Flávio Josefo preserva riquezas e dramas do mundo judaico antigo

Lançado pela Editora da USP, livro traz 30 artigos sobre o historiador judeu que viu a destruição do Templo de Jerusalém

 16/02/2024 - Publicado há 10 meses

Texto: Roberto C. G. Castro

Arte: Gabriela Varão

O historiador judeu romano Flávio Josefo - Fotomontagem: Jornal da USP - Imagens: Wikimedia Commons, Domínio Público

Naquele tempo, surgiu Jesus, um homem sábio, se é que se deve chamá-lo de homem. Porque ele realizava obras maravilhosas, um mestre do qual se recebe com prazer a verdade. E ele conquistou muitos judeus e muitos gregos. Ele era o Cristo.

Esse é um trecho do Testimonium Flavianum, como ficou conhecido um curto parágrafo do livro Antiguidades Judaicas, escrito no século 1 pelo historiador judeu romano Flávio Josefo, que constitui uma das mais antigas referências extrabíblicas a Jesus Cristo. Desde o século 16 contestado por eruditos renascentistas – duvidosos de que um autor judeu pudesse se referir ao fundador do cristianismo de forma tão favorável , esse parágrafo é tema de um dos 30 artigos de diferentes autores publicados no livro Flávio Josefo – Um Compêndio, organizado pelas professoras Honora Howell Chapman, da Universidade Estadual da Califórnia, nos Estados Unidos, e Zuleika Rodgers, da Universidade de Dublin, na Irlanda, que acaba de ser lançado pela Editora da USP (Edusp).

“É surpreendente que este livro seja o primeiro compêndio acadêmico sobre os escritos de Flávio Josefo. Desde a Antiguidade até os dias atuais, suas obras têm servido como uma fonte incomparável para o conhecimento do mundo da Judeia do período romano”, escrevem as organizadoras na Introdução do volume, lembrando que o historiador judeu é fundamental para se conhecer assuntos como a destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70, o ambiente social e político da Judeia romana e os movimentos religiosos da época, entre outros.

Flávio Josefo viveu no século I e escreveu quatro obras: Guerra Judaica, Antiguidades Judaicas, Autobiografia e Contra Ápio - Imagem: Domínio Público/Wikimedia Commons

Com 630 páginas, o livro dá destaque para as quatro obras preservadas de Flávio Josefo – Guerra Judaica, Antiguidades Judaicas, Autobiografia e Contra Ápio. Sobre Guerra Judaica, que narra a história do povo judeu desde a Revolta dos Macabeus, em 167 antes de Cristo, até a destruição do Templo de Jerusalém, por ordem de Tito – da qual Josefo foi testemunha ocular -, o pesquisador canadense Steve Mason, da Universidade de Groningen, na Holanda, escreve: “A Guerra Judaica merece seu lugar entre os textos ocidentais mais influentes, embora não pelas razões que a fizeram sobreviver. Nela encontramos um aristocrata judeu vivendo em Roma e escrevendo em grego dez anos após a destruição de Jerusalém. Josefo administra a extraordinária tarefa de combinar sua cultura nativa com a política, a retórica e os discursos historiográficos gregos, embora se distancie dos ‘gregos’ para fortalecer o vínculo com a sociedade que o acolheu. Ele mapeia a interação da cultura romana com a judaica ao longo de um quarto de milênio para explicar como, embora os romanos tenham favorecido o domínio da Judeia no sul da Síria e os líderes de Jerusalém tenham sempre confiado neles, esse consenso foi rompido sob a pressão de antigas rivalidades locais”.

Manuscrito medieval do livro Antiguidades Judaicas - Imagem: Domínio Público/Wikimedia Commons

Antiguidades Judaicas é a obra mais extensa de Josefo. Nela, o historiador faz um relato sobre a trajetória dos judeus desde o início dos tempos até a Primeira Guerra Judaico-Romana (66-73). “Embora a primeira parte do trabalho acrescente pouco ao nosso conhecimento da história do período bíblico que ela cobre, a segunda parte continua sendo a fonte básica para qualquer história sobre o período do Segundo Templo”, escreve o professor Daniel Schwartz, da Universidade Hebraica de Jerusalém, autor do artigo sobre Antiguidades Judaicas. “Além disso, essas duas partes do seu trabalho nos apresentam uma rica compreensão dos interesses e valores que defendia, no contexto do mundo romano-judaico do final do primeiro século, no qual ele escreveu. Historiadores, críticos de fontes e de composições literárias podem encontrar em Antiguidades Judaicas campos férteis de trabalho.”

A Autobiografia trata menos da vida de Josefo e mais dos valores, ideias, estilos e interesses literários do historiador, segundo Steve Mason, que também assina o artigo sobre essa que é a mais breve das obras de Josefo. Ao que parece – considera Mason –, o historiador utiliza essa obra para combater inimigos políticos e literários, como o também historiador judeu Justo de Tiberíades. “Josefo explora uma série de adversários, rivais e acusadores, usando como contraponto sua vilania para iluminar suas virtudes. Eles vão do infame João a outros anônimos de Jerusalém. Justo, com suas novas acusações, longe de preocupar Josefo, une-se a um incontável número de perdedores que ousaram desafiar o nosso personagem. Seu completo desdém por esses indivíduos prepara o caminho para lidar com firmeza com todos os porta-vozes de posições antijudaicas em Contra Ápio.”

Contra Ápio é um livro em que Josefo se dedica a duas tarefas: provar a antiguidade do povo judeu e refutar acusações antijudaicas, em especial as desferidas por um gramático egípcio de nome Ápio. “Uma vez que alguns filósofos estoicos consideravam que as culturas antigas e pré-gregas poderiam provar a existência de uma filosofia ‘natural’ primitiva, Josefo foi capaz de tirar vantagem do interesse intelectual comum pela antiguidade de povos fora das esferas grega e romana; se ele pudesse demonstrar que o povo judeu preservou tradições antigas e independentes, isso ajudaria a aumentar seu prestígio”, analisa o professor John Barclay, da Universidade de Durham, na Inglaterra, que escreve sobre Contra Ápio em Flávio Josefo – Um Compêndio.

Em relação às “calúnias” que Josefo combate no livro, continua Barclay, é possível que as acusações de Ápio tenham suscitado em Roma opiniões negativas sobre os judeus. “De todos esses estereótipos, a peculiaridade judaica foi talvez a mais prejudicada, e não é de estranhar que Josefo passe grande parte de sua seção final explicando por que certas diferenças são importantes e até filosoficamente admiráveis, enquanto, ao mesmo tempo, enfatizam a simpatia dos judeus para com todos os que deles se aproximam”, escreve o professor. “Portanto, ele tem o cuidado de concluir sua obra com um retrato positivo sobre as formas como os não judeus imitam costumes judaicos e as importantes virtudes envolvidas.”

Capa do livro lançado pela Editora da USP (Edusp) - Imagem: Reprodução/Edusp

A Bíblia, escritos cristãos e literatura grega

Dos 30 artigos publicados em Flávio Josefo – Um Compêndio, cinco são dedicados ao contexto literário em que Josefo escreve suas obras. Esse contexto é marcado pelos textos sagrados do judaísmo, como a Torá e os livros proféticos e sapienciais, os primeiros escritos do cristianismo – que depois iriam formar o chamado Novo Testamento – e a literatura grega difundida no Império Romano.

A destruição de Jerusalém pelos romanos - Imagem: Domínio Público CC0

De acordo com o professor Paul Spilsbury, da Universidade Ambrose, no Canadá, que assina o artigo Josefo e a Bíblia, as Escrituras judaicas moldaram profundamente a identidade pessoal e as perspectivas históricas de Josefo. Mas Spilsbury ressalva que, como outros escritores judeus helenísticos de sua época, a relação de Josefo com as Escrituras estava longe de ser passiva. “De fato, sempre o vemos empenhado em organizar, moldar e retrabalhar criativamente a narrativa bíblica para alcançar seus objetivos, sejam eles políticos, retóricos, sociológicos ou religiosos”, destaca o professor. “Uma compreensão abrangente de Josefo deve estar atenta a essa questão. Ao fazer isso, entendemos melhor o poder da narrativa bíblica na formação de identidades e também as importantes mudanças e transformações que podem ser feitas por meio de textos religiosos.”

A respeito da literatura grega, encontram-se nas obras de Josefo recursos que parecem refletir as tendências culturais do mundo circundante, como aponta o pesquisador Eran Almagor no artigo Josefo e a Literatura Imperial Grega. Entre esses recursos estão técnicas empregadas por sofistas da época em suas declamações públicas. De acordo com o pesquisador, os oradores “se esforçavam para se expressar mostrando sua identidade, aparência, circunstâncias e educação, para se tornarem pessoas públicas a serem honradas e aceitas como parte da elite cultural”.

Para atingir seu objetivo e ser aceito, porém – continua Almagor –, o orador deveria afirmar repetidamente sua posição de figura externa e responder às exigências de desvio da tradição e atitude inovadora. Como resultado dessa prática, os sofistas em Roma desenvolveram a capacidade de transitar entre diferentes mundos e culturas. Almagor conclui: “Essa presença liminar, tanto dentro como fora dos centros de cultura gregos, também se reflete nas obras de Josefo. Ele não estava totalmente integrado à paideia e à língua gregas, mas de alguma forma conseguiu isso. Ele se situava entre gregos e bárbaros e fazia parte da rebelião contra os romanos, mas não inteiramente, e ainda assim estava presente em quase todas as decisões importantes do momento, apresentando-se como um agente histórico único. Como um judeu romano, que afirmava estar próximo dos círculos de poder, não é de estranhar que tenha enfatizado a experiência histórica do exílio da elite judaica, tal como a de Josefo, ou a de Ester”.

Detalhe do Arco de Tito, em Roma, que se refere à destruição de Jerusalém, no ano 70 - Imagem: Domínio Público/Wikimedia Commons

Josefo pode ter sido uma fonte de informações para os autores dos primeiros textos cristãos, de acordo com a professora Helen Bond, da Universidade de Edimburgo, na Escócia, autora do artigo Josefo e o Novo Testamento. Entre as “várias conexões” que se podem estabelecer entre o historiador judeu e os escritores cristãos, segundo a professora, estão as semelhanças verificadas entre as respectivas obras. Por exemplo, o Evangelho de Lucas e os Atos dos Apóstolos incluem referências ao censo de Quirino, uma descrição da morte de Agripa I, rei da Judeia de 41 a 44 antes de Cristo, e uma nota sobre a fome durante o governo do imperador Cláudio que surgem de forma parecida também em Guerra Judaica e em Antiguidades Judaicas.

Cada uma à sua maneira, as narrativas também são semelhantes, acrescenta Helen: tanto Lucas como Josefo procuram destacar a posição do seu próprio grupo, enfatizando sua antiguidade e virtudes, destacam sua história harmônica, sugerem que os problemas vieram de fora e mostram que nenhum dos grupos é uma ameaça à paz e à estabilidade romanas. “Vários estudiosos propuseram uma conexão entre os dois trabalhos”, informa a professora. “Mais comumente, defende-se que Lucas leu (ou ouviu uma apresentação de) parte ou todo o texto de Antiguidades Judaicas, de Josefo.”

Outros artigos publicados em Flávio Josefo – Um Compêndio abordam temas como a arqueologia da Galileia, os asmoneus, Herodes o Grande, seitas judaicas e literatura rabínica, sempre em relação com a obra do historiador. A história da transmissão e recepção dessa obra também é analisada em artigos do livro, entre eles As Traduções Latinas Antigas de Josefo, Josefo e a Literatura Patrística, A Versão Eslava de Guerra Judaica de Josefo e Josefo na Itália Renascentista

Flávio Josefo – Um Compêndio, de Honora Howell Chapman e Zuleika Rodgers (organizadoras), tradução de Ivan Esperança Rocha, Editora da USP (Edusp), 630 páginas, R$ 170,00.


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