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Capa do tomo 1 de Naturalistas, da Editora da USP, publicado em dois tomos que somam 1.728 páginas - Fotos: Freepik e Divulgação/Edusp
Naturalistas quiseram fazer da ciência a base da literatura
Editora da USP lança o volume 2 da Coleção Multiclássicos, que traz as principais obras do Naturalismo brasileiro
“Fica bem entendido que, todas as vezes que uma verdade é fixada pelos cientistas, os escritores devem abandonar imediatamente sua hipótese para adotar essa verdade.”
Essa frase – extraída do livro O Romance Experimental, publicado em 1880 pelo escritor francês Émile Zola (1840-1902) – expressa uma das principais características do Naturalismo, o movimento artístico e literário que se desenvolveu na segunda metade do século 19, quase como um subgrupo do Realismo e em reação ao Romantismo. De acordo com esse movimento – em boa parte moldado pelo evolucionismo de Charles Darwin e pelo positivismo de Auguste Comte -, a literatura deve estar baseada na ciência e o escritor de romances precisa considerar as leis e os princípios científicos antes de elaborar o enredo da sua obra, a fim de se adequar o mais possível a eles. Daí decorre outra característica marcante do Naturalismo – a obsessão pela descrição, pela narrativa que reproduza em pormenores o personagem e seu meio, o que gera, por sua vez, o tipo de narrador em terceira pessoa, objetivo e neutro, cujo modelo é o cientista.
No Brasil, o Naturalismo teve adeptos entre escritores que produziram obras clássicas da literatura brasileira. Seis delas estão publicadas no volume 2 da Coleção Multiclássicos, intitulado Naturalistas, que a Editora da USP (Edusp) acaba de publicar: O Ateneu, de Raul Pompeia, O Homem, de Aluísio Azevedo, A Carne, de Júlio Ribeiro, O Cortiço, também de Aluísio Azevedo, Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, e O Missionário, de Inglês de Sousa. Composto de dois tomos – que somam 1.728 páginas -, o volume traz uma introdução geral, assinada pelo professor Paulo Franchetti, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e ensaios introdutórios sobre cada uma das obras presentes no livro, escritos por diferentes autores. A organização é do professor Thiago Mio Salla, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), também da USP, e do professor Ivan Teixeira, da ECA e da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, que morreu em 2013, quando já trabalhava no volume lançado agora.
Como Paulo Franchetti explica na introdução, o Naturalismo começou a ser discutido no Brasil sob a influência do escritor português Eça de Queiroz (1845-1900), que, em conferências realizadas em Lisboa, em 1871, expôs os principais pontos do Realismo, depois absorvidos pelos escritores naturalistas. Entre esses pontos está a ideia de que o romance moderno deve se fundar sobre a observação e a análise, explorando temas em sincronia com a época em que a escrita é produzida. “O Realismo deve ser perfeitamente do seu tempo, tomar a sua matéria na vida contemporânea”, destaca Franchetti, citando Eça. O estudo do passado deixava de ser objeto da literatura para se limitar à ciência histórica, com suas técnicas e métodos próprios. “No domínio propriamente literário, a novela histórica era recusada como gênero viável, atribuindo-lhe o conferencista sua falsidade e inferioridade enquanto obra literária digna de atenção”, escreve Franchetti. “Se há uma constante na obra romanesca de Eça é esta: a matéria é sempre contemporânea, cabendo à novela histórica, gênero de predileção romântica, apenas o lugar de sátira e pastiche, como se vê em A Ilustre Casa de Ramires.”
Obra-prima do Naturalismo brasileiro
Essas características citadas por Eça de Queiroz estão presentes em O Cortiço, de Aluísio Azevedo, uma das obras publicadas no volume 2 da Coleção Multiclássicos. Para a professora da Unicamp Orna Messer Levin, autora do ensaio que introduz o romance, O Cortiço marca o ponto mais alto da trajetória da escrita literária de orientação científica. “A consagração do livro como obra-prima do Naturalismo brasileiro significou, entre outras coisas, a redenção de um autor cujo nome parecia fortemente associado à prosa ligeira, de escândalo, com apelo puramente comercial”, escreve Orna. “É bem provável que sem a aclamação de O Cortiço Aluísio Azevedo não assegurasse um posto na linha de frente da boa literatura urbana, ao lado de Manuel Antônio de Almeida, José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo.”
Capa de O Cortiço e seu autor, Aluísio Azevedo - Fotos: Wikimedia Commons e Reprodução
Em seu ensaio, Orna cita o ambiente em que se passa O Cortiço, lançado em 1890: “A trama se arma em torno do assunto imobiliário que sensibilizou a sociedade fluminense na segunda metade do século 19. A cidade do Rio de Janeiro sofria havia décadas com a falta de uma política consistente, capaz de responder ao crescimento demográfico. A população urbana tinha aumentado e se diversificado, tanto em termos de composição étnica quanto em relação à estrutura ocupacional”. No livro, a estalagem do personagem João Romão, no Rio, reproduz essa situação. “Os inquilinos de O Cortiço ilustram o chamado operariado urbano, conforme a terminologia da época”, escreve Orna. “Aluísio Azevedo lança luz sobre essa camada mais baixa da sociedade que ainda não havia sido incorporada à prosa do Naturalismo.”
A outra obra de Aluísio Azevedo publicada em Naturalistas, o romance O Homem, de 1887, está centrada na história de Madalena, vítima de uma série de crises nervosas. No ensaio introdutório, o ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) Sergio Paulo Rouanet compara a histeria feminina, tal como aparece no romance, com a noção de histeria concebida pelo médico austríaco Sigmund Freud (1856-1939), o criador da psicanálise. “O livro de Aluísio Azevedo defende, como Freud, a ideia de uma ligação íntima entre a histeria e a sexualidade”, escreve Rouanet. “Em certos momentos, essa ligação é pensada em termos orgânicos – sua sede estaria no útero, como pensava a medicina grega. Em parte, é o que pensa o dr. Lobão. Mas logo acrescenta uma ideia desconcertantemente moderna, a que Freud só chegaria quase 20 anos depois: a de que a gênese da histeria estaria no conflito entre duas instâncias, uma que recalca, em nome da moralidade sexual vigente, e outra que é recalcada”, acrescenta o ensaísta, referindo-se a um dos personagens do romance.
Outro livro presente em Naturalistas é A Carne, de Júlio Ribeiro. No ensaio introdutório, o professor Luís Bueno, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), lembra que a obra de Ribeiro sofreu severas críticas quando foi lançada, em 1888. Segundo o professor, essa recepção tão negativa pode ter sido motivada pela ideia de que o livro seria imoral. Além disso, a personagem principal, Lenita, moça rica, ilustrada e versada em línguas, parecia inverossímil à época – “um tipo falso”, como escreveu o crítico literário Alfredo Pujol. “Passado mais de um século da publicação de A Carne, a questão a se discutir será menos a artificialidade de Lenita que todos se contentaram em denunciar, mas o efeito dessa artificialidade, o que ela pode querer nos dizer”, destaca Bueno.
Capa de A Carne e seu autor, Júlio Ribeiro - Fotos: Wikimedia Commons e Reprodução
Um explosivo discurso sobre o homossexualismo
Já Bom-Crioulo, publicado por Adolfo Caminha em 1895, narra a relação homossexual entre o ex-escravo Amaro e o jovem branco Aleixo. Considerado revolucionário por ser uma das primeiras obras literárias a abordar o homossexualismo, esse livro reproduz ideias expostas pelo psiquiatra alemão Albert Moll em Die conträre Sexualempfindung (“A sensação sexual contrária”), que contribuíram para a descriminalização do ato homossexual, então punido com prisão pelas leis dos impérios alemão e austríaco. “É possível que o ato homossexual seja tachado de imoral pela única razão de que é a minoria que se dedica a ele”, escreve Moll em sua obra, a que Caminha teve acesso através da tradução francesa, publicada em 1893, quando o escritor trabalhava na composição de Bom-Crioulo.
Ao recorrer às ideias de Moll, Caminha produziu um discurso explosivo para seus contemporâneos e surpreendente para as gerações futuras, escreve no ensaio introdutório o professor Tâmis Parron, da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Explosivo porque parecia não condenar um assunto condenável; surpreendente porque parecia afastar da ciência um de seus objetos de estudo”, aponta Parron. “Não havia motivos para o furor nem há razão para a surpresa. As convenções científicas não estão menos presentes neste do que em outros romances do período; elas apenas eram muito novas para os leitores do século 19 e se tornaram muito antigas, após Freud, para os leitores do século 20.”
Capa de Bom-Crioulo e seu autor, Adolfo Caminha - Fotos: Wikimedia Commons e Reprodução
Publicado em 1891, O Missionário, de Inglês de Sousa, aborda um tema que perpassa a história da humanidade – os conflitos entre natureza e civilização. Esse tema é mais preponderante no romance do que o anticlericalismo, que a crítica sempre tomou como mais relevante, na opinião do professor Marcelo Bulhões, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), autor do ensaio introdutório à obra. “A condição de padre do protagonista serve essencialmente para elevar ao paroxismo o conflito fundamental entre civilização e natureza”, escreve Bulhões. “A castidade monástica revela-se, pois, como condição modelar e eloquente da cultura, e a religiosidade institucionalizada apresenta-se como o grau máximo da culpa civilizatória. Ressoa a lição segundo a qual quanto mais tensionado é o arco civilizatório, quanto mais imperativo é o código de proibições, mais intensa é a irrupção do desejo sexual.”
“Tudo em O Missionário parece colaborar para tornar a dicotomia natureza-civilização a razão de ser do romance, permitindo-nos, inclusive, tomar a narrativa sob a forma de uma poderosa alegoria do embate entre o recato civilizatório e a liberdade do homem selvagem, numa versão que contrasta a absoluta continência moral no sacerdócio e o desregramento feliz, livre, na selva tropical”, acrescenta Bulhões.
Capa de O Missionário, publicado sob pseudônimo, e seu autor, Inglês de Sousa - Fotos: Wikimedia Commons e Reprodução
Publicado em 1888, O Ateneu, de Raul Pompeia, é um romance avesso ao consenso, como se lê no ensaio que introduz a obra em Naturalistas, assinado pelo professor Ivan Teixeira. Até 1940, ele foi associado ao Naturalismo, ao Parnasianismo e ao Simbolismo. Depois, passou a ser estudado como um livro ligado ao Impressionismo e ao Expressionismo. “Por causa da possível autonomia estrutural do romance e de sua contínua associação com diversas correntes externas a ele, talvez seja possível imaginar que O Ateneu ainda ofereça alguns desafios quanto ao entendimento não só de sua urdidura romanesca, mas também de sua condição histórica”, escreve o professor.
Para Teixeira, o romance resulta de um “compromisso radical” da existência com a arte. “Isso pretende sugerir que Raul Pompeia, mantendo relação estranha com os códigos de seu tempo, produziu um romance inquietante, com alta densidade estética e que faz ecoar ainda hoje a vibração dos debates de que participou na juventude”, destaca o professor. “Assim, imagino que O Ateneu coloque questões complexas – ainda não discutidas – sobre a relação da arte com a ética, com a estética e com a ideia de prazer e de formação da pessoa.”
Capa de O Ateneu e seu autor, Raul Pompeia - Fotos: Wikimedia Commons e Reprodução
“O segundo volume da Coleção Multiclássicos ora apresentado ao leitor procura dar continuidade a essa ousada proposta de convergência entre trabalho crítico, literário e editorial concebida e iniciada por Ivan Teixeira”, explica o professor Thiago Mio Salla na apresentação da obra. “Antes de nos deixar, o saudoso professor havia selecionado os livros que comporiam o presente volume, bem como definira os respectivos docentes e pesquisadores responsáveis pela apresentação geral do livro e de cada romance aqui recolhido.” Interrompido pela morte do professor, o trabalho foi concluído por Salla, que incluiu informações bibliográficas e editorais sobre os seis romances publicados no volume.
Naturalistas, de Ivan Teixeira e Thiago Mio Salla (organizadores), Coleção Multiclássicos, Editora da USP (Edusp), dois tomos, 1.728 páginas, R$ 180,80.
Volume 1 da Coleção Multiclássicos traz obras épicas
A Coleção Multiclássicos, da Editora da USP (Edusp), foi iniciada em 2008 com a publicação do volume 1, Épicos, organizada pelo professor Ivan Teixeira, na época professor licenciado da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e docente de Literatura Brasileira da Universidade do Texas, nos Estados Unidos.
Relançado pela Edusp em 2021, Épicos traz seis obras que estão nas origens da literatura brasileira: Prosopopéia, de Bento Teixeira, O Uraguai, de Basílio da Gama, Caramuru, de Frei José de Santa Rita Durão, Vila Rica, de Cláudio Manuel da Costa, A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, e I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias. A introdução geral é assinada pelo professor João Adolfo Hansen, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
“O objetivo da Coleção Multiclássicos é oferecer edições confiáveis de autores essenciais na cultura do País, com ênfase em literatura e história, apresentados em edições com apurado rigor editorial”, informa a Edusp em seu site. “Os volumes têm entre três e seis obras, cada uma delas antecedida por um estudo particular, com a relação histórica de suas edições e os respectivos critérios editoriais, acompanhados de glossário.”
Capa do volume 1 da Coleção Multiclássicos, da Editora da USP, lançado em 2008 e republicado em 2021 - Foto: Freepik e Divulgação/Edusp
Épicos, de Ivan Teixeira (organizador), Coleção Multiclássicos, Editora da USP (Edusp), 1.224 páginas, R$ 128,00.
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