Evento recupera legado de protagonista do Renascimento medieval

Exposição e colóquio na USP abordam vida e obra do rei Afonso X, defensor da cultura e cultivador de línguas da Península Ibérica no século 13

 06/09/2023 - Publicado há 8 meses     Atualizado: 14/09/2023 as 18:44

Texto: Rebeca Fonseca*
Arte: Carolina Borin**

Afonso X, o Sábio, na pintura "Livro de Jogos, Afonso X e sua corte" - Foto: Domínio Público/Wikimedia Commons

No século 15, o Renascimento italiano transformou as artes, as ciências e a política ocidentais. Mas, antes disso, outros “renascimentos” já tinham ocorrido na Europa, como conta o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Hugo Domínguez Silva. O docente é um dos organizadores da exposição e do colóquio Afonso X e Galicia – Permanência e Itinerância, sobre o principal responsável por um desses movimentos. Promovido pela FFLCH, o evento acontecerá entre os dias 13 de setembro e 10 de outubro.

Afonso X, o Sábio (1221-1284), foi rei de Castela, o principal reino da Península Ibérica no século 13. Ao longo de seminários e mesas-redondas, especialistas vão analisar sua trajetória de vida e suas contribuições para a  política, a cultura e o direito. “A Idade Média está cheia de livros, de cultura, existem pessoas que criticam a existência de um Renascimento no século 13 porque se apagou essa parte da história, e nós a estamos recuperando agora”, diz Domínguez.

O monarca foi um importante difusor de cultura na Idade Média e possui obras de diferentes gêneros. Há livros jurídicos, astronômicos e históricos. O rei compôs um sistema de leis que garantiu unidade jurídica e, segundo a professora da FFLCH Valéria Gil Condé, também organizadora do encontro, foi responsável por escrever a primeira crônica de história da Espanha. Além dessas obras, o Sábio se dedicava às cantigas, os poemas da época.

O professor Hugo Domínguez - Foto: arquivo pessoal

Na literatura da Península Ibérica, o galego-português usado nas cantigas era considerado uma língua de prestígio. Afonso X foi o primeiro rei a institucionalizar o idioma castelhano, em lugar do latim. “Ele é importante porque serviu de ponte, através dos tradutores da Escola de Toledo, entre Oriente — o mundo árabe e mundo judeu — e Ocidente — com suas cantigas em occitano e em italiano”, detalha Domínguez.

Valéria explica que o monge Raymond de Toledo, criador da Escola de Tradutores de Toledo, promoveu a tradução de obras para o latim no século 12, mas foi Afonso X quem deu início à tradução em castelhano. “Afonso X priorizou as línguas românicas, no caso o galego e o espanhol, em detrimento do latim, língua da época. No século 13, o galego-português e o espanhol ainda estavam por se normalizarem e ele colocou essas línguas em evidência.”

As Cantigas de Santa Maria, uma das principais obras de Afonso X, reúnem 427 composições com função moralizante, didática, política e religiosa. Segundo Domínguez, os poemas musicados serviam como unificadores da Península Ibérica e circulavam em vilas de diferentes localidades do reinos cristãos. “As Cantigas de Santa Maria são um documento valioso do estado medieval da língua.” Parte de seu conteúdo influencia o pensamento contemporâneo, como a concepção de amor e preconceitos relacionados com religião e costumes.

Retrato de Afonso X, o Sábio, de Joaquín Domínguez Bécquer - Foto: Wikimedia Commons

O professor da FFLCH Vagner Camilo, outro organizador do evento, vai evidenciar algumas dessas conexões em uma mesa-redonda do colóquio, no dia 14, às 10 horas, sobre o cancioneiro do século 19 e composições do século 20. A partir de um poema indianista de Gonçalves Dias, Camilo estabelecerá uma relação com as Cantigas de Santa Maria para explorar a dimensão política existente nas duas. “Gonçalves Dias se apropria do modelo da cantiga para denunciar a cumplicidade da Igreja com a ação colonizadora no Brasil”, antecipa.

Outras interlocuções entre os séculos serão feitas na mesma mesa-redonda. Mayra Moreyra Carvalho, professora da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), abordará um poema de Rafael Alberti, poeta espanhol moderno nascido na cidade de Santa María del Puerto, que é referência de 25 cantigas de Afonso X.

A professora da FFLCH Margareth Santos falará sobre o livro Los Pasos del Cazador, de José Agustín Goytisolo, em que o autor espanhol recupera a lírica de tipo popular e atualiza as cantigas com uma leitura moderna. A última discussão da mesa será feita pelo professor da FFLCH Ricardo Souza de Carvalho, que apresentará a recepção da lírica medieval galego-portuguesa no século 19 a partir de edições dos cancioneiros presentes na biblioteca do historiador Oliveira Lima.

Vagner Camilo - Foto: Arquivo pessoal

O professor Vagner Camilo - Foto: arquivo pessoal

Afonso X também compôs cantigas de escárnio, em que criticava eclesiásticos e setores burgueses. Domínguez sintetiza sua figura como “um homem de armas e letras”. Na época, a Espanha ainda não existia de forma unificada. “Afonso X lutou pela reconquista do território e pela união política dos reinos independentes, ao mesmo tempo em que desempenhou o papel de ‘pai do povo que tem que administrar, dirigir e doutrinar’”, diz.

Ilustração de Afonso X rodeado por músicos e escribas - Foto: Wikimedia Commons/Cantigas de Santa Maria

Permanência e itinerância

Sobre o título do evento, Valéria explica que a “permanência” diz respeito aos elementos do projeto afonsino que extrapolaram a Espanha e se expandiram para o Ocidente medieval. “Através dos textos de caráter jurídico, científico e poético, podemos perceber a representação do seu tempo sob o ponto de vista antropológico”, afirma.

Já a “itinerância”, nas palavras da professora, “ilumina o presente através do passado”. O objetivo do colóquio é apresentar estudos de pesquisadores brasileiros, espanhóis e portugueses sobre o legado do rei para o direito e a ciência, além de explorar essa herança em relação à língua, à literatura e à música brasileiras.

A exposição é composta de 29 painéis e foi dividida em quatro partes por Antoni Rossel, curador e professor de Filologia Românica da Universidade Autônoma de Barcelona. A primeira seção aborda a linhagem e a biografia do rei. Depois, o Scriptorium Afonsino, ou seja, “o conjunto de pessoas que trabalham juntos em uma espécie de biblioteca medieval”, como define Domínguez. A terceira parte trata da música medieval e a última, da sociedade medieval e do patrimônio afonsino no antigo reino da Galicia.

A professora Valéria Gil Condé - Foto: Reprodução/Youtube

Com organização do Consello da Cultura Galega, da Espanha, a mostra foi feita pela primeira vez em 2021, quando se comemoraram 800 anos do nascimento de Afonso X. Ela já foi montada em outros países: nas quatro províncias da comunidade espanhola Galiza, na Itália, na Polônia e em Cuba. Depois da inauguração em São Paulo, ela será montada no Rio de Janeiro e em Salvador.

Para Domínguez, é importante que a figura de Afonso X seja divulgada em várias nações, porque ele foi um rei preocupado com a cultura em um período em que a maior parte da população era analfabeta e o saber estava centralizado nas mãos da Igreja e da aristocracia. O estudo de seu legado contribui para o reconhecimento de que a Idade Média não foi uma época de trevas, defende o organizador.

A presidente do Consello da Cultura Galega, Rosario Alvarez, é quem apresentará a conferência de abertura Afonso X, o Rei, o Sábio, o Trovador. Já o curador fará dois seminários sobre os sistemas de composição e interpretação da lírica trovadoresca medieval e das Cantigas de Santa Maria, no dia 14 de setembro.

Rossel também apresentará um programa musical com o Grupo Anima, de música de câmara brasileira. A voz do curador será acompanhada por instrumentos de corda de Luiz Fiaminghi e Valeria Bittar, num concerto com composições de Afonso X e diferentes trovadores.

O colóquio terá quatro mesas-redondas. Além disso, a exibição do vídeo Sem Mim, do grupo de dança contemporânea Corpo, integrará a programação. O espetáculo é uma homenagem ao cancioneiro profano e tem a trilha sonora composta pelo artista galego Carlos Núñez, em parceria com o compositor e professor da FFLCH José Miguel Wisnik.

A trilha foi composta com base em sete peças do compositor medieval Martín Codax. No último dia de evento, em 10 de outubro, Wisnik fará uma conferência de encerramento sobre a relação entre a canção brasileira e o cancioneiro de Codax a partir do vídeo Sem Mim.

O professor da FFLCH Hugo Domínguez Silva oferecerá o curso Literatura Galego-Portuguesa Medieval, sobre obras latinas e escritas nas línguas românicas durante a Alta e Baixa Idade Média. O curso ocorre de forma remota entre 11 de setembro e 18 de dezembro. As inscrições podem ser feitas até o dia 5 de setembro através do sistema Apolo, que sorteia as vagas. Mais informações no site da FFLCH.

O evento Exposição e Colóquio Afonso X e Galicia – Permanência e Itinerância acontece entre os dias 13 de setembro e 10 de outubro. A exposição pode ser visitada de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 21h30, na Biblioteca Florestan Fernandes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP (Avenida Professor Lineu Prestes, travessa 12, nº 350, Cidade Universitária, em São Paulo). Para participar do colóquio, é necessário realizar inscrição no site. A programação pode ser conferida no site da FFLCH.

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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