Filme denuncia o esquecimento e impunidade do caso Herzog

Evento “Ecos de 1968 – 50 Anos Depois” traz, nesta sexta-feira, longa sobre o jornalista morto pela ditadura

 03/10/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 16/10/2018 as 14:53
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O falso suicídio de Herzog – Foto de Sinvaldo Leung Vieira.

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Este é um filme que eu deveria ter feito há muito tempo. Um filme sobre o jornalista Vladimir Herzog, assassinado em uma prisão militar há 30 anos, em um inesquecível 25 de outubro de 1975. Vlado, como era mais conhecido por familiares e amigos. Era muito meu amigo e sua morte me chocou profundamente. Eu que sempre filmava tudo, chocado e abatido com a morte do amigo, não filmei nada. Mas fiquei com a sensação de que havia uma falha na minha carreira, filmografia. É uma falha que tento corrigir agora. Dedico esse filme à memória do meu amigo, onde eu vou falar sobre os anos de chumbo.”

O diretor João Batista de Andrade – Foto: Victor de Andrade Lopes via Wikimedia Commons/ CC BY-SA 4.0

Com esse depoimento, o cineasta João Batista de Andrade abre o filme Vlado, 30 Anos Depois, lançado em 2005. O filme será apresentado nesta sexta-feira, dia 5, às 16 horas, como parte da programação do evento Ecos de 1968 – 50 Anos Depois, no Centro Universitário Maria Antonia (Ceuma) da USP. No mesmo dia, às 19 horas, será exibido também o filme Que Bom Te Ver Viva, de Lúcia Murat (leia abaixo).

No próximo dia 25, a morte do jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Vladimir Herzog, “ainda sem resposta”, completa 43 anos. Essa falta de investigação foi cobrada, em março, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e divulgada em julho deste ano. Segundo a CIDH, a Lei de Anistia, de 1979, não justifica a falta de punição dos culpados, daí condenar o Estado brasileiro pela falta de investigação dos responsáveis pela tortura e assassinato de Herzog no Doi-Codi em São Paulo.

A professora Margarida Kunsch, coordenadora geral do evento Ecos de 1968 – 50 Anos Depois, afirma que o público tem a oportunidade de conhecer a história e o contexto da época e o ambiente social, político e universitário das décadas de 1960 e 1970. “Será um momento de reflexão e de sensibilização sobre a importância da democracia e as problemáticas de sua ausência para uma sociedade e uma nação.”

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Não temos imagens dos torturadores, do medo, dos aparelhos de repressão.

 

O filme de João Batista de Andrade busca refletir sobre uma questão que, depois de 43 anos, já deveria ter sido respondida: quem matou Vlado? O filme começa com Andrade caminhando na Praça da Sé, em São Paulo, e colocando uma cadeira de diretor de cinema em frente da Catedral da Sé, onde, no dia 31 de outubro de 1974, quase 10 mil pessoas participaram de um ato ecumênico para homenagear Vladimir Herzog. Foi um ato ecumênico, em plena ditadura, com a organização do cardeal arcebispo dom Paulo Evaristo Arns e a participação do rabino Henry Sobel,da Confederação Israelita Paulista, e do pastor presbiteriano Jaime Wright.

“Será a ‘cadeira dos depoimentos’”, observa o cineasta, enquanto arma a cadeira vermelha. A sua expectativa foi reconstituir, a partir dos depoimentos dos cidadãos, dos amigos e familiares, a história de Vlado e a sua prisão e morte no mesmo dia. “É claro que vamos ter imagens preciosas do Vlado, da Clarice, do culto ecumênico que marca o começo do fim da ditadura.” O diretor explica aos espectadores que será um filme com poucas imagens. “Não temos imagens dos torturadores, do medo, dos aparelhos de repressão.”

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O povo brasileiro sabe muito pouco ou quase nada de Vlado. Sua história permanece como uma brasa debaixo das cinzas.

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Andrade interroga os que passam pela Praça da Sé:

– Vocês conhecem Vladimir Herzog?
– Não, nunca ouvi falar.
– É um jornalista morto pela ditadura militar.
– O que você sabe sobre o jornalista Vladimir Herzog?, insiste o cineasta.
– Se não me engano, falaram que ele se suicidou na cadeia, mas fizeram uma armação.

Nessa pesquisa informal, Andrade observa: “O povo brasileiro sabe muito pouco ou quase nada de Vlado. Sua história permanece como uma brasa debaixo das cinzas”.

Essa brasa se acende no olhar dos entrevistados: Clarice Herzog e o filho Ivo, dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel, Fernando Morais, José Mindlin, Ruy Ohtake, Clara Sharf, Paulo Markun, Alberto Dines, Sérgio Gomes, Duque Estrada, Delia Frate, Rodolfo Konder, Mino Carta, João Bosco, Aldir Blanc, Rose Nogueira, Fátima Jordão e Miguel Urbano. Algumas gravações ficam fora de foco, saem tremidas. Apesar de experiente – Vlado, 30 Anos Depois é o seu 24º longa –, o cineasta deixa passar a sua emoção diante dos depoimentos. Ficou meses gravando. Filma o entrevistado sentado na “cadeira dos depoimentos”, com a câmera na mão. O tom da conversa é sempre muito pessoal, resgatando o perfil de Vladimir Herzog, amigo dedicado, quieto, culto, determinado, casado, dois filhos.

A série de entrevistas começa com o depoimento de Ruy Ohtake, seu amigo de infância. “Estudei sete anos junto com Herzog, lado a lado, na mesma classe, íamos juntos para a escola. O Vlado sempre foi uma pessoa frágil de saúde, não gostava de comer. A mãe dele me dizia: ‘Ruy, incentiva o Vlado a comer’. Sempre quieto, taciturno, com um livro debaixo do braço. Por causa do Vlado fui ler Dostoiévski.”

Herzog, com Clarice e Ivo: vítimas de crime de Estado. Na Sé, culto ecumênico histórico desafiou a ditadura – Foto: Reprodução / Instituto Vladimir Herzog e Acervo EM

Ivo Herzog busca as cenas junto do pai. “Lembro pouco. Era amigo do Thomas Farkas e, quando comprou um telescópio, minha mãe me acordou para ver os anéis de Saturno.” Fernando Morais comenta: “Ele sabia o que queria”.

Os depoimentos dos jornalistas Paulo Markun, Duque Estrada e Rodolfo Konder trazem as cenas de tortura no Doi-Codi. Contam como os jornalistas foram encapuzados, presos e levados para a chamada “cadeira do dragão” para serem torturados com choque elétrico. E serem, como eles próprios ressaltam, desmoronados com a sensação de serem quebrados pelo resto de suas vidas.

Clarice lembra: “Eu estava lá em casa e chegaram dois caras procurando Vlado para fazer fotos de casamento. Eu disse que ele não era fotógrafo. Perguntaram onde ele estava. Falei que estava na TV Educativa. Sabia ir , mas não tinha o endereço. Eles disseram que iriam procurar. Liguei para o Vlado, que estava entrando na cabine para gravar o seu último programa e avisei. Tirei as crianças da cama. Achei que chegaria antes, mas não deu tempo. Eles já estavam lá.”

Duque Estrada e Rodolfo Konder ouviram Vlado ser torturado, receber choque elétrico. Depois, o silêncio logo que morreu. Os jornalistas mudaram de sala e perceberam que iriam tirar o corpo de Vlado da sala ao lado. Foi assassinado aos 38 anos.

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Filme de Lúcia Murat mostra a violência da ditadura militar contra as mulheres

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Que Bom Te Ver Viva
, filme de Lúcia Murat, lançado em 1989, que será exibido às 19 horas desta sexta-feira, dia 5, no evento Ecos de 1968 – 50 Anos Depois, no Centro Universitário Maria Antonia, reconstitui a história das mulheres presas e torturadas na ditadura militar. Uma realidade que até hoje é difícil de enfrentar por essas próprias mulheres.

Emocionadas, elas lembram o passado de torturas, de choques elétricos nos órgãos genitais, de dias e noites penduradas no pau-de-arara. Porém, tinham um sonho. Não de morrer por um Brasil que idealizavam, mas de sobreviver pela esperança de ter filhos e lutar por eles.

A diretora Lúcia Murat – Foto: Reprodução Programa 3 a 1 da TV Brasil via Wikimedia Commons / CC BY 3.0 br

A diretora Lúcia Murat, que nasceu no Rio de Janeiro em 1948, traz a sua própria experiência pessoal. Militante de um grupo estudantil, entrou para a luta armada e integrou o MR-8. Foi presa em 1971 e ficou três anos e meio encarcerada. “Tenho até hoje um problema de sensibilidade na perna devido à tortura. Fiquei presa na Vila Militar e depois no Presídio Talavera Bruce, em Bangu.”

Lúcia foi solta em 1974, mas continuou respondendo a processos em liberdade. “Fui perseguida por grupos paramilitares, porém fiquei no Brasil, sendo anistiada em 1979.”

Que Bom Te Ver Viva, seu segundo filme de uma lista de onze que vem dirigindo desde 1984, tem uma personagem fictícia que faz a narração. Irene Ravache é a mulher que concentra a dor e o trauma de todas as oito presas políticas que participam do documentário. Começa o filme perguntando: “Vejo e revejo as entrevistas e a pergunta permanece sem resposta. Talvez o que eu não consiga admitir é que tudo começa aqui, na falta de respostas. Acho que devia trocar a pergunta: em vez de perguntar ‘por que sobrevivemos?’, deveria perguntar ‘como sobrevivemos?’”.

A violência na Baixada Fluminense é pior do que a violência na ditadura.

Lúcia Murat mostra como as mulheres seguiram em frente, trabalhando, estudando e educando seus filhos e os alunos das escolas onde algumas lecionam.

Maria do Carmo Brito, casada, com dois filhos, educadora, integrou o comando da organização guerrilheira VPR. Foi presa em 1970 e torturada no decorrer de dois meses. “A primeira coisa que eles faziam era despir as mulheres. Eles me colocaram no pau-de-arara e, quando ficava menstruada, eles pegavam uma calça suja, velha, e me cobriam, porque não queriam ver aquela cena do sangue escorrendo. Depois me jogavam num aquário e me colocavam no pau-de-arara de novo. Lembro que uma vez eles pararam e um sujeito veio medir minha pressão. Aí ele disse que poderiam continuar porque eu tinha pressão de atleta.” Maria do Carmo foi trocada por um embaixador alemão e ficou dez anos no exílio.

A atriz Irene Ravache em cena do filme Que Bom Te Ver Viva, da cineasta Lúcia Murat, que retrata a situação da tortura – Foto: Reprodução / Que Bom Te Ver Viva / Youtube

No documentário, ela aparece em sua casa. Tem os traços bonitos e os olhos azuis. A narradora, Irene Ravache, comenta: “Observando do lado de fora como um voyeur olha pela janela da vizinha, meu olhar é como integrar essa educadora, dona de casa, com a história épica da ex-estudante que organiza movimentos com camponeses e passa dez anos no exílio. Na maternidade, Maria disse que conseguiu ter resgatada a sua possibilidade de vida”.

Outra educadora, Regina Toscano, ficou nove anos na cadeia. “Eu fui presa no dia 6 de março de 1970, fazendo panfletagem em uma fábrica, em Jacarezinho. Houve uma perseguição de várias viaturas da Polícia. A violência começou, me despiram, procuraram até dentro da minha xoxota se tinha alguma arma e de lá fui para o Doi-Codi.”

Regina ficou presa. Na época, estava grávida e com as torturas perdeu o filho. “Durante o tempo todo que estive na cadeia, eu queria ter um filho, que simboliza até hoje a resposta que a vida está aí e continua. Quando eu e meu marido Paulo fomos libertados, queríamos ter filhos. Daniel nasceu representando a vida. Depois vieram André e Cecília. O que tenho mais forte são as crianças. Eu dei a resposta com a vida.”

O filme Que Bom Te Ver Viva mostra Regina trabalhando em um Centro de Convivência de Mulheres Carentes. Como enfatiza a narradora, “da tortura ficou um sentimento de indignação contra a violência”. A educadora termina o seu depoimento assinalando: “A violência na Baixada Fluminense é pior do que a violência na ditadura.”

Leitura cênica e debates lembram o engajamento da revista aParte, criada em 1968 pelo então chamado Teatro Universitário de São Paulo (Tusp)

Para encerrar a programação desta sexta-feira, dia 5, do evento Ecos de 1968 – 50 Anos Depois, o Teatro da USP (Tusp) apresenta, às 21 horas, uma leitura cênica e debates que se destacaram nas páginas da revista aParte – editada em 1968 pelo então chamado Teatro Universitário de São Paulo. A direção é de Sérgio de Carvalho, atual diretor do Tusp, com a participação de Roberto Schwartz, Zé Celso Martinez Correa e Cecília Boal.

Edição número 1 da revista aParte – Foto: reprodução / Publicação Tusp

“A revista aParte foi muito contundente em relação à arte no período, mas não pode ser entendida fora do contexto”, explica Maria Ceccato, orientadora de Artes Dramáticas do Tusp. “Naquele momento, por exemplo, Sergio Ferro, que convivia muito proximamente com o grupo Tusp, também editava a Revista Teoria e Prática. Havia um grande interesse em pensar uma arte que realmente atuasse para a transformação social e que se enfileirasse com as lutas políticas em curso.”

Maria Ceccato lembra que, nesse contexto, foi criada a revista aParte. “A meta editorial era não esconder a sua adesão a um recrudescimento da luta antiditadura. Não é de se estranhar que alguns membros do próprio Tusp tenham se engajado posteriormente na luta armada. O que impressionava na revista aParte é a alta qualidade da reflexão estética e política que trazia, fruto de um momento de grande efervescência entre os intelectuais e artistas alinhados com a esquerda.”

A revista aParte assumiu uma tendência clara, de caráter revolucionário. “Por isso mesmo teve sua vida interrompida quando da decretação do Ato Institucional Número 5 (AI-5), em dezembro de 1968. O debate sobre o teatro brasileiro e o debate sobre a relação tendência e qualidade são de grande importância para a o teatro que ainda fazemos hoje”, acrescenta Maria Ceccato.

A leitura cênica pretende reencenar os debates estéticos contidos nos primeiros números da revista, contrapondo posições de Anatol Rosenfeld, Zé Celso e Augusto Boal.

As exibições de Vlado 30 Anos Depois, de João Batista de Andrade, e Que Bom Te Ver Viva, de Lúcia Murat, e a leitura cênica e debates sobre a revista aParte acontecem nesta sexta-feira, dia 5, às 16h, 19h e 21h, respectivamente, no evento Ecos de 1968 – 50 Anos Depois, que acontece no Centro Universitário Maria Antonia (Ceuma) da USP (Rua Maria Antonia, 294, Vila Buarque, em São Paulo). Entrada grátis. A programação completa do evento está disponível no endereço eletrônico www.prceu.usp.br

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