São muitas horas da noite
São horas do bacurau
A canção Bicho da Noite é, provavelmente, a aparição de maior alcance envolvendo Sérgio Ricardo nos últimos anos. O povo vai entoando-a no funeral de uma das personagens, em cena do filme de Kléber Mendonça Filho que leva o mesmo nome dessa ave noturna contida na canção de Sérgio Ricardo e Joaquim Cardoso, originalmente composta para a peça O Coronel de Macambira, de 1965.
Bacurau é filme, é ave e também poderia ser a metáfora da vida e obra de Sérgio Ricardo. Escondido na noite, nos galhos de um pé de pau, a toda dança acompanha tocando seu berimbau. Alguém que lamenta as maldades do mundo picando a sombra da noite, um bicho noturno que se importa que o nascer da manhã possa raiar sobre todos com o mesmo calor democrático.
Depois de 1967, quando quebrou o violão no palco em Festival de MPB da TV Record, sua visibilidade diminuiu sensivelmente. Mesmo que sua obra artística tenha continuado a se enriquecer desde então. A ocasião que virou uma marca de sua história – ainda que injusta diante da vastidão de criações e experiências iniciadas por ele – aconteceu na terceira eliminatória do festival. Defendendo a canção Beto Bom de Bola, ele trouxe um coral de operários da fábrica Willys para cantar junto com o lendário grupo instrumental Quarteto Novo. Nada agradou ao público presente na plateia. Foi uma vaia geral, seguida pela reação já tão conhecida do intérprete.
“Eu entendo que a recepção negativa representou a reação de um público avesso a grandes mudanças estéticas naquilo que se considerava uma boa canção de festival. O ano de 1967 marcou certo esgotamento da canção engajada calcada na bossa nova e nos temas folclóricos. Assim, muitos compositores tentaram seguir outros caminhos, pesquisar novas harmonias, novos temas poéticos, novos arranjos. Beto Bom de Bola representa essa tentativa. Entretanto, o público não assimilou uma música que tinha uma melodia mais sutil, um tema polêmico ligado ao futebol e um arranjo experimental.” Assim analisa o historiador Marcos Napolitano, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Napolitano enxerga no episódio uma inflexão na carreira de Sérgio Ricardo. “A partir daí ele segue um caminho bem mais autoral, menos preocupado com as demandas dos públicos de festivais e da indústria fonográfica.”
Se a carreira musical de Sérgio Ricardo ao final dos anos 60 passa por mudanças, antes disso ele tinha experimentado os boleros dos anos 50, a bossa nova nascente e a canção de protesto, da qual foi, com Carlos Lyra, um dos que lançaram suas bases iniciais. Zelão, de 1960, é considerada uma das matrizes do que viria a ser desenvolvido ao longo da década e que, por fim, daria o tom do que passou a ser reconhecido pela sigla MPB.
Artista múltiplo
No prefácio do livro Esse Mundo é Meu: as Artes de Sérgio Ricardo, a historiadora Miliandre Garcia descreve uma síntese das variadas atuações do artista.
“Trabalhou como ator de telenovela na TV Tupi nos anos 1950. Gravou 16 álbuns solos. Compôs trilha sonora para teatro e cinema, de peças do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) a filmes do cinema novo. Dirigiu curtas e longas-metragens. Escreveu o livro infantil O Elefante Branco, com texto e ilustrações suas e a contracapa escrita por Paulo Freire (Salamandra, 1989), o livro de poemas Elo: Ela, com apresentação de Antonio Houaiss (Editora Civilização Brasileira, 1982), e a autobiografia Quem Quebrou meu Violão (Record, 1991). Também se dedicou à pintura, apresentando-nos pelo menos três séries: Transparência (2001), Artistas de Rua (2010) e Entrelaços (2015).”
Por que então um artista tão variado e influente foi posto na noite escura, nas horas do bacurau? Miliandre arrisca uma resposta no prefácio de Esse Mundo é Meu. Sobretudo no que se refere à sua carreira musical, ela aponta fatores de ordem estrutural, especialmente a consolidação da ditadura militar, da qual Sérgio era uma das principais vozes contrárias, e a reestruturação da indústria fonográfica brasileira no final dos anos 60. Outro fator, de ordem mais pessoal, “refere-se à dificuldade do artista em se inserir e permanecer vinculado a um único movimento ou linguagem, o que o levou a se autodefinir como outsider”.
O historiador Rafael Hagemeyer, integrante do Laboratório da Imagem e do Som da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), é um dos estudiosos da obra de Sérgio Ricardo. Ele sublinha a profunda vinculação entre música e dramaturgia em sua carreira. São vários exemplos: a trilha sonora de filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e A Guerra dos Pelados (1970) e peças como O Coronel de Macambira (1965) e Ponto de Partida (1976). Além das trilhas sonoras, Sérgio Ricardo também é autor, ele mesmo, de vários filmes da maior importância. São eles: O Menino da Calça Branca (1961), O Pássaro da Aldeia (1963) – gravado na Síria e do qual não se sabe se há cópias preservadas -, Esse Mundo é Meu (1963), Juliana do Amor Perdido (1970), A Noite do Espantalho (1970), Pé sem Chão (2014) e o último deles, Bandeira de Retalho (2018).
Para Hagemeyer, uma das intervenções mais marcantes de Sérgio Ricardo está presente justamente no cinema, no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Trata-se da cena final, quando o cangaceiro é perseguido e assassinado, tendo ao fundo o canto de Sérgio Ricardo com estes versos:
– Se entrega, Corisco!
– Eu não me entrego, não!
Eu não sou passarinho
Pra viver lá na prisão
– Se entrega, Corisco!
– Eu não me entrego, não!
Não me entrego ao tenente
Não me entrego ao capitão
Eu me entrego só na morte
De parabelo na mão
– Se entrega, Corisco!
– Eu não me entrego, não!
Ao final, Corisco grita, tombando ao chão: “Mais forte são os poderes do povo!”.
Esse grito, de certa forma, pode traduzir vida e obra de Sérgio Ricardo. O sociólogo Marcelo Ridenti lembra que, a partir de certo momento, o artista encarnaria em sua obra certo ideal de povo e de nação inspirado nas raízes do camponês nordestino, mesmo que essa identidade estivesse distante de sua origem paulista com raízes sírias – por sinal, o nome verdadeiro de Sérgio Ricardo era João Mansur Lutfi, substituído durante sua passagem pela TV Tupi.
Ridenti chama a atenção para o desequilíbrio de interpretações que valorizam Glauber Rocha, mas desdenham de Sérgio Ricardo. Como parceiros, “ambos compartilhavam ideias e sentimentos de que estava em curso a revolução brasileira nos anos 1960, na qual artistas e intelectuais deveriam se engajar, rompendo com o poder do latifúndio, do imperialismo e, no limite, do capital. Colocavam a questão da identidade nacional e política do povo brasileiro, buscando ao mesmo tempo recuperar suas raízes e romper com o subdesenvolvimento”, explica o sociólogo.
O posicionamento político de Sérgio Ricardo teve, em seus primórdios, a influência do músico João Gilberto. Como conta no documentário Coisa Mais Linda: Histórias e Casos da Bossa Nova (2005), nas andanças por Copacabana, João Gilberto referiu-se ao interesse do amigo por espiritualidades dizendo algo como: “Isso aí é muito bonito, traz a felicidade. Mas a felicidade plena mesmo é quando você está em relação com o seu semelhante e todos estejam numa mesma situação de felicidade”. Aí, João discorria sobre a miséria do Brasil e, nesses bate-papos, acabou por introduzir menções a Karl Marx. “Foi ele que abriu meus olhos, pela primeira vez, para essa coisa do socialismo”, confessa Sérgio Ricardo no documentário.
A busca pelo povo foi tão profunda em Sérgio Ricardo que ele, na calada da noite em que foi posto, mudou-se literalmente para o Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, onde passou a viver.
Não à toa, deve-se a ele a reverência de ter expressado tão bem os ideais de uma época. Com o sociólogo Marcelo Ridenti, podemos abarcar uma das possíveis análises que resumem a importância de Sérgio Ricardo:
“É claro que havia alcances e limites desse ideário, além de muitas divergências e rivalidades pessoais e de grupo. Aquela época não deve ser idealizada. Mas todos tinham em comum o questionamento da ordem, em disputas, com ecos até hoje, para saber quais seriam os verdadeiramente revolucionários. Não cabe julgar aqueles embates, mas sim compreender os artistas que expressaram de modo diverso as contradições daquela época conturbada, em que se apostou como nunca nas potencialidades criativas de uma nação e de seu povo, promessas ainda não realizadas das quais Sérgio Ricardo foi um representante expressivo.”