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Ornitorrincos, capitalismo e atraso: o pensamento de Chico de Oliveira em debate
Seminário no Centro Maria Antonia vai celebrar o sociólogo e professor da USP como um dos grandes intérpretes do Brasil
O pensamento de Chico de Oliveira será tema de seminário no Centro Maria Antonia da USP, no dia 7 - Foto: Damião A. Francisco/CPFL Cultura via Flickr/Wikimedia Commons
No dia 7 de novembro, Francisco de Oliveira (1933-2019) faria 90 anos. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o “mestre”, como é carinhosamente chamado por ex-orientandos e colegas de ofício, será lembrado através de um seminário que destaca sua posição como um dos intérpretes do Brasil.
Chico de Oliveira, Intérprete do Brasil, acontece a partir das 15 horas no Centro Maria Antonia da USP, em parceria com o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), o Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU), o Departamento de Sociologia da FFLCH, todos da USP, e o Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Serão duas mesas de debate com a participação de professores da USP, da Unifesp e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A entrada é grátis para o público em geral.
Ser considerado um intérprete do Brasil significa lugar especial em um panteão que costuma trazer nomes como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior para se referir a intelectuais transdisciplinares autores de análises cruciais para se entender o País. Entre eles, como as ideias de Chico de Oliveira chacoalham as bases nas quais pensamos a nação?
O professor Alexandre Barbosa, do IEB, um dos organizadores do seminário, começa a conversa falando, em primeiro lugar, de dessacralização da ideia de panteão. “Todo brasileiro não pode ser um intérprete do Brasil?”, provoca, recordando um evento realizado no IEB no início de 2023, que justamente arranhava as interpretações canônicas e propunha nomes como Abdias do Nascimento e Mano Brown para engordar e diversificar a lista.
Chico de Oliveira é uma dessa figuras, talvez mais familiar pela inserção na Universidade, mas não menos provocativa (ressalvando-se que ele mesmo não seguiu os caminhos protocolares e tornou-se professor titular da FFLCH apenas em 1988, após anos longe da academia). O próprio Chico, comenta Barbosa, incluiria no grupo seu mestre Celso Furtado, com quem trabalhou na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) de 1959 a 1964 e que seria uma referência ao longo de sua carreira (não sendo suas reflexões, entretanto, poupadas de críticas, afinal estamos falando de Chico de Oliveira).
Foi Antonio Candido quem disse, em um prefácio para Raízes do Brasil, que Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda foram os intelectuais formadores de sua geração. Sem eles, não era possível pensar o Brasil. Para Chico, era impossível pensá-lo sem Furtado. Seguindo o raciocínio, hoje Chico também é incontornável para uma nova leva de pesquisadores.
Barbosa lembra que Chico integrou a primeira geração de intelectuais “pós-demiurgos”, uma geração que precisou produzir suas interpretações no olho do furação da ditadura militar. Primeira por um lado, mas última por outro. Foi com Chico e seus contemporâneos que se encerrou a era da interdisciplinaridade do pensamento brasileiro. Com uma universidade cada vez mais profissionalizada, termos abrangentes, genéricos e generosos como “intérpretes”, “pensadores” e “intelectuais” cederam área para um vocabulário mais especializado: economistas, filósofos, sociólogos, críticos literários. Todos em seus respectivos guetos, frisa o professor do IEB.
Chico era cientista social de formação, mas foi também chamado de historiador, sociólogo e economista. “Ele tinha um estilo muito peculiar. Era um ensaísta, quase um crítico literário”, afirma Barbosa. Com essa pegada Chico produziria a primeira leitura marxista do desenvolvimento capitalista brasileiro, em Crítica à Razão Dualista (1972), interagindo e tentando superar o mestre Furtado, ao mesmo tempo em que se credenciava para o panteão dos intérpretes do País. A obra ia na contramão das teses que justificam o subdesenvolvimento brasileiro a partir de uma dicotomia entre atraso e modernização. Para Chico, o atraso era justamente parte do processo de modernização do País, vinculado à superexploração dos trabalhadores e à concentração de renda.
Para a professora Joana Barros, da Unifesp, também organizadora do evento e ex-orientanda de Chico de Oliveira, pensar o Brasil excepcionalmente é o traço que une todos esses intérpretes a Chico. “São figuras absolutamente incontornáveis, concordemos ou não com elas, porque a partir da excepcionalidade do enigma brasileiro pensaram o País excepcionalmente.”
Foi o que Chico fez. A Crítica à Razão Dualista se colocou na rota contrária das leituras canônicas a respeito do País, não se acomodando às tradições consolidadas de interpretação da formação social brasileira. A partir de autores não hegemônicos dentro do campo marxista, Chico defendeu a liberdade no uso da teoria, tensionando suas leituras e contrastando uma determinada maneira de pensar o Brasil, aponta Joana.
E tudo isso, sublinha a professora, com um apego central à materialidade da vida. Foi a partir da concretude da formação social brasileira que Chico extraiu seu rendimento teórico. O próprio gatilho para a produção da Crítica demonstra isso. Foi enquanto estava em um banco, prestando atenção às transações financeiras de ruralistas e industriais, que surgiu sua interpretação para o País. Pensamento excepcional aliado a uma ausência de intimidação diante da teoria, segundo Joana.
É a professora Cibele Rizek, do IAU, também organizadora do seminário, que continua essa história. “Chico estava trabalhando no Banco do Brasil em Minas Gerais quando se deparou com uma produção rural absolutamente vinculada à subsistência, atrasada, mas articulada à ponta mais avançada do sistema financeiro.” Nesse ancoramento ao concreto, continua a professora, foi fundamental também sua experiência de pesquisa em favelas da cidade de Santos, observando o trabalho dos mutirões e tirando daí conclusões para suas reflexões.
Concretude brasileira, mas escala internacional. Cibele lembra que Chico fez toda sua interpretação sobre a formação social brasileira em diálogo com as heranças latino-americanas, discutindo a teoria da dependência, a teoria da modernização e o pensamento em torno das atividades da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). “Ele entrelaçou a formação social brasileira com a constituição dos países de passado colonial da América Latina.”
O veredito: um país em exceção permanente, até hoje. Nesse quadro, Chico virou de ponta-cabeça o papel do atraso na constituição do Brasil. Se nas teorias cepalinas e da modernização o atraso era algo a ser superado pela industrialização, com Chico ele é revelado como condição estruturante da nossa formação. “Ele politiza uma dimensão que até então era vista como puramente econômica”, destaca Cibele. O suposto atraso, em Chico, é a condição para um modo de apropriação capitalista.
Eis a excepcionalidade para se pensar o excepcional. No olho do furacão, Chico tenta entender o novo modo de acumulação de capital no Brasil, reunindo política e economia, olhando para o Estado e sua natureza de classe. “Ele vai dizer que o arcaico vitamina o moderno”, destaca Alexandre Barbosa. “Ele está dizendo que esse capitalismo sempre foi desigual. Chico olha para dentro do Estado, para sua estrutura de poder, e para fora do Estado, para sua estrutura de classe. E daí olha para o modo de acumulação dominante e seus modos complementares.”
Era uma resposta direta às ideias do “príncipe da sociologia brasileira”, o professor da FFLCH Fernando Henrique Cardoso, que via o golpe de 1964 como uma revolução burguesa no Brasil. E também uma resposta às leituras canônicas do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e sua perspectiva etapista, na qual a revolução burguesa teria um conteúdo emancipatório e seria um estágio para se chegar na revolução proletária. Ver um potencial civilizador em um golpe anticivilizador era inadmissível para Chico, pontua Cibele.
O que chamamos de atraso é, na verdade, produzido pelo moderno. Essa é a mensagem de Chico, frisa Joana. “O atraso não é um resquício do passado, algo a ser superado, como estava na leitura do PCB, da Cátedra de Sociologia da USP e, em certa medida, nas leituras da Cepal e de Celso Furtado. Ele é condição, não uma maldição eterna, mas produzido pelo moderno. Sem o atraso, essa modernidade não se constituiria no País. Isso é o capitalismo na periferia do mundo.”
Para Chico de Oliveira, é o atraso que produz a modernização brasileira. 'O atraso não é um resquício do passado, algo a ser superado', comenta a professora Joana Barros. 'Ele é condição, não uma maldição eterna, mas produzido pelo moderno. Sem o atraso, essa modernidade não se constituiria no País. Isso é o capitalismo na periferia do mundo'” (professora Joana Barros)
Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso são apenas dois nomes com os quais Chico estabeleceu diálogo ao longo de sua carreira e que serão lembrados na primeira mesa do seminário, dedicada às interlocuções do sociólogo. Serão três eixos, tratando da relação com Furtado na Sudene, com o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), onde passou a atuar a partir de 1969, e com a USP. Instituições por onde passou, deixou contribuições e se apropriou dos debates.
Na USP, Cibele destaca o percurso de Chico no Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic), grupo interdepartamental de pesquisa ligado à FFLCH e que teve Chico e Cibele entre seus fundadores, em 1995. Ao se afastar do Cebrap e ingressar na USP, conta a professora, Chico encontrou uma tradição de reflexão sociológica centrada na figura da professora Maria Celia Paoli.
Abria-se assim um novo conjunto de interlocuções, o contato com jovens pesquisadores e a abordagem da Escola de Frankfurt e das leituras de Maria Celia sobre a pensadora alemã Hannah Arendt. Um tom fortemente sociológico passou então a fazer parte de sua produção. Chico chegaria a ser acusado de ter se tornado um “Adorno dos trópicos”, em referência a um dos pensadores-chave dos frankfurtianos. Teria levado a alcunha como elogio, segundo Cibele.
Barbosa vê em Chico uma capacidade impressionante de “agregar mais valor teórico” em seu trabalho e reconhece que sua grande capacidade era “atar o real ao concreto”. Para o professor, Chico não era o maior conhecedor de teoria entre seus pares, mas sua capacidade de absorver o que ouvia era notável. “Ele escutava as pessoas e ao fazer isso lia milhares de livros”, entusiasma-se. “O exercício de ouvir era parte do processo de reflexão e agregação desse mais valor teórico.”
Se o texto de 1972 habilitou Chico como um dos grandes intérpretes da nação, O Ornitorrinco, de 2003, consolidou o vigor de suas análises, 30 anos depois do livro célebre. E a outra mesa do seminário é fundamentada justamente no breve mas influente ensaio que o homenageado escreveu no início do século 21, usando o animal meio colagem dadaísta para se referir ao Brasil, que deixava os anos do governo de Fernando Henrique Cardoso e adentrava o primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Era um país que havia superado certos aspectos do subdesenvolvimento e onde a acumulação capitalista ia muito bem, obrigado, mas, por outro lado, continuava carregado de desigualdades sociais.
É uma escrita sobre promessas desfeitas, uma nova configuração entre atraso e moderno e, segundo Cibele e com concordância de Barbosa e Joana, um ensaio que deixa absolutamente clara a possibilidade de um governo como viríamos a ter com Jair Bolsonaro. “A expressão ornitorrínica mais acabada desse País foi esse governo”, diz a professora.
De acordo com Cibele, O Ornitorrinco identificou a forma pela qual um governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) – que havia sido uma grande novidade histórica – se tornou um governo de compromisso, que financeirizou e integrou pelo consumo e foi responsável por montar um cenário no qual a possibilidade de uma volta legitimada de um governo autoritário estaria sempre presente. É o retorno do tema do atraso e da modernidade que não emancipa, agora reunido ao desfazer-se da classe trabalhadora como sujeito político.
Para Joana, o texto é uma cobrança a respeito das promessas do campo democrático e progressista, das possibilidades de avanço abortadas. “Chico está dialogando com as experiências dos governos progressistas e mostrando como as promessas que contrarrestavam a violência do capital se transformaram, elas mesmas, em violência e dominação. Obviamente, não há um julgamento moral do Chico, mas um esforço para entender quais são as transformações no âmbito do sistema capitalista que condicionam essas escolhas.”
Barbosa lembra que foi o próprio Chico quem apresentou Lula a Fernando Henrique, durante a campanha para as eleições ao Senado, em 1978. A subida no tom das críticas presente em O Ornitorrinco deriva exatamente desse contato pessoal com os dois presidentes da República. “O rebaixamento do potencial utópico dessas figuras é o que acende a crítica. Chico não admite que elas tenham se tornado isso.”
Para Cibele, rebaixamento é a palavra fundamental. “Chico viu a promessa de integração, a promessa utópica que o PT carregava tornar-se uma espécie de refazer das formas de dominação ainda mais perversa. E por que mais perversa? Justamente porque era produto de um partido dos trabalhadores. E isso era impossível para ele.” Tendo ajudado a fundar o PT no início dos anos 1980, o descontentamento de Chico levaria à ruptura para fundar o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em 2004.
Uma linha tênue entre possibilidade de emancipação e dominação. Um rebaixamento não só das condições objetivas, mas uma regressão também subjetiva. Um cenário que Chico chamou de “anulação política”, como Jacques Rancière, e também de “totalitarismo neoliberal”. “Aquilo que era promessa minguou, o que era possibilidade de superação restituiu as formas de dominação”, pontua Cibele, para quem o bolsonarismo tornou-se a expressão acabada desse processo, dando hoje para O Ornitorrinco uma certa dimensão profética.
Tudo isso em um texto de 40 páginas, que se tornou uma referência para a intelectualidade, destaca Barbosa. Um ensaio que traz maneiras de se pensar novas formas de sujeito, sociedade e Brasil. “Chico é um homem de outro tempo escrevendo em 2003 e acabamos ficando reféns dele, no bom sentido, porque não temos mais ninguém. Reféns porque a Universidade está justamente refém desse tipo de coisas que ele criticou. Nosso desafio é herdar o ornitorrinco e não ficar nessas coisas”, instiga.
O seminário Chico de Oliveira, Intérprete do Brasil acontece no dia 7, terça-feira, das 15 às 20 horas, no Centro Maria Antonia (Rua Maria Antonia, 294, Vila Buarque, em São Paulo, próximo às estações Santa Cecília e Higienópolis-Mackenzie do Metrô). A entrada é grátis para o público em geral. Não é preciso fazer inscrição. A programação completa e mais informações estão disponíveis no site do Centro Maria Antonia.
*Estagiárias sob supervisão de Moisés Dorado
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