Contra negacionismos, livro defende a confiança nas ciências

Organizada pelo professor do Instituto de Física da USP Ivã Gurgel, coletânea traz reflexões sobre o conhecimento científico diante do crescimento de movimentos anticiência

 20/10/2023 - Publicado há 6 meses

Texto: Luiz Prado

Arte: Simone Gomes

Foto: Fotomontagem de Beatriz Abdalla/Jornal da USP sobre fotos de Kalyan Shah via Wikimedia Commons (CC BY-SA 3.0) e Marcos Santos/USP Imagens

Terraplanismo, movimento antivacina, “ideologia de gênero”, negacionismo ambiental. Essa quadra é apenas uma lista curta da ofensiva anticientífica que há uns anos nos assombra. De teorias mirabolantes aparentemente inofensivas ao preconceito fatal, passando por desastres sanitários evitáveis e genocídio anunciado, a desconfiança nas ciências pode surgir em várias frentes, desde certas convicções religiosas até cínicos interesses político-econômicos. Sejam quais forem suas causas e a extensão de seus efeitos, o negacionismo científico está aí, ganhando terreno, trazendo problemas e precisando ser enfrentado.

Uma das formas de fazer frente a isso é refletir sobre a própria natureza do conhecimento científico. O que o distingue de outros saberes? Que lugar ele teve ao longo da história da humanidade e onde se encaixa hoje? O que, no século 21, pode ser definido como ciência e quais seus modos de operação? Essas são algumas das questões tratadas pela epistemologia da ciência, campo no qual se insere o livro Por Que Confiar nas Ciências? Epistemologias para o Nosso Tempo, organizado por Ivã Gurgel, professor do Instituto de Física (IF) da USP e coordenador do Grupo de Teoria e História da Ciência Contemporânea (TeHCo), ligado àquele instituto.

A obra é um desdobramento de um ciclo de debates on-line realizado pelo TeHCo em 2020 (os seminários e mesas do evento estão disponíveis neste link) e reúne contribuições de alguns participantes do encontro, entre eles docentes e pesquisadores da USP, de outras universidades públicas brasileiras e convidados internacionais. Trata-se de um conjunto de discussões pensadas, ainda que não exclusivamente, para subsidiar a atuação de professoras e professores da educação básica. Isso não significa que o volume possui caráter didático, como explica Gurgel na apresentação da obra, mas que os temas abordados podem oferecer elementos para auxiliar o trabalho em sala de aula.

O professor Ivã Gurgel, do Instituto de Física da USP, organizador do livro - Foto: Reprodução/IF USP

Com 17 artigos e 458 páginas, o livro explora desde questões gerais, como a validade e confiabilidade do conhecimento científico e seu papel no Antropoceno até discussões mais localizadas, como a identidade epistêmica da química, os desafios colocados pelo consumo do plástico, as dúvidas sobre a teoria da evolução e a influência da matemática na crise de confiança da ciência. Conforme escreve Gurgel, são contribuições para a reconstrução da epistemologia da ciência diante de questões contemporâneas, quando ela se encontra numa encruzilhada entre defender e simultaneamente criticar as próprias ciências.

Abrindo a publicação, Mauri Lúcio Leitão Condé, professor de História da Ciência da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), traz o texto Entre Loucos e Hereges: Quem Confia na Ciência?. No artigo, Condé defende a necessidade da difusão da ciência na sociedade, partindo de uma argumentação pautada na noção de gramática do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951).

O professor cita que a ciência possui uma gramática própria, que não corresponde exatamente a outras gramáticas, como a da religião, da política ou das artes. Diante disso, afirma que a postura negacionista envolve um conflito de interpretações, no qual pessoas versadas apenas em outras gramáticas não conseguem dialogar com a gramática da ciência.

O professor Mauri Lúcio Leitão Condé - Foto UFMG

Alguém que não tenha sido treinado na gramática da ciência apresenta dificuldade para compreender suas regras, é o que argumenta Condé. E essa falta de entendimento é justamente a porta de entrada para o negacionismo, gerado por gramáticas diferentes e que possuem seus propósitos específicos: dominação política, doutrinação religiosa ou mesmo abordagens filosóficas críticas da ciência. Desse modo, para que exista confiança na ciência é preciso, antes de mais nada, o aprendizado mínimo de suas regras, ou seja, de sua gramática. Essa confiança, pontua o professor, passa pelo pertencimento, direto ou indireto, a essa gramática e por isso cabe aos cientistas assumir a tarefa de educar sobre a ciência e popularizá-la.

“É preciso ampliar nossas estratégias de convencimento e persuasão sobre a importância da ciência”, escreve Condé. “A ciência é algo extremamente essencial nas nossas vidas. Não devemos ter fobia dela, mas encará-la de um modo crítico, ético e socialmente responsável. Eis aqui uma tarefa tão importante quanto a de fazer ciência: despertar não apenas o cientista (tarefa obviamente fácil), mas despertar o homem comum para a importância da ciência.”

 

Essa aproximação da ciência em relação ao público também é sublinhada por Alberto Cupani, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no artigo Arrogância e Desconfiança: Sobre o Valor da Ciência. Esse movimento seria um dos elementos do novo paradigma cultural que Cupani propõe para as ciências, em substituição ao paradigma dominante entre os pesquisadores até meados do século 20.

Conforme explica o professor, o paradigma herdado do Iluminismo acreditava que a ciência seria uma maneira privilegiada de conhecer o mundo, capaz de revelar a verdadeira realidade. Ao lado da tecnologia, da qual é a origem, a ciência também seria a melhor forma de resolver os problemas humanos. Esse era um modo de ver que valorizava a racionalidade, a novidade, uma ideia científica específica de saúde, uma certa noção tecnológica de bem-estar, o controle, a eficiência e a velocidade. A partir desse paradigma, a ciência e a tecnologia eram encaradas como a solução para todo os objetivos e dificuldades humanas.

O professor Alberto Cupani - Foto: FFLCH

O desenvolvimento de armas com poder destrutivo cada vez maior, a degradação ambiental e a invasão de dispositivos tecnológicos em todos os aspectos de nossas vidas revelaram os limites desse paradigma. Além disso, historiadores, sociólogos e filósofos da ciência também demonstraram como os princípios norteadores de objetividade, neutralidade e imparcialidade não se ajustavam perfeitamente aos métodos dos cientistas quando olhados de perto. A revisão do velho paradigma mostrou que o mundo e seus objetos não são exatamente revelados e tampouco as leis se impõem aos pesquisadores. Um e outro, na realidade, são produzidos pelas explicações científicas.

Essa reavaliação das ciências colocou o antigo paradigma contra a parede e, em certa medida, deu combustível para o descrédito enfrentado pelo conhecimento científico nos últimos anos. Mas os apontamentos dos estudiosos e as consequências dos efeitos inesperados e indesejados da aplicação tecnológica da ciência não devem fazer com que a abandonemos, defende Cupani. O que é necessário, segundo o professor, é o estabelecimento de um novo paradigma, capaz de dar conta dessa reorganização da visão e do papel da ciência no mundo de hoje.

Conforme indica Cupani, o novo paradigma envolve acreditar que a ciência é uma maneira, mas não a única maneira, de conhecer as coisas. Pode ser a melhor em alguns aspectos, mas nem sempre. Conhecimentos tradicionais e de outros povos precisam ser levados a sério. É preciso aceitar também que a ciência pode não dar conta de resolver todas as nossas questões e, dessa forma, outros meios podem ser legítimos. Além disso, os cientistas precisam aceitar que a realidade pesquisável é sempre complexa e que a ciência atual pode ser incapaz de abordá-la de maneira satisfatória.

Assim, nesse novo paradigma entrariam em cena uma sabedoria prática, uma nova ideia de saúde e uma preocupação com o florescimento humano, a democracia, a justiça e o respeito à pluralidade de opiniões. Caberia também aos cientistas reconhecer os limites da atuação da ciência e, ao mesmo tempo, buscar se tornar mais próximos do público, levando seus conhecimentos para além dos laboratórios.

“A nova ciência (não gosto da expressão, mas não acho de momento uma melhor) não deverá ser vista como o conhecimento da realidade, nem como parâmetro dos demais saberes, mas como uma forma especial de conhecimento, melhor do que outras em certos sentidos e para determinadas finalidades”, escreve Cupani. “Ela coexiste com outros saberes (vulgar, empático, profissional, filosófico, artístico, religioso…) igualmente necessários ao ser humano: não é possível viver apenas de ciência.”

A revisão do entendimento a respeito dos limites e atuações da ciência também é encontrada na contribuição de Andreia Guerra, professora do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet) do Rio de Janeiro. Em O Que Podemos Aprender Com a Ciência?, Andreia discute a construção da história da ciência, mostrando como essa historiografia, na segunda metade do século 20, foi responsável por elaborar uma narrativa na qual a ciência aparece como a própria origem da modernidade.

A professora explica como a própria ideia de Revolução Científica, entendida como um momento de ruptura com o passado e surgimento de uma nova mentalidade, que teria acontecido na Europa Ocidental nos séculos 16 e 17, é ela mesma uma construção, cujo propósito foi oferecer um caráter intelectual para o trabalho científico. Uma abordagem que marcou não só a história da ciência, mas também seu ensino e divulgação.

A professora Andreia Guerra - Foto: Linkedin

Para demonstrar isso, a professora reconstitui a história da botânica. Andreia revela que, longe de ser uma invenção puramente europeia, a botânica se desenvolveu a partir do trabalho de diversos agentes, reconhecidos ou apagados pela historiografia oficial. Ao lado de acadêmicos europeus estiveram viajantes, comerciantes, ilustradores, mulheres invisibilizadas por seus maridos, indígenas das Américas e escravizados vindos da África, todos contribuindo, em graus variados, para que plantas pudessem ser conhecidas, descritas e catalogadas.

Com isso, a autora procura defender a ideia de que a melhor maneira para se entender o conhecimento científico não é tomando-o por universal, mas levando em conta seu caráter local, circunstancial e político. Locais de produção e relações de poder desempenham papel fundamental em sua constituição, fazendo a ciência ser sustentada socialmente, materialmente e culturalmente. Uma ideia de ciência bem distante daquela que a vê como um acúmulo de descobertas inevitáveis sobre a natureza.

“Em resumo, podemos aprender com a ciência que suas respostas aos problemas que enfrenta são repletas de mundo”, escreve Andreia. “E, como construção coletiva, ela se desenvolve pelo questionamento e criticidade, de forma que, se não podemos esperar dela respostas sem idas e vindas, podemos esperar respostas fortes para questões importantes da contemporaneidade.”

Questionar a historiografia e o velho paradigma poderia soar como um movimento no sentido de se desacreditar a ciência, mas não se trata disso. Repensar seus estatutos não significa perder de vista a necessidade de se confiar no conhecimento científico, sobretudo diante dos desafios postos pelo mundo do século 21.

Em Encruzilhada Civilizacional: Tempo Quente do Antropoceno, das Ciências e da Política, o professor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP Stelio Marras sublinha a importância de se acreditar nas ciências para a garantia da própria existência do planeta. Em vez de se aprofundar nas problemáticas epistemológicas, Marras situa seu artigo numa discussão sobre o Antropoceno e a urgência de repensarmos as relações entre humanidade e todos os outros seres, viventes e não viventes, que nos acompanham.

Não é uma tarefa simples, reconhece o autor. O Antropoceno, entendido a partir da definição da antropóloga estadunidense Anna Tsing como a época de uma “descomunal perturbação humana”, é fruto dos excessos de qualidade, quantidade, volume, escala e velocidade da interferência humana no planeta. 

O professor Stelio Marras - Foto IEA

Um rol de excessos gerado por um modo específico de lidar com a Terra e que acabou nos tornando dependentes dele. Marras afirma que não é possível cair em defesas simplistas de tecnofobia e chama de “cinismo” ou “ingenuidade” a defesa de uma sustentabilidade ecológica apartada de suas consequências sociológicas, econômicas e políticas. Não se pode simplesmente puxar o freio de mão imediatamente: todos voaríamos pelos ares.

É um nó difícil de desatar, diz o professor, mas não impossível. Para isso, Marras indica que é preciso uma revisão do nosso próprio projeto civilizatório, passando ao mesmo tempo pela incorporação de outros saberes, ancestrais, milenares e mais integrados ao planeta, e também pela mobilização da ciência em defesa desse projeto. É o reconhecimento de que a ciência sozinha não irá resolver tudo, mas que negá-la não trará nenhum benefício. A alternativa, escreve, seria a barbárie generalizada.

“Para essas inadiáveis tarefas de refazimento gente-mundo, é inevitável reconhecer que nós, povos da modernidade, reuniremos mais chances de alcançar bons termos quanto mais soubermos aprender com outros povos”, reflete Marras em seu artigo. “Estes outros sempre apontaram alternativas de vida ali onde a ‘feitiçaria capitalista’ cumpre o seu papel, que é o de tornar improvável qualquer alternativa de si mesma. Não é menos óbvio que nossas chances (como dos demais viventes implicados) também dependem das melhores relações que travamos com as ciências, com esses modos propriamente ocidentais-modernos de produzir conhecimento e orientar práticas políticas.”

Para Thomás Haddad, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, contudo, a questão parece ser ainda mais complexa. Partindo da perspectiva histórica, o professor propõe, em Confiar nas Ciências, Apesar da História, que a própria ideia de confiança na ciência pode ter sido a exceção durante a maior parte da trajetória humana, em diferentes tempos e lugares. Toda a preocupação atual com negacionismos não seria dirigida a um período de exceção, mas a uma dinâmica constante da história da humanidade.

A generalização da confiança na ciência, cuja validade é o que hoje nos preocupa, teria acontecido apenas na segunda metade do século 20. Seria, portanto, extremamente recente. Fruto de um consenso forçado, vindo da demonstração dos poderes científicos cristalizados nas bombas atômicas e na ameaça nuclear, a confiança na ciência seria justamente a necessidade de acreditar que ela, se poderia nos levar à destruição, também tinha a capacidade de nos levar para o paraíso.

O professor Thomás Haddad - Foto: Researchgate

Por isso, para Haddad, a pergunta “por que confiar nas ciências?” não parece ser a mais adequada. É preciso entender, antes, como surgiu a própria ideia de que as ciências merecem confiança e quais foram os mecanismos postos em prática para assegurar, legitimar ou mesmo impor essa confiança. Isso é importante, argumenta o professor, para que não se considere todo tipo de negacionismo atual um único e mesmo bloco coeso de rechaço.

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O negacionismo climático de cientistas consagrados, por exemplo, vinculados às grandes corporações dos combustíveis fósseis e do agronegócio, não é o mesmo dos antievolucionistas religiosos. Coloca-se a ciência em xeque por motivos diferentes. Ter em mente essas distinções é fundamental, segundo Haddad, para se pensar as estratégias de enfrentamento ao negacionismo e evitar soluções infrutíferas.

Não é por buscar essas soluções, contudo, que se apressa o professor. O que Haddad procura mesmo é refletir sobre a natureza da confiança na ciência, oferecendo uma visão mais apurada da sensação generalizada na comunidade científica da perda de credibilidade em sua área. O autor tenta nos dizer que o consenso a respeito da validade da ciência pode ser mais uma construção narrativa recente do que um dado objetivo.

“Talvez a percepção dessa crise seja exacerbada pelo receio vago, instintivamente negado, de que as ciências estejam retornando à condição que penso ter caracterizado a maior parte de sua história: a irrelevância”, escreve. “É incômodo, portanto, admitir que a suposta centralidade da ciência nos grandes movimentos que moldaram as sociedades ao longo da história, para o bem e para o mal, pode ser apenas uma ficção teleológica resultante de um consenso fugaz – o consenso que se formou em meados do século 20, que dizia que a ciência tinha de ser confiável porque, enfim, mostrara-se assustadoramente poderosa.”

Haddad termina o artigo declarando-se sem respostas. Não sabe para que, diante disso, confiar na ciência. Mas seu texto estimula a continuidade da reflexão. Em vez de ser encarada como fraqueza, a percepção da fragilidade da ciência não poderia ser imaginada como uma ferramenta poderosa, capaz de trazer humildade aos cientistas e a consciência do lugar de seu ofício entre outras formas de conhecimento? O caráter histórico e situado de sua prática não deixaria explícito o casamento ciência-política? Esse autoexame, finalmente, não poderia estimular novas responsabilidades para com a humanidade e o planeta, derrubando de seus pedestais os excessivamente celebrados “destruidores de mundos”?

Capa do livro Por Que Confiar nas Ciências? Epistemologias Para o Nosso Tempo - Foto: Divulgação

Por Que Confiar nas Ciências? Epistemologias Para o Nosso Tempo, de Ivã Gurgel (organizador), Editora Livraria da Física, 458 páginas, R$ 96,00 (capa dura) e R$ 72,00 (brochura).


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