Estas frequentemente levaram a crítica a rotulá-lo de estrangeiro, um autor descolado do contexto literário brasileiro e pertencente a um lugar distante, exótico e desconhecido. Os pais libaneses, a língua árabe, a perseguição política, os conflitos intelectuais e as desavenças no meio médico (como psiquiatra, Haddad era adepto do uso terapêutico do LSD) contribuíram para reforçar essa imagem.

“O sociólogo francês Roger Bastide, por exemplo, para sustentar a ideia de que Haddad era um poeta oriental, selecionou a seguinte imagem: uma mulher que tosse sangue e este vira flor”, conta Christina. “Para Bastide, isso é típico de um poeta oriental. Mas notamos que Haddad pegou essa metáfora emprestada de um poeta simbolista brasileiro. Portanto, não tem nada de oriental nela.”

Tanto sua biografia quanto sua obra, mostra a pesquisadora, apontam que a classificação de estrangeiro não é a mais satisfatória. Brasileiro de nascença, Haddad conheceu o Líbano apenas em 1954, quando tornou-se adido cultural em Beirute. Lá, teve o choque de entrar em contato com um país diferente do que as leituras e a imaginação haviam criado: também no Oriente era um estrangeiro.

“Ele passou a vida toda com o árabe que aprendeu da mãe e com as histórias da família, fabulando com um Líbano que nunca havia visto”, conta Christina. “Vivendo dois anos em Beirute, conheceu de fato uma realidade antes só imaginada e se deu conta de que também não pertencia àquele Oriente fabulado.”

Para a pesquisadora, a maneira mais acertada de entender a obra de Haddad é encará-lo como um poeta fronteiriço. “Em um primeiro momento, comprei essa ideia da crítica, de que ele era um poeta fora de lugar, fora de foco e marginal. Mas comecei a me questionar. Não era possível, ele tinha que escrever a partir de algum lugar. Daí propus a ideia de um poeta fronteiriço entre Oriente e Ocidente, a poesia maldita e o verso metrificado, o Modernismo e o Barroco.”

Nessa perspectiva, Christina enxerga Haddad como um estrangeiro metafórico, que se recusou a estruturar sua identidade poética a partir de uma nacionalidade precisa. Mesmo quando versificou inspirado pelo islã, sua poesia aparece desarticulada de contextos nacionais. Por outro lado, sua conexão com a literatura brasileira não se deu a partir da identificação direta com seus contemporâneos modernistas, mas com os ambientes universais do Barroco e da lírica maldita. O resultado, identifica a pesquisadora, é uma representação de si que não é local nem estrangeira, mas pertence a um espaço de fronteira entre Líbano e Brasil, passado e presente, Oriente e Ocidente, profano e sagrado.

Em seu fazer poético, Haddad defendeu a versificação tradicional (sendo esta uma de suas desavenças com Oswald de Andrade), a idealização romântica e o erotismo, em uma época na qual o Modernismo erguia a bandeira da ruptura. Pintou também, sobretudo em Alkamar, a Minha Amante, um Oriente exótico, permeado por beduínas sedutoras, camelos, palmeiras e cedros, que iria se modificar ao longo de sua trajetória, levando até Aviso aos Navegantes, obra na qual o Alcorão é a base usada pelo autor para tratar de elementos universais.

Em seus últimos anos, Haddad foi se tornando cada vez mais isolado, o que pode ter contribuído para seu atual esquecimento. Sua obra também foi amplificando o caráter fronteiriço – Aviso aos Navegantes foi publicado na França antes mesmo de ganhar edição brasileira. “No fim da vida, ele parou de escrever em português e adotou o francês, deixando dois livros inéditos em seu espólio.”

Sem filhos, o autor doou parte de seu acervo para uma biblioteca pública de Santo André. A outra parte, na qual foram achados os textos inéditos, está com uma sobrinha neta. Conforme indica Christina, o material ali mereceria atenção dos pesquisadores. “Haddad tem um espólio muito interessante, com poemas, traduções e estudos críticos inéditos. Podemos encontrar ali pistas para reconstruir outros aspectos da vida cultural e literária do Brasil. Olhando para esses desgarrados, como Haddad, conseguimos entender um pouco mais da nossa história literária”, propõe a pesquisadora.

A Lua do Oriente e Outras Luas: Biografia e seleção de poemas de Jamil Almansur Haddad, de Christina Stephano de Queiroz, 380 páginas, Ateliê Editorial, R$ 55,00.


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