Picasso, o ícone em si mesmo

Cinquenta anos após a sua morte, o criador de Guernica e de Les Demoiselles d’Avignon continua reverenciado como o maior artista do século 20

 28/04/2023 - Publicado há 12 meses     Atualizado: 09/05/2023 as 13:42

Texto: Marcello Rollemberg

Arte: Moisés Dorado

Guernica, obra-manifesto pintada por Pablo Picasso em 1937, uma “declaração de guerra contra a guerra”, como definiu seu criador, e considerada a obra de arte mais marcante do século 20 - Wikipedia

Cena 1, Madri, em algum momento recente

Local: Museu Reina Sofia – um dos principais museus de arte da Espanha, ao lado do interminável Museu do Prado. Crianças pequenas, seis, sete anos de idade, chegam uniformizadas, de mãos dadas, acompanhadas por uma professora atenta. Sentam-se no chão em frente a uma enorme tela – 349 cm de altura por 776,5 cm de largura – pintada em tons de preto, branco e cinza, com figuras destroçadas tomadas pela angústia e o desespero. A tela é a joia da coroa do Reina Sofia. Atentos, os pequenos aluninhos tentam responder às perguntas que a professora faz: “Onde está o cavalo?”, “Onde está o touro?”. Naquele momento, aquelas crianças estão diante de Guernica, obra-manifesto pintada por Pablo Picasso, uma “declaração de guerra contra a guerra”, como definiu seu criador, e considerada a obra de arte mais marcante do século passado. Os pequenos aprendem sobre arte, mas também sobre história, conflitos e os limites dos absurdos humanos. Criada para a Exposição Universal de Paris, de 1937, a obra só foi para a Espanha em 1981, quando o país já havia se redemocratizado, como desejo expresso do artista – e esteve no Brasil na II Bienal de Arte de São Paulo, em 1953, junto com outras 30 telas cedidas de sua coleção particular, graças a um pedido do artista Cícero Dias.

Pablo Picasso em seu ateliê - Foto: David Douglas Duncan/Reprodução/Artout

Público visita a Sala Picasso na II Bienal de São Paulo, de 1953 - Foto: Divulgação/Acervo Arquivo Wanda Svevo, Fundação Bienal de São Paulo

Corta. Hora de olhar no retrovisor da história.

Cena 2, Paris, década de 1940, Segunda Guerra Mundial

Local: Ateliê de Picasso em Montmartre. Faz tempo que os soldados nazistas que dominam a Cidade-Luz estão de olho naquele pintor andaluz – malaguenho, para ser exato –, que anda com gente extravagante e é tido como “anarquista”. As visitas da Gestapo ao ateliê são constantes, apenas para checar o que o artista anda fazendo. Certo dia, eles se deparam com a foto de uma tela enorme, pintada não faz muito tempo, uma resposta de Picasso à covardia do bombardeio da cidade basca de Guernica, durante a guerra civil espanhola – que alemães e italianos usaram como ante-sala do que viria a ser a Segunda Guerra. Um oficial nazista olha bem para a imagem e pergunta a Picasso:

“Foi você quem fez isso?”

“Não, foram vocês”, respondeu o artista.

Fato? Si non è vero, è ben trovato.

Ruínas na cidade de Guernica após o bombardeio, em 26 de abril de 1937 - Foto: Wikimedia Commons/Dominio público

Porque praticamente tudo na longa vida de Pablo Picasso (1881-1973), se não era verdade, foi bem contado. Suas criações, sua arte que gerou o cubismo, suas fases cromáticas – rosa, azul –, seu namoro intempestivo com o Surrealismo, seus muitos amores e desamores, suas rusgas que geravam desafetos instantâneos, suas amizades de uma vida inteira e sua fama que avançou para muito além de sua morte há exatos 50 anos, em 8 de abril de 1973, na pequena cidade francesa de Mougins, a 15 minutos de Cannes. E tudo nele foi hiperbólico, desde seu quilométrico nome de batismo – Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso –, sua produção abundante ao longo de 78 anos de criatividade incessante, que o levou a assinar mais de 120 mil obras de arte, entre gravuras, pinturas, esculturas e cerâmicas – entre elas, marcos da arte moderna do século 20 como a própria Guernica e Les Demoiselles d’Avignon –, muitas delas alcançando valores estratosféricos. Em 2015, o quadro Mulheres de Argel (1955) quebrou um recorde ao ser vendido por quase US$ 180 milhões. Durante algum tempo foi a obra mais cara do mundo, até ser desbancada por Salvatore Mundi, de Leonardo da Vinci, vendida por US$ 450 milhões a um príncipe saudita.

“Picasso é obcecado, sempre foi, pela realidade”, declarou, em uma entrevista em 1955, a fotógrafa francesa Dora Maar, uma das inúmeras companheiras que Picasso imortalizou em suas telas. “Através do Cubismo ele buscou todas as facetas de um objeto. Por exemplo, ele quis retratar as quatro dimensões de uma xícara de café. Mas não o instante presente, o sonho, um local, as nuvens ou a emoção. Ele busca a realidade verdadeiramente concreta de um objeto. Isso gera deformações extraordinárias”, afirmou a modelo que dá nome a uma das mais famosas telas do artista, uma obra surrealista de 1937 com cores vibrantes e ângulos improváveis.

Les Demoiselles d’Avignon, de 1907, é a obra-síntese do cubismo criado por Picasso e Braque, um avanço desenfreado mesmo diante da chamada “arte moderna” que se fazia na época - Wikipedia/Domínio público

Retrato de Dora Maar, de 1937, com suas cores vibrantes e seus ângulos improváveis. Para a modelo e companheira, “Picasso era obcecado, sempre foi, pela realidade” - Wikipedia/Domínio público

Homenagens a um artista “prolífico demais”

“Picasso tem uma posição de liderança e protagonismo no início dessa transformação da história da arte nesse século 20 tumultuado pelas vanguardas, no modo como representamos o mundo em que vivemos”, afirma Martin Grossmann, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) e ex-vice-diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP). “Picasso está na ordem da representação. Se em Marcel Duchamp, por exemplo, o observador pergunta e a obra responde, com Picasso não é exatamente assim. Por isso ele é um artista fascinante em vários aspectos”, afirma ele. 

Com tudo isso, Picasso angariou uma fama indelével em seus 91 anos de vida – muito para o bem, mas em vários casos, para o mal. Ao mesmo tempo que é reconhecidamente o maior artista do século 20, ele também não é poupado por seus críticos, seja por alguns o terem tachado de “prolífico demais” (seja lá o que isso queira dizer), seja pela sua misoginia (isso, todos sabem bem o que quer dizer). Mas nada disso impede que o meio século de sua morte seja comemorado comme il faut: museus de todo o mundo, em particular na França e Espanha, agendaram dezenas de exposições sobre o artista nascido na bela cidade costeira de Málaga. 

Martin Grossmann - Foto: Arquivo pessoal

Período Azul: 1901-1904

A Vida é uma pintura a óleo de Pablo Picasso criada em 1903, auge do Período Azul (1901-1904) do artista - Cleveland Museum of Art/Wikipedia

O Velho Guitarrista, de Pablo Picasso, do final de 1903 e início de 1904. A pintura retrata um músico idoso e abatido, com roupas puídas - Art Institute of Chicago/Wikipedia

Na verdade, o “Ano Picasso” tem uma programação que começou em 2022 e avançará durante 2023 em vários países. Em uma apresentação recente no Museu Reina Sofia, em Madri, o ministro da Cultura e Desporto espanhol, Miquel Iceta, e a sua colega francesa, Rima Abdul Malak, explicaram que estão previstas 42 exposições e eventos em 38 instituições da Europa – principalmente em seu país natal, a Espanha, e em seu lar por adoção, a França – e Estados Unidos. “O poder devastador da obra de Picasso, sua invenção permanente, a forma como atravessou todas as grandes correntes da modernidade, a experimentação por mais de 80 anos, seu desejo de atrair e provocar… tudo isso é inigualável”, resumiu Bernard Blistène, presidente honorário do Centro Georges Pompidou em Paris.

Período Rosa: 1904-1906

Arlequim Segurando Um Copo, 1905 , óleo sobre tela, 99,1 × 100,3 cm. - Metropolitan Museum of Art/Wikipedia

Retrato de Gertrude Stein, 1906. "Quando alguém comentou que Stein não se parecia com seu retrato, Picasso respondeu: 'Ela vai'" - Metropolitan Museum of Art, Nova York/Wikipedia

Picasso, que nas palavras do ministro da Cultura espanhol foi um artista que representou o século XX “com toda a sua crueldade, violência, paixão, excessos e contradições”, será celebrado com exposições em museus como o Metropolitan e o Guggenheim de Nova York, o Museu do Prado, o Thyssen Bornemisza de Madri e o Museu de Belas Artes da Bélgica. O Brasil, sem ter muito como concorrer com os pesos-pesados das artes na Europa e nos Estados Unidos, também fará sua reverência ao mestre: para homenageá-lo, cartunistas de vários países se juntaram na exposição virtual Picasso among us (Picasso entre nós – Picasso entre nosotros), retratando o artista e suas obras por meio dos traços. A exposição é organizada pelo site da Associação dos Cartunistas do Brasil – ACB. A exposição pode ser acessada no Blog HQMIX.

A exposição, com mais de 220 desenhos vindos de aproximadamente 35 países, tem o próprio Picasso como objeto de inspiração nos diversos estilos de cartunistas como Ziraldo e Chico Caruso, entre muitos outros. “Esta é a melhor homenagem que poderíamos fazer para esta alma inquieta que sempre estará entre nós”, afirma o presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil, José Alberto Lovetro (JAL). 

Inspiração

Esculturas e quadro de Picasso: o artista procurava nas esculturas a dimensionalidade das formas para chegar ao efeito que desejava na tela - Fotos: Carla Risso

Os anos loucos – e ele sempre terá Paris

A Pomba da Paz é uma série de desenhos criados por Pablo Picasso para simbolizar a paz tão esperada pós Segunda Guerra Mundial - Reprodução/Musée D'Orsay

É impossível dissociar Pablo Picasso da França e de Paris – por mais que ele fosse espanhol, e principalmente andaluz, até a medula e a última gota de tinta do pincel. Porque foi na capital francesa que ele deu seus passos determinados em direção a todas as formas inovadoras de arte que iriam desconstruir o que havia até então e colocar outras ideias nas paredes, nos salões da intelectualidade francesa (e dos endinheirados) e nos museus. Foi na Paris dos chamados “anos loucos”, nos anos 1920 e 1930, no entre-guerras, que ele conheceu o Surrealismo de André Breton, Louis Aragon e Salvador Dalí – espanhol como ele, mas catalão, o que já explica muita coisa. Foi em Paris que ele coloriu suas fases primordiais. E foi lá que ele conheceu, antes de tudo, na primeira década do século passado, o artista francês Georges Braque (1882-1963). Foi com Braque que ele engendrou uma forma de arte que iria sacudir os alicerces culturais de então: o Cubismo foi um avanço desenfreado mesmo diante da chamada “arte moderna” que se fazia na época. Aquelas simpáticas moçoilas de Avignon são desse período – mais precisamente, de 1907.

“Paris era cosmopolita. A liberdade de pesquisa e experimentação era efetivamente possível no ambiente parisiense do início do século 20.  A aproximação que Apollinaire fez entre Picasso e Braque deu como fruto o fértil diálogo plástico que resultou no Cubismo. Este foi um  movimento que efetivamente rompeu com a tradição clássica, trazendo uma nova compreensão de ‘espaço plástico’, abrindo o caminho para a abstração. A pesquisa plástica foi uma constante na produção de Picasso. Ele é um exemplo, um ícone ainda nos dias atuais”, afirma Lisbeth Rebollo, presidente da Associação Internacional dos Críticos de Arte e professora da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP). “Após 50 anos de seu falecimento, Picasso continua sendo figura proeminente no contexto da arte. Sua obra e seu legado continuam sendo forte referência no campo artístico. Picasso, com  sua vontade de experimentação, marcou também movimentos que vieram depois. Sua experiência foi engajada na causa política, contra o fascismo. Foi  uma personalidade marcante”, afirma ela, fazendo mais uma vez referência de como a arte também é instrumento de inspiração e fazer político, no qual Guernica é seu exemplo mais emblemático – mas também a Pomba da Paz que o mesmo Picasso criou em 1949, após a Segunda Guerra. 

Lisbeth Rebollo Gonçalves - Foto: Francisco Emolo/USP Imagens

Por mais que tenha vivido seus anos de formação entre La Coruña, Madri e Barcelona – sem esquecer de sua Málaga natal, que hoje apresenta dois museus em sua homenagem –, foi mesmo na França que Picasso encontrou seu espaço e fincou suas raízes artísticas e pessoais. Foi em Mougins que Picasso encontrou seu último pied-à-terre para viver os últimos 15 anos de sua vida. O artista não só desenvolveu e aperfeiçoou suas técnicas, como encontrou na França – principalmente na Paris que ele adotou em 1900 e por lá ficou por décadas – os muitos amores de sua vida – todos eles retratados em sua obra. Enumerá-los aqui seria uma tarefa digna de, digamos, Picasso. Mas fiquemos em algumas dessas paixões, talvez as mais marcantes, como Fernande Olivier, que o fez deixar a soturna “fase azul” (1901-1905) e ingressar na chamada “fase rosa” (1905-1907); a bailarina russa Olga Koklova, com quem se casou em 1918; a jovem Marie-Thérèse, de 17 anos (concomitante a Olga, frise-se); a já devidamente citada aqui Dora Maar e Françoise Gilot, esta já nos anos 1940. “Devemos parar de falar das mulheres que passaram por sua vida como se fossem ‘musas’, algumas se suicidaram, outras enlouqueceram. A única que se saiu bem foi Françoise Gilot, a única que o abandonou”, ressaltou Emilie Bouvard, ex-curadora do Museu Picasso de Paris.

Picasso e Françoise Gilot, clicados por Robert Capa em 1948. Mãe de dois de seus filhos, ela foi a única que teve coragem de abandonar o artista. E escreveu um livro sobre isso - Foto: Robert Capa/Reprodução/LFI Magazine

Legenda

Ela tem razão: Françoise Gilot, mãe de dois dos quatro filhos de Picasso – a estilista Paloma Picasso e o fotógrafo e cineasta Claude Picasso –, foi a única que teve a coragem de abandonar o artista. E ainda escrever um livro sobre sua vida, para variar, conturbada com ele. Para quem não está ligando o nome à pessoa: é para Françoise Gilot que Picasso – em um momento raro de subserviência e cavalheirismo explícitos – está segurando um guarda-sol na praia em mais uma imagem icônica do artista. A foto, de 1948, foi feita por outro mito: o fotógrafo húngaro Robert Capa. 

Picasso viveu muito, criou muito, amou muito – e também teve muitos desamores. Mas suas grandes jornadas revolucionárias, suas fases determinantes, foram o precursor Cubismo e depois seu namoro intenso com o Surrealismo, a partir de 1925. “Picasso também tem essa função no século 20 de inspirar uma revolução nas linguagens da arte”, avalia Martin Grossmann, da ECA. Foram justamente essas novas e revolucionárias linguagens que moldaram o artista, transformaram Pablo em Picasso. 

Sua relação com o Surrealismo, inclusive, levou Salvador Dalí – o paroxismo da arte surrealista e do exagero performático – a lhe escrever em um postal, não sem uma boa dose de razão: “Meu caro Pablo, eu te agradeço porque me dou conta que você assassinou não somente a pintura acadêmica, que está morta e sepultada, como também assassinou toda a pintura moderna. Agora poderemos rever os grandes clássicos, como Rafael e Velázquez. Se Picasso não existisse, a pintura moderna iria durar ainda uns 200 anos”. Um gênio indomável falando com outro gênio indomável, mas talvez com uma diferença: se o onírico Dalí era um personagem de si mesmo, Picasso acabou se tornando um ícone em si mesmo.

Neoclassicismo e Surrealismo: 1919-1929

Nu Sentada Secando o Pé, 1921, pastel, 66 x 50,8 cm - Museu Berggruen

Pierrot, 1918, óleo sobre tela, 92,7 × 73 cm - Museu de Arte Moderna, Nova York

Retrato de Olga em Uma Poltrona, 1918, - Musée Picasso, Paris, França


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