Montagem sobre foto: Cleber Siquette/Jornal da USP

De 6 a 8 mil anos: pesquisa estabelece nova idade para o sítio arqueológico Alice Boer

Com nova datação feita pelas técnicas de radiocarbono e luminescência e outras análises, estudo estimou idade mais jovem para o sítio localizado no interior paulista. Última escavação atribuía 14 mil anos

Por: Beatriz de Azevedo
06/05/2021

Um estudo realizado por pesquisadores da USP reavaliou a idade do sítio arqueológico Alice Boer, localizado no município de Rio Claro,  interior de São Paulo. Escavações passadas estabeleciam uma idade de 14 mil anos para o sítio, o que o tornaria mais antigo do que a cultura Clóvis (13 mil anos), na América do Norte. Ao longo dos anos, porém, esses resultados foram rejeitados por parte da comunidade científica e isso fez com que pesquisadores reanalisassem o sítio, com novas técnicas de datação.  O estudo concluiu que o material arqueológico da região tem, na verdade, idades entre 8.100 e 6.300 anos.

Entre 1961 e 1986, uma equipe do Museu Nacional do Rio de Janeiro foi responsável pela escavação da região. A idade estimada foi de 14 mil anos. Além disso, supostos artefatos teriam sido encontrados em níveis mais profundos da escavação, sugerindo uma presença humana no local há mais de 30 mil anos. 

“Com críticas por parte da comunidade científica, o sítio foi pouco citado em pesquisas acadêmicas ao longo dos anos”, diz o arqueólogo Astolfo Araújo. Então, um grupo de pesquisadores do Instituto de Biociências (IB) e do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE), ambos da USP, liderado por ele, se propôs a estudar o local  a partir de novas escavações, datações e análise dos artefatos. Os resultados do trabalho foram publicados no periódico PaleoAmerica, sob o título The Rise and Fall of Alice Boer: A Reassessment of a Purported Pre-Clovis Site.

Astolfo Gomes de Mello Araújo – Foto: Leonor Calasans/IEA-USP

“Apesar do impacto inicial dos resultados apontados nos anos 1960, a menção ao sítio só diminuiu ao longo dos anos, sem razão concreta para isso porque nenhum outro estudo havia revisado os dados obtidos, na época. Ou seja, havia um problema científico ali”, diz Astolfo Araújo ao Jornal da USP. Foi com base nisso que o grupo resolveu verificar os resultados com novas técnicas. “As datações com carbono-14, por exemplo, apresentavam variações muito grandes, o erro era de mais ou menos mil anos”, explica o pesquisador. 

Pedras lascadas

O sítio Alice Boer fica localizado em um terreno arenoso do Rio Cabeça e foi descoberto por João Boer, morador local que encontrou uma série de pontas bifaciais líticas — pedras lascadas — na região. Na década de 1960, o grupo de pesquisadores encontrou parte desse material muito próximo a uma camada que supostamente datava de 30 mil anos atrás e, assim, concluiu-se que as peças encontradas eram artefatos (objetos feitos ou modificados por seres humanos em uma cultura arqueológica).  

O sítio Alice Boer fica localizado em um terreno arenoso próximo ao Rio Cabeça. Créditos: Reprodução do artigo.

 O sítio Alice Boer fica localizado em um terreno arenoso próximo ao Rio Cabeça – Créditos: Reprodução do artigo

O material foi enviado ao Museu Nacional, o que permitiu que, na pesquisa recente, João Carlos Moreno de Sousa, um dos pesquisadores envolvidos no trabalho, o analisasse novamente. A conclusão foi de que, aquilo que se pensava ser um artefato era, na verdade, um geofato (uma peça de rocha quebrada ou erodida naturalmente, sem ação humana). 

Dentre todo o material encontrado na suposta camada de 30 mil anos, apenas um deles era uma lesma quebrada — artefato que faz parte da cultura arqueológica da região — e ele pode ter sofrido bioturbação, quando o material é empurrado para mais fundo na terra por ação biológica, como um tatu ou minhoca, por exemplo.

O restante das pedras foi encontrado em uma região que antes era o leito do rio. “Percebemos que o local onde eles supostamente teriam achado artefatos era o antigo leito do rio. Então, obviamente, ninguém moraria ali”, afirma o professor Astolfo Araújo, do MAE. Ele conta que, quando o rio começou a migrar, o fundo se tornou uma praia e a areia acumulou-se na região. 

Isso significa que o lascamento identificado nas pedras que, em tese, datavam de 30 mil anos atrás era natural. Dois fatores permitiram a constatação de que ele não era fruto de atividade humana: o lustre fluvial (a chamada pátina) e o tempo muito distante entre dois lascamentos. “Foi possível identificar que não havia ação antrópica [do ser humano] pois o material apresentava o chamado lustre fluvial, quer dizer, ao longo do tempo a água poliu aquilo e deixou um aspecto lustroso”, esclarece João Carlos. 

Além disso, é possível identificar que uma parte do lascamento aconteceu em um espaço de tempo muito diferente dos outros. “Nós conseguimos notar que uma parte da lasca saiu muito antes do que a outra, dá para ver a diferença de muitos anos. Ou seja, não foi um ser humano o responsável pelo lascamento, pois, se assim fosse, ele não teria tirado uma lasca de um lado e esperado longos anos para tirar outra, no lado oposto. 

No sítio Alice Boer, os reais artefatos encontrados datam de 8 a 6 mil anos atrás. Lá, acha-se um tipo de ponta (produzida por meio do lascamento de pedras) muito específica dos sítios arqueológicos dessa região de São Paulo. A indústria lítica do Alice Boer pode estar relacionada a uma faixa cronológica mais antiga, os Caetetuba (de 11 mil anos), dada a semelhança material-cultural.

Exemplos de artefatos típicos do sítio de Alice Boer, encontrados durante a primeira escavação: quatro pontos de haste apresentando padrões tecnológicos e morfológicos rioclarenses e uma lesma. Créditos: Reprodução do artigo.

Exemplos de artefatos típicos do sítio de Alice Boer, encontrados durante a primeira escavação: quatro pontos de haste apresentando padrões tecnológicos e morfológicos rioclarenses e uma lesma – Créditos: Reprodução do artigo

Nova data

Para a nova datação, dois métodos diferentes foram utilizados: radiocarbono e luminescência. Com o primeiro, data-se o evento de morte do organismo, para isso, o carbono-14 é utilizado. Trata-se de um isótopo radioativo fraco do carbono, também conhecido como radiocarbono. A técnica só é aplicável para materiais orgânicos (aqueles que têm carbono em sua composição). 

O carbono-14 é formado continuamente na atmosfera, pelo efeito dos nêutrons de raios cósmicos nos átomos de nitrogênio-14. Ele é rapidamente oxidado no ar, formando dióxido de carbono, e entra no ciclo de carbono global (processo que garante a reciclagem do carbono). 

As plantas e os animais assimilam o carbono-14 ao longo de suas vidas. Ao morrerem, deixam de intercambiar carbono com a biosfera e a quantidade de carbono-14 começa a diminuir. É a partir disso que é possível datar a idade do organismo. “Nós sabemos em quanto tempo o carbono-14 decai, assim, notamos o quanto ainda há no organismo e, por meio de uma regra de 3, determinamos sua idade”, elucida Araújo.

A luminescência, por sua vez, é um método completamente diferente do radiocarbono e não se restringe apenas ao material orgânico, ele mede a acumulação radioativa. “A técnica mede qual foi a última exposição à luz que um grão de areia sofreu.” Então, temos cristais como o silício, por exemplo. “Eles são formados por um pacote de átomos que formam um retículo cristalino, imperfeito, ou seja, há espaço entre os átomos”, afirma o líder do estudo. 

A radiação do ambiente ultrapassa esse aglomerado de átomos, deixando para trás alguns elétrons, que ficam aprisionados ali desde que não haja agitação. Se houver algo que agite aqueles átomos, eles soltam os elétrons — normalmente, o que os excita é a luz. Isso quer dizer que, para os elétrons ficarem retidos é preciso que haja ausência completa de luminosidade. 

“Um grão de areia é sempre zerado, toda vez que o sol se levanta, mesmo que tenha acumulado radiação durante a noite”, diz Araújo. A partir do momento em que a areia começa a ficar enterrada, a radiação solar não é capaz de liberar os elétrons, então eles se acumulam. 

O método da luminescência consiste em coletar essa amostra com tubos de PVC — para não pegar luz — e excitá-la em laboratório, assim, todos os elétrons aprisionados são liberados e isso conta uma história. Os pesquisadores sabem a quantidade de radiação anual e isso revela a idade do grão.

Dessa forma, a idade determinada pelo estudo ficou entre entre 8.100 e 6.300 anos, ou seja, o local é mais recente do que a cultura Clóvis, na América do Norte. 

Implicações da pesquisa

Os resultados elucidaram um problema que vinha sendo deixado de lado. Além disso, o fato de os artefatos estarem associados à cultura Caetetuba, também localizada no interior de São Paulo, mostra que havia uma troca íntima entre seres humanos das duas regiões. “Eles provavelmente eram populações que trocavam, no mínimo, informações. Mas provavelmente havia trocas mais íntimas, como língua e genética”, diz Araújo. 

A maior parte da Coleção Alice Boer se perdeu no incêndio do Museu Nacional, em 2018. É possível que parte da coleção, transportada para a França na década de 1990, ainda esteja instalada no Muséum National d’Histoire Naturelle, em Paris.

O trabalho de Astolfo Araújo, João Carlos Moreno e colaboradores teve apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes); e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Outro lado

O Jornal da USP entrou em contato com os pesquisadores que fizeram as primeiras descobertas sobre o sítio arqueológico Alice Boer, mas até a publicação da matéria não houve retorno.

Mais informações: e-mail astwolfo@usp.br, com o arqueólogo Astolfo Araújo

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