Escola Sem Partido reflete discurso conservador na educação latino-americana

Pesquisadora buscou entender a construção das narrativas dos movimentos Escola Sem Partido, do Brasil, e Con Mis Hijos No Te Metas, da Argentina

 21/09/2023 - Publicado há 7 meses     Atualizado: 25/09/2023 as 16:33

Texto: Camilla Almeida*

Arte: Joyce Tenório**

Manifestantes a favor do projeto de lei sobre a Escola sem Partido protestam durante reunião da Comissão Especial da Câmara que discute a matéria - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

As últimas eleições presidenciais foram marcadas pela ascensão e consolidação de discursos conservadores no Brasil. Na educação, destaca-se o movimento Escola Sem Partido (ESP), criado em 2004 afirmando combater uma suposta “doutrinação ideológica de esquerda” por professores dentro das salas de aula. O ESP ganhou notoriedade no Brasil em 2015 com a criação de projetos de lei por deputados e vereadores que replicaram os ideais do movimento. Discursos semelhantes podem ser observados em toda a América Latina, trazendo as particularidades de cada país.

Uma pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP analisou os conteúdos verbais e imagéticos disponíveis nos sites do Escola Sem Partido e do grupo Con Mis Hijos No Te Metas (CMHNTM), da Argentina – que possui similaridades com o movimento brasileiro – entre os anos 2019 e 2022. O estudo buscou explorar a forma como os discursos são construídos, compreender as intenções por trás deles e contextualizar seu papel na propagação de estigmas e estereótipos na educação.

O referencial da pesquisa vem da análise do discurso, campo disciplinar que entende o discurso como o lugar onde se pode observar a relação entre linguagem e ideologia. “A análise do discurso vai tentar encontrar o que está por trás de sua constituição e desestabilizar determinados ideais. Esses grupos antiprogressistas colocam as escolas como uma ameaça à juventude, e na minha dissertação eu tento ‘chacoalhar’ essa afirmação, além de mostrar que ela não é tão categórica”, explica ao Jornal da USP Talita Souza, mestra pelo Departamento de Letras Modernas da FFLCH e autora da dissertação.  

A pesquisadora encontrou pontos de encontro nas narrativas utilizadas pelos movimentos, como uso de imagens que remetem à infância e à tentativa de construção de um imaginário por trás das escolas e professores. De acordo com Talita Souza, há um processo de vilanização estruturado por meio de verdades apresentadas como absolutas e irrefutáveis. “Eles colocam essas informações como dados que não podem ser contestados e fazem questão de trazer acusações como se fossem de ‘conhecimento público’, convocando a sociedade para barrar esses acontecimentos.”

Divergências entre os discursos investigados também foram achadas: enquanto o Con Mis Hijos No Te Metas se estrutura por meio do discurso familiar, o ESP se constrói em torno de uma fala de desvinculação partidária. “O [movimento] brasileiro quer transmitir a ideia de neutralidade desde o seu nome: ‘nós não somos nem de direita nem de esquerda, somos o Escola Sem Partido’ ”.

Talita Souza - Foto: Arquivo pessoal

O CMHNTM, por sua vez, enfoca a preocupação com a instituição familiar – evidente também na escolha de seu nome, que em português pode ser traduzido para “Não Mexa Com Meus Filhos”. Na Argentina, inclusive, o movimento se apropriou, dando novo significado, do uso pelas manifestantes do lenço na cabeça. Na cor branca, o lenço era símbolo das Mães da Praça de Maio – luta que é parte “importante da identidade da sociedade argentina”. Mas, diferentemente das mães que buscavam seus filhos desaparecidos na ditadura militar, o CMHNTM adotou os lenços azuis.

Foto de uma manifestação do movimento Mães da Praça de Maio - Imagem: Eduard Garcia/Flickr
Manifestações do movimento Con Mis Hijos No Te Metas em Lima, Peru. - Foto: Mayimbú/Wikimedia Commons

Família tradicional

O movimento Con Mis Hijos No Te Metas se originou no Peru, em 2016. Na época, o governo buscava implementar uma reforma no currículo escolar que incluiria questões de gênero e violência contra a mulher na educação nacional. O Estado peruano justificou a medida como uma forma de combate às altas taxas de feminicídio e homofobia no país. Contudo, a ação sofreu uma forte oposição da parcela conservadora e cristã da população. “A reforma foi motivo de desconfiança e revolta, e o currículo escolar nacional não foi alterado. A partir desse acontecimento acabou se criando o Con Mis Hijos No Te Metas, que se espalhou para outros lugares”, explica a pesquisadora.

Na Argentina, o CMHNTM surgiu como uma resposta à Lei Nº 26.150 de 2006, que instituiu o Programa Nacional de Educação Sexual Integral no país, e à Lei nº 27.610 de 2020, garantindo o aborto legal e gratuito. O movimento adota alguns aspectos do peruano (como o uso do azul e rosa na identidade visual, conhecidos por darem cor de itens “masculinos” e “femininos”, respectivamente) com a incorporação de símbolos nacionais argentinos, tal qual a própria bandeira do país. Dessa forma, alinhando textos “pró-vida” e ideais conservadores, o CMHNTM vai atrelando a defesa da vida à defesa da própria pátria.

“A educação sexual e de gênero são pautas vistas como ‘ideologia de gênero’, que seria prejudicial às crianças. Além disso, os professores são sempre retratados como alguém que irá corromper a juventude, criando assim uma ideia de que existe uma ameaça rondando as escolas”, diz a pesquisadora.

O conceito de ideologia de gênero foi utilizado pela primeira vez no ano de 1998, em uma Conferência Episcopal da Igreja Católica no Peru. A definição do termo é motivo de discussão no ambiente acadêmico. Popular entre grupos antiprogressistas, ele é usado para repudiar os estudos de gênero, que supostamente seriam usados para “destruir a família” por meio de ensinamentos considerados impróprios. 

Reprodução do site oficial do movimento Con Mis Hijos No Te Metas Argentina - Imagem: Divulgação/Site (Acesso em 21/09/2023)

Escola Sem Partido

O ESP foi criado em 2004 como uma réplica ao lançamento do programa Brasil Sem Homofobia pelo governo federal, que tinha entre seus objetivos a promoção de materiais informativos para professores sobre sexualidade e homofobia. Porém, foi só no ano de 2014 que o movimento ganhou notoriedade por meio da protocolização de um Projeto de Lei (PL) que formalizava determinadas demandas do ESP. Dentre elas, a proibição da disseminação da “ideologia de gênero” dentro de sala de aula e a garantia do direito de uma aprendizagem “sem ideologia político-partidária”. 

Em seu site oficial, uma aba de “Perguntas Frequentes” leva o usuário a questionamentos como “o programa ESP é realmente sem partido?” e “o programa ESP é ideológico?”. Segundo a pesquisadora, esses e outros elementos, como o uso de verbetes pejorativos para discutir o trabalho dos professores, são utilizados na construção dos sujeitos: o Estado, os professores e as crianças que afirmam proteger.  “Observa-se que eles sempre apelam para imagens de crianças da educação infantil, enquanto os professores são colocados como ‘doutrinadores’ e ‘autoritários’”.

De acordo com um comunicado publicado nos veículos de comunicação oficiais do movimento, com a saída do fundador em 2020, o ESP encerrou suas atividades após falta de apoio político às propostas apresentadas – ainda que pautas afins continuem circulando entre o eleitorado conservador.

Infância ameaçada?

A escolha do tema de pesquisa partiu das vivências de Talita Souza como professora em uma escola estadual de ensino no município de São Carlos, interior de São Paulo. “Eu percebi, lá em 2018, o crescimento de uma preocupação por parte da coordenação sobre o que nós [professores] estávamos falando. Muito se discutia o ensino de línguas como neutro e sem nenhum tipo de influência do pensamento do professor”, conta ela. Além da análise de discursos, seu trabalho realiza uma documentação do panorama histórico do campo educacional e dos discursos antiprogressistas. Neste aspecto, a pesquisadora destaca a importância de, no contexto atual, questionar as informações trazidas por esses grupos. “O título da minha tese tem o objetivo de sacudir um pouco afirmações tão categóricas. A metodologia tenta justamente expor o olhar do leitor à opacidade do texto e mostrar que existem intenções não tão claras ali.”

O trabalho Uma ameaça ronda a formação de nossas crianças? Análise do discurso dos movimentos conservadores Con Mis Hijos No Te Metas e Escola Sem Partido está disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.

Mais informações: e-mail tallitta.souza@gmail.com, com Talita Souza

*Estagiária, com supervisão de Luiza Caires


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