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“A essência do camp é sua predileção pelo inatural: pelo artifício e pelo exagero. Camp é esotérico — uma espécie de código pessoal.” É assim que a escritora norte-americana Susan Sontag descreve a estética camp no ensaio Notas sobre o Camp, de 1964. Inspirado nessa obra, o Cinema da USP Paulo Emílio (Cinusp) apresenta a mostra Irreverente Extravagância, uma série de dez curtas-metragens que fazem reimaginar a realidade como algo bizarro, cômico, belo e exótico. Disponíveis no canal do Cinusp no Youtube até 13 de junho, as produções que desafiam a noção de “bom gosto” da arte aguçam a curiosidade e transmitem inúmeras sensações.
Uma delas é a diversão. Essa estética “traz consigo esse potencial do riso irônico, do riso libertador, e que também não deixa de ser contestador”, afirma Victória Okubo, curadora e produtora da mostra. Embora o público não a reconheça, a risada ligada ao camp é muito presente na cultura pop, principalmente nos memes, novelas e nos programas de drag queens, diz Victoria. Além da paródia, outros elementos — como a futilidade e manifestações antinaturalistas e coloridas — caracterizam os curtas como representações da essência camp.
Um exemplo disso é o curta Phyllis, relacionado ao gênero alt-Nollywood, que se refere a filmes que retrabalham os códigos da indústria cinematográfica Nigeriana (Nollywood) com novas possibilidades narrativas. Conforme a sinopse do Cinusp, o filme de baixo orçamento traz cenas inquietantes de uma jovem solitária viciada em assistir a dramas na televisão enquanto troca de perucas coloridas para imitar os personagens, sem deixar de comover com a beleza artificial dos elementos que compõem seu universo.
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Também com poucos recursos, mas bem-humorado, o curta Leona Assassina Vingativa 4: Atrack em Paris se passa em Recife. No melodrama, a travesti paraense Leona Vingativa, que alcançou visibilidade nacional a partir de uma série no Youtube, enfrenta sua arquirrival, a Aleijada Hipócrita. Malu de Castro, curadora e produtora do Cinusp, conta que essa paródia de novela cômica desafia normas sociais e ainda elenca diversas representações identitárias que conquistam seu espaço no cinema. As histórias, que começaram como brincadeira, com fundos precários, memes e o descompromisso com as convenções do cinema tradicional, tornaram-se um hit da internet.
Em dois curtas-metragens as mulheres possuem papéis centrais no mínimo curiosos e os homens são representados de forma caricata, debochada e crítica. No musical Três Exemplos de Mim como Rainha, Anna Biller, diretora e protagonista, interpreta uma rainha melancólica do Oriente Médio, uma abelha-rainha e uma adolescente que é transformada em rainha pelos homens. Já a personagem principal de Folguedos no Firmamento se inspira ao assistir no cinema drive-in um curta sobre a emancipação de Ada Rogato, a primeira aviadora do Brasil, fazendo uma crítica ao comportamento de mulheres e homens da época. Malu de Castro comenta que é um filme raro, pouco exibido, modelo de uma obra excelente dirigida por uma mulher ainda nos anos da ditadura militar brasileira (1964-1985).
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Em relação à temática com viés político, A Cristalização de Brasília expõe algumas perspectivas sobre a formação da capital, desde a migração até a participação da religião na política. Victória Okubo destaca a estética camp na obra, como as colagens e os efeitos especiais, numa paródia do formato de vídeo institucional. A sátira política também está presente em Soberba, por meio de maquiagem e figurinos escandalosos, alguns representando animais, o Exército e alegorias dos pecados capitais. Uma alusão a paradas nacionalistas demonstra uma hierarquia inadequada à democracia.
Victória Okubo também descreve o curta Trailer para Amantes do Proibido, “um curta musical que traz uma paródia dos motes das telenovelas, como o dramalhão, a reviravolta e os personagens-tipos, para contar a história clássica do homem que foge com a amante”. Conforme a sinopse do Cinusp, as jornadas dos amantes, recheadas de números musicais grandiosos e figurinos exagerados, são marcadas por suas vinganças em grande estilo, diretamente influenciadas pelas reviravoltas dramáticas das telenovelas.
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A estética camp promove uma viagem repleta de sensibilidade, com duplos sentidos e uma sexualidade refinada, que se alia à beleza andrógina (sem a definição preestabelecida de características de gênero). Segundo o ensaio de Sontag, há uma tendência ao exagero das características sexuais e aos maneirismos da personalidade. Isso está representado nos curtas Kustomm kar kommandos e Scorpio rising. O primeiro lembra comercial de carro, com um jovem loiro que lustra seu veículo. Já o segundo mostra um grupo de motoqueiros. Esse curta banaliza símbolos sagrados e faz referências ao fetichismo e ao nazismo.
O filme Strawberry Shortcut e Pickle Surprise compõe um especial culinário cheio de duplos sentidos sob o comando de drag queens. Em uma espécie de comercial televisivo da década de 1980, drag queens com maquiagens chamativas e muito brilho divulgam os produtos.
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De acordo com Victória Okubo, a mostra faz o público refletir sobre duas questões importantes: qual o lugar dos moldes estéticos, estilísticos e narrativos tidos como dominantes e o porquê de elementos e obras que fogem desses padrões serem colocados no lugar de uma arte ruim ou inferior e serem muitas vezes rechaçados e condenados ao limbo. Para a curadora, Irreverente Extravagância possibilita a reflexão sobre o profundo relacionamento do camp com as questões de gênero, sexualidade, raça e classe.
Malu de Castro afirma que a mostra procura levar um pouco de diversão e rebeldia ao público, incorporando manifestações autênticas e originais do cinema. Mas sem deixar de levar a sério o valor artístico que possuem a cafonice e o bizarro.
A mostra Irreverente Extravagância, do Cinema da USP Paulo Emílio (Cinusp), fica em cartaz até 16 de maio no canal do Cinusp no Youtube. A programação completa do evento e mais informações estão disponíveis no site do Cinusp.