O poeta português Ernesto de Melo e Castro – Fotomontagem de Beatriz Abdalla/Jornal da USP sobre foto de Reprodução/Escritas e poemas de Ernesto Manuel de Melo e Castro

Morre Ernesto de Melo e Castro,
o poeta da experimentação

Pioneiro da poesia experimental portuguesa e professor da USP, o poeta e crítico literário português morreu no dia 29 de agosto, em São Paulo, aos 88 anos

02/08/2020
Por Claudia Costa

O poeta e crítico literário português Ernesto de Melo e Castro morreu no último sábado, dia 29 de agosto, em São Paulo. Ele foi professor colaborador e depois professor visitante do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, onde ministrou disciplinas de graduação e pós-graduação. E. M. de Melo e Castro, nome literário de Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro, nasceu em 1932, em Covilhã, e era pai da cantora Eugénia Melo e Castro. Vivendo no Brasil há mais de 20 anos, foi pioneiro da poesia experimental portuguesa e figura entre os mais importantes poetas da literatura portuguesa.

“Ernesto Manuel de Melo e Castro dividiu sua vida adulta entre Portugal e o Brasil, e é uma figura muito importante na poesia brasileira, particularmente no Estado de São Paulo, nas últimas décadas. A relação dele com o Brasil já vinha desde os anos 1970, mas ele se mudou para o Brasil e deu aula na USP entre 1993 e 2000. E foi pela USP que se doutorou em Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa, defendendo uma tese, em 1998, sobre os processos comparativistas das poesias contemporâneas e modernas de Portugal e do Brasil e da África de expressão portuguesa”, contextualiza o professor Horácio Costa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH, amigo do poeta.

O professor Horácio Costa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP – Foto: Reprodução/Youtube, UnivespTV

Segundo Costa, ele foi um poeta muito importante pelo que significou na poesia portuguesa e, de uma maneira geral, nas artes portuguesas, desde o final dos anos 50, particularmente a partir de 1964, quando foi publicado em Portugal o primeiro número da PO-Ex, revista de poesia experimental. “Portanto, muito importante no contexto da literatura portuguesa, porque ele participou dessa primeira geração de poetas experimentais portugueses nos anos 60”, reitera o professor, e lembra também de sua importância no Brasil, particularmente na USP, onde atuou como professor, formando gerações. E completa: “Ele foi importante não apenas como poeta e participante de um movimento de vanguarda em Portugal, mas também como membro de uma comunidade de poetas de língua portuguesa. Nesse sentido ele difere de poetas portugueses, brasileiros ou africanos de expressão portuguesa, que são nacionais. Ele era um poeta da língua portuguesa sendo português, portanto mais vinculado à tradição e aos movimentos propriamente de Portugal, mas que tinha uma abertura àquilo que acontecia na língua nos três continentes, na segunda metade do século 20. Ou seja, é um poeta que abraça a pluralidade dos países nos quais se fala o português”.

É um poeta que abraça a pluralidade dos países nos quais se fala o português.

O poeta Melo e Castro surge durante o regime salazarista – comandado pelo ditador Antônio Oliveira Salazar, que durou de 1932 até 1968, mas que só cairia em 1974, com a Revolução dos Cravos –, quando o cansaço já é notável na literatura portuguesa, destaca Costa. “Desde o final da Segunda Guerra Mundial, ainda nos anos 40, Portugal recebe alguns movimentos europeus e internacionais, como o Surrealismo (embora seja dos anos 20 na França, o movimento só chega a Portugal no final dos anos 40). Nesse momento há uma clivagem entre a produção de poesia e de literatura, de uma maneira geral, em Portugal, e o que o país estava vivendo, marcando passo, inclusive, a partir dos anos 60, com uma guerra colonial na África”, explica o professor, citando como exemplo o Poesia 61, de uma geração muito próxima a Melo e Castro, “à qual ele se misturava”.

Geografia Humana, publicado em Ideogramas, 1962

Mas, como informa o professor, a dicção da poesia experimental era muito afinada com o que já vinha acontecendo no Brasil desde os anos 50, a poesia concreta, principalmente a paulistana. “É nesse momento que ele vem ao Brasil e se dá conta de um mundo que está borbulhando por aqui e se conecta com artistas de sua geração, que querem provocar um choque de modernidade, de problematização da forma de escrever poesia, e de escrever de uma maneira geral. É assim que surge a PO-Ex, da qual fazem parte também Herberto Helder, Salete Tavares e, paralelamente, a escritora e artista plástica portuguesa Ana Hatherly”, relata. Segundo Costa, essa forma de produzir textualidade é muito diferente porque já não é mais o verso linear, e sim a experimentação com a palavra como signo na página, bastante influenciada pelo concretismo brasileiro. “E Ernesto é dos mais criativos desse grupo e dos que mais fundo foram na pesquisa da linguagem, desde esse momento até agora, ou seja, são quase 50 anos de pesquisa linguística.”

Segundo o professor, é preciso frisar que ele produziu muita crítica sobre a questão da linguagem poética. “Ele refletiu criticamente sobre a linguagem e sua reprodução na contemporaneidade, o que significa a experimentação para a linguagem e como a experimentação está vinculada com a produção da palavra poética”, comenta. Além disso, diz o professor, Melo e Castro é talvez o principal agente de vinculação da poética experimental e de vanguarda visual com técnicas contemporâneas da linguagem eletrônica, quando o computador ainda era uma novidade. Costa chama a atenção para o fato de que o poeta era também engenheiro, com formação em Engenharia Têxtil pela Universidade de Bradford, da Inglaterra. “Durante muito tempo, ele trabalhou como engenheiro têxtil em indústrias portuguesas. Então a questão da produção técnica era algo que veio com seu primeiro aprendizado”, afirma.

Suas obras

Entre as muitas obras de Melo e Castro, que contemplam poemas visuais, ensaios, videopoemas, infopoemas e publicações, o professor Horácio Costa cita a videopoesia Signagens (1985-1989) e a reunião de textos críticos PO-Ex. Ainda chama a atenção para um pequeno livro, publicado no Brasil, Quatro Cantos do Caos, escrito de uma forma singular: “Ele escreveu na frente do computador, trabalhando no escuro, incorporando os erros de datilografia. Ficou um texto em português, com ortografia canônica, com erros que acrescentam não o erro ortográfico, mas a própria dificuldade da escrita”, revela o professor, dando uma ideia de como ele incorporava a técnica à sua escritura poética e informando ainda que esse não é um dos seus poemas visuais dos anos 70, mas um trabalho mais atual, de 2010.

Signagens

Série de 17 videopoemas realizados por E. M. de Melo e Castro na Universidade Aberta de Lisboa (1985-1989).

O professor Emerson Inácio, também do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH, destaca a produção crítica do poeta Melo e Castro. “Projeto Poesia é um livro do final dos anos 80, em que ele dá outra dimensão para a compreensão da literatura portuguesa. Na obra, a poesia portuguesa é vista da contemporaneidade para o passado, uma abordagem completamente inovadora, quando pensamos em historiografia literária”, afirma. Além disso, diz Inácio, nessa preocupação de Melo e Castro de pensar teoricamente a poesia, há diversas contribuições, inclusive com relação à poesia concreta no Brasil, à poesia experimental portuguesa da qual ele foi participante e às poesias portuguesas da África, das quais era profundo conhecedor. O professor ainda cita O Fim Visual do Século 20, que trata da poesia concreta, cinética e imagética, e o próprio PO-Ex, que para ele são importantes tanto para entender o Melo e Castro poeta quanto o poeta que também pensa a poesia, ou seja, o poeta crítico, que intervém no cenário do qual faz parte.

Para os dois professores, a morte do poeta foi uma enorme perda. “Ele tinha um grande trânsito com os poetas da minha geração; foi também muito amigo de Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari”, diz Costa, que também é poeta. “Particularmente, era um amigo muito querido. Eu o conheci há mais de 30 anos em Portugal, tínhamos textos dedicados e éramos poetas na academia. Vai fazer muita falta, mas estamos agradecidos por ele ter representado um poeta da língua, o que é incomum na língua portuguesa”, diz Costa. Para Inácio, Melo e Castro vai fazer falta como poeta e como colega: “Ele foi alguém que vivenciou diversos momentos pelos quais a literatura portuguesa passou no século 20. Um poeta que nasce pertinho dos modernistas, atravessa toda a produção dos cadernos de poesia e vem até a contemporaneidade, quando ainda continuava produzindo”.


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