Cena do filme Afronautas - Foto: Divulgação/Cinusp

Mostra do Cinema da USP traz filmes que revisam a história

Produções do Brasil e do exterior dão nova visão sobre fatos conhecidos apenas por versões oficiais

26/04/2021

Por: Juliana Alves
Arte: Simone Gomes

O discurso oficial é narrado pelos vencedores. A história é relatada de maneira conveniente, molda acontecimentos, apaga vestígios e obscurece até mesmo identidades e nações. A nova mostra do Cinema da USP Paulo Emílio (Cinusp), Inscrevendo Passados no Horizonte, que começou no dia 19 passado e vai até 16 de maio no Youtube, apresenta filmes que têm como protagonistas grupos silenciados pela história tradicional e que hoje denunciam injustiças sofridas e resistem. São memórias de pessoas negras, mulheres, povos indígenas, LGBTQIA+ e exilados. “Com isso, o Cinusp pretende possibilitar a seu público o acesso a um riquíssimo leque de narrativas pouco conhecidas pela maioria de nós”, afirma Nayla Guerra, uma das curadoras da mostra.

“Por meio da arte, grupos historicamente marginalizados e com pouco acesso aos meios de produção estão conquistando cada vez mais espaço no meio cinematográfico, reivindicando o protagonismo das próprias histórias”, comenta Nayla. Ela conta que o título da mostra, Inscrevendo Passados no Horizonte, transmite a ideia de mescla do passado, presente e futuro, em um gesto tanto de preservação da memória ancestral quanto de projeção de mundo para as próximas gerações.

Cena do filme Preces Precipitadas de Um Lugar Sagrado Que Não Existe Mais – Foto: Divulgação/Cinusp

Exemplo disso é o curta-metragem afrofuturista Afronautas, que conta uma história baseada no programa espacial da Zâmbia, na África, que pretendia enviar ao espaço uma jovem e dois gatos, enquanto os Estados Unidos planejavam o lançamento do Apollo 11. No filme cheio de imagens que unem tecnologia e precariedade, há um possível  desfecho para a história: a chegada da astronauta à Lua.

Há curtas que partem de uma história individual para recuperar uma história coletiva, como em Inconfissões. A partir de fotos, filmes e cartas, é apresentada a vida íntima de Luiz Galizia, figura importante para o teatro paulistano. Nesse filme, Ana Galizia reconstrói as memórias perdidas do tio sobre a sexualidade dele. Há cenas desde celebrações da comunidade LGBTQIA+  nos anos 70 e 80 até a morte do artista, em decorrência da Aids.

Cena do filme Babakiueria – Foto: Divulgação/Cinusp

 BabaKiueria e Thinya são curtas que têm como componente principal a inversão histórica. No primeiro, os papéis de colonizadores e colonizados são invertidos para evidenciar as ideias racistas e segregacionistas propagadas pelo governo, polícia e pela mídia na Austrália. Numa sátira com tom de documentário, apresenta a história de colonizadores aborígenes que colonizam e oprimem os nativos brancos. Anos depois, uma repórter relata a condição de inferioridade dos brancos na sociedade babakiueriana, além de rituais exóticos. Na mesma perspectiva, Thinya revisita registro de um colonizador europeu sobre a “descoberta” de povos indígenas no Brasil. Ironicamente, esses relatos são apresentados em yatê, idioma tradicional do povo fulni-ô, originário de Pernambuco, sobrepostos às imagens de europeus em situações cotidianas. 

Ainda em relação à temática anticolonial, no média-metragem A Febre uma menina em estado febril, filha de exilados políticos marroquinos, sente um fantasma: uma exilada. A partir daí as duas se tornam uma única viajante que percorre um edifício em ruínas, ruas e campos, que parecem ser também suas memórias perdidas. Numa mistura de documentário e ficção, a menina, cuja voz não se escuta, expõe recordações de seus familiares, que lutaram pela independência do Marrocos (1956) e na Primavera Árabe (2011).

Cena do filme Inconfissões – Foto: Divulgação/Cinusp

Com caráter mais crítico contra a dominação da Palestina, os dois curtas Seu Pai Nasceu com 100 Anos de Idade, Assim Como a Nakba e No Futuro Eles Comiam na Melhor Porcelana tematizam o apagamento histórico de um povo. No primeiro, uma senhora palestina faz uma visita virtual, através do Google Maps, à sua terra natal, após décadas de exílio, e busca por seu filho ainda criança, misturando passado e presente nas paisagens. O segundo mostra uma distopia sobre um grupo de “terroristas arqueológicos” que enterra porcelanas para criar documentos históricos como desejo de se contrapor ao discurso oficial: quem governa usa a memória como ferramenta de exclusão ao escolher quem será lembrado.

Também com a intenção de alterar o passado, jovens de Fortaleza (CE), personagens de Preces Precipitadas de um Lugar Sagrado que Não Existe Mais, são levados para uma zona no espaço-tempo, interferem no passado escravocrata e buscam desmontar o monopólio do futuro para enfim contar suas próprias histórias.

Em História e Memória: para Akiko e Takashige, a diretora nipo-estadunidense Rea Tajiri expressa o trauma familiar marcado por um acontecimento pouco mencionado da história dos Estados Unidos: os campos de concentração para japoneses e seus descendentes – cerca de 120 mil pessoas -, durante a Segunda Guerra Mundial. As memórias de seus pais e avós se tornam praticamente os únicos registros de uma história real de horror.

Cena do filme No Futuro Eles Comiam na Melhor Porcelana – Foto: Divulgação/Cinusp

No filme NoirblueDeslocamentos de uma Dança, a performer e realizadora, Ana Pi, propõe um mergulho na experiência da diáspora africana através da dança, apresentando o corpo negro, sob o véu azul, como aquele que vivencia simultaneamente tempos distintos. Em meio a movimentos e descobertas de palavras reminiscentes das línguas africanas no português, ela relata sua visita ao continente africano, onde evoca a ancestralidade e o pertencimento e almeja um futuro negro de liberdade plena.

Com esse grupo de filmes inventivos e esteticamente sofisticados, o Cinusp convida o público a testemunhar e a participar dessa luta contra a invisibilidade, que busca resgatar e ressignificar histórias, segundo outra curadora da mostra, Maia de Paiva. Nesse processo, a imaginação, a criatividade e o cinema se revelam armas poderosas de reconstrução de memórias e da própria história, acrescenta a curadora.

A mostra Inscrevendo Passados no Horizonte, do Cinema da USP Paulo Emílio (Cinusp), fica em cartaz até 16 de maio no canal do Cinusp no Youtube.  A programação completa do evento e mais informações estão disponíveis no site do Cinusp.


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