O ator Abílio Tavares como a professora Margarida, na adaptação da peça criada originalmente em 1971 - Foto: João Caldas

Dona Margarida e seu jardim de opressões

Peça clássica sobre o autoritarismo, “Apareceu a Margarida” volta em nova versão on-line neste sábado, dia 13

12/03/2021
Por Marcello Rollemberg

O sempre sábio educador Paulo Freire – por mais que ainda exista quem, incompreensivelmente, o conteste – escreveu, de forma muito atual, em seu Pedagogia da Autonomia: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”. E haja sonho e sonhadores. O sonho de ser maior que a realidade, de conquistar espaços aos trancos e barrancos, de oprimir, como vingança por já ter sido oprimido. Quantas pessoas conhecemos assim? Várias. Desde aquelas que dão de ombros diante de um problema grave e simplesmente dizem “e daí?”, passando por aquelas que sobem em árvores frutíferas para procurar o divino e depois escolhem entre roupas azuis ou rosas, até chegar naquelas que oprimem, que destilam seu autoritarismo em sala de aula. Quantas dessas não conhecemos, vale a pena repetir. Seja no escritório, em gabinetes, no cotidiano profissional, em família, nas redes sociais. Todos querendo, de uma forma ou outra, impor sua vontade, seu ponto de vista, todos querendo ser “Dona Margarida”. Quem? Não sabe quem é? Sabe sim. Só não está ligando o nome à pessoa.

O dramaturgo Roberto Athayde em 1971, aos 21 anos, quando escreveu "Apareceu a Margarida" - Foto: Arquivo pessoal

Porque estamos falando aqui, longe de digressões, da proto-Margarida, aquela da peça clássica contra o autoritarismo – qualquer que seja sua forma – Apareceu a Margarida, sobre a professora que oprime seus alunos e impõe seus valores como verdade absoluta. Escrito em 1971 pelo então jovem autor estreante Roberto Athayde, filho do imortal Austregésilo de Athayde, o monólogo – prestes a completar meio século – ganha uma nova versão, uma releitura, adaptada para estes tempos pandêmicos e de isolamento social, pelas mãos do ator Abílio Tavares. Todo Mundo Quer Ser Dona Margarida (?)  estreia on-line no canal do Youtube A Dona Margarida Oficial neste sábado, dia 13, e fica em cartaz até o dia 28, com apresentações sempre aos finais de semana, ao vivo, às 20 horas.

“O que torna Dona Margarida mais rica é a sua contradição. Ela é extremamente autoritária, opressora, mas é muito evidente o quanto ela está repetindo com os alunos um modelo que viveu e do qual não consegue se libertar”, explica Tavares, que dirigiu o Teatro da USP, o Tusp, por 17 anos, e também é professor convidado do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA) da USP. “Seu desejo de controle total é frágil, e por isso ela precisa, o tempo inteiro, reafirmar a passividade dos alunos, a impotência deles. Em vários momentos, ela afirma que a voz na sala de aula é dela e que os alunos não dizem ou sabem de nada porque são passivos”, afirma Abílio, que teve contato com a peça pela primeira vez há 41 anos e já a encenou sete vezes – as duas últimas, também de forma virtual, ano passado. A direção do espetáculo, que tem duração de 50 minutos, é de Nicolas Iso, formado em Artes Cênicas pela ECA.

Em 1983 a peça foi montada no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo - Foto: Reprodução

Estética da opressão

Escrita em meio ao governo mais trucululento da ditadura militar, a do  general-presidente Emílio Garrastazu Médici, que governava com o AI-5 debaixo do braço, Apareceu a Margarida é tida por muitos como um libelo contra o autoritarismo da época. Mas a ideia inicial de Athayde, então com 21 anos, não era bem essa. Sua intenção era falar de opressão de uma forma mais ampla, desde aquela que tinha em casa até a que sofreu no colégio de onde foi expulso. Até porque o rapaz, recém-chegado da França, estava um tanto alheio a tudo o que acontecia no País. “Quando voltei ao Brasil, estava completamente inocente no aspecto político e tive um choque muito grande com a descoberta da ditadura. Esse choque, somado às minhas vivências escolares, à repressão que eu tinha sentido na escola, me levaram a escrever a peça”, disse anos depois Roberto Athayde, que escreveu outras 27 obras – todas eclipsadas por Margarida.

Mas mesmo sem ter a intenção de fustigar o governo, claro que uma peça daquelas poderia ter problemas com a censura, sempre atenta com seu lápis vermelho na mão. Só não teve devido a dois fatores – ou “milagres”, como se referiu o autor. Um, o talento do diretor original da peça, Aderbal Freire Filho, que introduziu certas mudanças que tornaram a obra mais, digamos, “palatável”.

O outro fator foi Athayde ser filho de quem era, o então presidente da Academia Brasileira de Letras. Quando chegou o momento de apresentar o ensaio da peça para os censores, Austregésilo reuniu um grupo de seis acadêmicos – tão respeitados e prestigiados quanto ele – e foram todos assistir ao ensaio. Os censores ficaram melindrados com aquela trupe de gente famosa no Teatro Ipanema, no Rio de Janeiro – onde a peça estrearia, com Marília Pera fazendo uma Margarida tão visceral que intimidaria por anos outras atrizes a incorporar o papel –, que acabaram liberando-a.

A partir daí, Apareceu a Margarida ganhou o mundo – literalmente. Ela já teve cerca de 300 montagens em todas as latitudes, sendo que 48 na Alemanha e 60 só na França – foi a montagem francesa com Annie Girardot interpretando Madame Margarite que catapultou a peça pelo mundo. E sempre mostrando a estética da opressão de uma professora de ginásio que tem na plateia do espetáculo seus alunos – aqueles que, na peça, estão na quinta série e estão sendo preparados para o exame de admissão. Se não passarem no teste, “nunca serão ninguém na vida”, determina a professora. Dona Margarida, que diz ter as respostas para tudo, é o baixo-clero com a caneta na mão e o conhecimento, que usa como arma intimidatória.

Nova versão da peça teve que se adaptar às restrições impostas pela pandemia e foi encenada no interior de um apartamento, em São Paulo - Foto: Divulgação

Ensino a distância

E é com essa plateia e dessa forma que Dona Margarida sempre interagiu no espetáculo, fustigando seus alunos-espectadores com afirmações e perguntas desconcertantes. “A aula hoje é de biologia, mas não pensem que vou ensinar educação sexual. Vou falar dos três princípios da biologia, e o principal é: todos vão morrer”, afirma a professora em dado momento, como se sua aula tortuosa estivesse vindo diretamente de algum ponto perdido, vai saber, do Planalto Central. Já na aula de História a pegada era outra. “O princípio da história é um só: todos querem mandar em todos.”  Ou então, quando resolve fazer uma hipotética chamada: “Tem alguém chamado Jesus aí?”, pergunta, com uma preocupação que transcende a sala de aula. E vai além: “E Messias? Tem algum Messias? Não? Ainda bem”. Ter, até tem, mas essa é outra história.

Nessa visão de mundo muito peculiar, todos acabam querendo ser Dona Margarida, ter o seu poder. Daí, inclusive, o título da versão revisitada por Abílio Tavares. Afinal, todos querem – ou não – ser Dona Margarida? “Nunca tivemos tantas ‘Margaridas’ como temos hoje. A atualidade da peça reside justamente neste contexto que vivemos atualmente. Ela é uma metáfora sobre as relações de poder”, afirma Tavares. “É fundamental para ela ter a voz ativa, ter o controle. Ela fica desesperada com a ideia de perder o controle sobre as coisas, sobre seus alunos. Esse é um elemento fragilizador para ela”, explica o ator, que nessa versão on-line fez da sua própria casa a “sala de aula” de Dona Margarida.

Na verdade, os quatro cômodos e oito diferentes ângulos utilizados na montagem criam uma dimensão de cenários variados e recursos cênicos que ampliam a narrativa. “Em todos os enquadramentos que são mostrados ao público durante a peça há a presença da lousa. São ao todo 17 quadros em que Dona Margarida escreve quando anuncia algo que é muito importante. Para ela, o quadro é um instrumento de força”, conta Tavares. “Só é realmente estranho não ter interação com o público, neste momento de aulas a distância. Mas, mesmo neste novo contexto, Dona Margarida  continua com seu exercício de poder, de não-diálogo. A versão on-line acaba por acentuar aspectos da personagem, principalmente sua solidão. Quando se tira a presença física, a solidão se acentua ainda mais”, contextualiza o ator.

Porque, no final das contas, por mais que se fale de autoritarismo e de opressão, o subtexto da peça de Athayde – e que Abílio Tavares reforça – é a solidão. Ao mesmo tempo em que ela humilha seus alunos, ela quer ser amada, admirada. E ao não ter esse reconhecimento como retorno, pode até desmoronar. Não teremos nenhum aviso de spoiler por aqui, mas sim um outro: o de que Dona Margarida, ou tantas outras “Margaridas”, continuam por aí – há muito mais tempo do que os 50 anos da peça de Roberto Athayde. E continuarão. Como a própria personagem afirma, lá pelo final da peça: “Hoje são vocês, amanhã serão os filhos de vocês. Depois de amanhã, os filhos dos filhos de vocês. E Dona Margarida estará sempre aqui, geração após geração”. Promessa ou ameaça?

Rádio USP

Ouça no link abaixo entrevista do ator Abílio Tavares e do diretor Nicolas Iso sobre a adaptação da peça Apareceu a Margarida. A entrevista foi ao ar no Jornal da USP no Ar, da Rádio USP (93,7 MHz), nesta sexta-feira, dia 12.

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