Cientistas da USP recriam o motor dos raios cósmicos de fora da Via Láctea

Pesquisadores da USP simularam pela primeira vez a estrutura completa capaz de explicar a aceleração de partículas com energias extremas

 15/12/2023 - Publicado há 4 meses     Atualizado: 18/12/2023 as 14:02

Ivan Conterno*

Arte: Simone Gomes

Pela primeira vez, pesquisadores da USP recriaram a propagação de subpartículas através do jato gerado por um buraco negro supermassivo adotando apenas a física conhecida, sem adicionar intervenções extras. Imagem: NASA, ESA e M. Kornmesser

A luz viaja a uma velocidade constante de 1 bilhão de quilômetros por hora no espaço e nada pode viajar mais rápido. Entretanto, há partículas se movimentando no universo, como prótons e elétrons, que chegam próximo dessa barreira. Esses micro objetos são conhecidos como raios cósmicos, mas a origem das energias extremas por trás dessas acelerações ainda intriga os físicos do mundo inteiro.

Para ajudar a desvendar esse mistério, três pesquisadores da USP confirmaram matematicamente um mecanismo capaz de criar os mais energéticos raios cósmicos conhecidos pelos astrônomos. Um dos artigos fruto desse trabalho, que pela primeira vez correlacionou simulações computacionais subatômicas às que envolvem toda a evolução de um jato de buracos negro, recebeu uma resenha na Nature em outubro deste ano.

“Quando falamos de raios cósmicos, estamos também falando da radiação eletromagnética que eles produzem, e os raios gama são os mais intensos energeticamente. Há observações em todo o espectro, mas enfatizamos os raios gama porque são os mais difíceis de explicar. Como os raios cósmicos podem alcançar energias tão extremas?”, provoca Tania Elizabeth Medina Torrejón, atualmente pesquisadora no Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP.

Tania Elizabeth Medina Torrejón - Foto: Arquivo pessoal

Tania Elizabeth Medina Torrejón - Foto: Arquivo pessoal

Os raios cósmicos e os raios gama que eles produzem podem ser gerados por um fenômeno chamado reconexão magnética, que ocorre nos jatos emitidos por buracos negros supermassivos existentes nos núcleos de galáxias ativas- Imagem : Wikimedia/ Creative Commons

Como as condições encontradas próximas aos buracos negros supermassivos não podem ser reproduzidas em laboratório, as reproduções computacionais são indispensáveis para entender esses acontecimentos.

O estudo, desenvolvido por Tania Torrejón, na época vinculada ao Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, e pelos professores Elisabete Maria de Gouveia Dal Pino, também do IAG, e Grzegorz Kowal, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (Each) da USP, traz uma resposta por meio de um algoritmo.

O trabalho simulou a propagação de subpartículas (menores que os átomos) através do jato gerado por um buraco negro supermassivo. Adotando apenas a física conhecida e sem nenhuma intervenção extra, as partículas colocadas nesse turbilhão evoluíram para radiações gama iguais às mais energéticas detectadas na atmosfera da Terra.

Reconstruindo o motor extragalático

A recriação tridimensional imita a evolução complexa de um jato com um campo magnético espiral. Nela foi introduzida uma perturbação transversal no jato que desencadeia naturalmente uma instabilidade chamada kink, responsável por causar a turbulência nas linhas espirais.

Conforme o jato cria turbulências, as linhas magnéticas rompem-se criando locais de aceleração capazes de levar partículas a velocidades extremas - Arte: iopscience.iop.org

A simulação permitiu ver o movimento das partículas tanto nas escalas pequenas quanto nas muito grandes, que compreendem todo o jato de núcleos galáticos ativos.

O primeiro registro de uma simulação que calculou a possibilidade de partículas alcançarem essas super velocidades diretamente nas linhas de campo magnético do jato foi feito pelos mesmos cientistas da USP em 2021.

Elisabete Dal Pino conta em conversa com o Jornal da USP que o grupo que coordena foi pioneiro a acelerar essas partículas às grandes energias em simulações diretamente na escala macroscópica do jato. Outros pesquisadores de países como Estados Unidos e Alemanha conseguiram simular o processo apenas microscopicamente. “Eles aceleram partículas a energias bem mais baixas. Se extrapolarem para as escalas macroscópicas desses sistemas, chegariam às energias de 10²⁰ [100 quintilhões] elétron-volts”. 

Agora, esses pesquisadores brasileiros conseguiram acompanhar a evolução das partículas em ação, ao mesmo tempo que o jato evoluía. A vantagem foi observar a aceleração acontecendo até levarem às velocidades máximas que o jato comporta.

Elisabete M. de Gouveia Dal Pino - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

“Quando as partículas atingem uma energia que faz com que elas escapem dessa zona de aceleração, que tem uma dimensão máxima da ordem do diâmetro do jato, elas já não são mais aceleradas por esse processo”, esclarece a professora.

Radiação extraterrestre

Os raios cósmicos podem atravessar a matéria. Se nos atingissem em grande quantidade, poderiam danificar equipamentos e causar cânceres nos seres vivos. Contra eles, temos como escudo principalmente a atmosfera, que a todo momento decompõe os raios em uma cascata azulada inofensiva, explica Tania Torrejón ao Jornal da USP. “É como um chuveiro de partículas. Isso gera a radiação de Cherenkov, que permite que os vejamos”. Os raios gama que acompanham os raios são decompostos em radiação Cherenkov do mesmo modo, porém mais estreitos.

A decomposição dos raios cósmicos cria um “chuveiro” de partículas minúsculas acompanhado de radiação azulada denominada Cherenkov – Foto: ESO/L. CALÇADA / CC BY 4.0 CC

Os feixes de raios cósmicos são observados pelos astrônomos há mais de um século. Algumas partículas como essas são aceleradas pelas linhas magnéticas na camada mais externa do Sol, mas não alcançam energias tão altas. 

Os raios mais energizados produzidos na Via Láctea, a galáxia em que estamos, surgem das sobras de explosão de estrelas gigantes conhecidas como supernovas. Os raios cósmicos de ultra energia, no entanto, só podem vir de fontes extragaláticas.

Para entendermos melhor, a professora Elisabete Dal Pino compara a energia desses raios mais energizados com a que conseguimos produzir artificialmente. “Os aceleradores de partículas mais potentes aqui na Terra  são capazes de produzir partículas com energias de até 10¹³ [10 trilhões] elétron-volts, enquanto essas partículas super relativísticas têm energias até 10²¹ [1 sextilhão, ou mil quintilhões] elétron-volts”. Isso significa uma diferença de escala de 100 milhões de vezes.

Essa é parte da explicação de porque eles não podem ser reproduzidos em laboratórios. “Nós ainda não conhecemos a origem exata deles, mas uma das fontes candidatas são os jatos de núcleos ativos de outras galáxias”, diz a professora.

Os núcleos ativos são uma região compacta em torno dos buracos negros do centro das galáxias. Alguns deles, conhecidos como blazars, emitem enormes jatos em direção à Terra formados por plasma, um estado da matéria em que os gases ficam eletricamente carregados.

Ao invés de seguirem por uma linha reta, as partículas como o próton e o elétron caminham em círculos em torno do campo magnético dos blazars. Quando muito acelerado, esse giro sai ou fica próximo das bordas do jato em acelerações extremas. “As energias que eles carregam são para raios de giro maiores do que nossa galáxia”, acrescenta Tania Torrejón. Isso explica porque eles não poderiam ser produzidos na Via Láctea. 

Como funciona a reconexão magnética

Os astrofísicos perceberam que os choques, um mecanismo de aceleração que ocorre nos jatos, não poderia explicar a existência das partículas mais energizadas que chegam à Terra. “Regiões de choques que podem acelerar esses raios cósmicos, assim como em remanescentes de supernovas, são importantes apenas na parte mais externa desses jatos”, conta Elisabete Dal Pino ao Jornal da USP.

De acordo com a professora, a única explicação são as regiões observadas no início dos jatos. “Para produzir essa radiação gama super variável, acima de 10¹⁵ [um quatrilhão] elétron-volts, precisa-se de regiões muito compactas e que aceleram as partículas muito rapidamente” .

Em 2005, o professor Alex Lazarian, da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, e a professora Elisabete propuseram pela primeira vez que a reconexão magnética poderia acelerar essas partículas de modo eficiente. Isso seria possível convertendo a energia magnética disponível em energia cinética, graças a um princípio previsto pelo físico italiano Enrico Fermi em 1949.

Os radiotelescópios mais modernos e os telescópios de raios gama parecem confirmar as previsões teóricas de que a aceleração mais intensa ocorra na região do início dos jatos, onde eles são muito mais magnetizados.

Aí ocorre a reconexão magnética, um processo físico que transforma as cargas dos campos magnéticos em energia capaz de acelerar as partículas atômicas até que esses campos sejam consumidos. “Eles emitem radiação em raio gama com uma variabilidade muito alta, o que implica regiões de extrema aceleração de partículas que ocorrem muito rapidamente”, conta Elisabete Dal Pino.

Gráfico mostra a aceleração gerada ao longo do jato – Arte: iopscience.iop.org

Nesse fenômeno, uma partícula pode ser refletida com uma velocidade mais alta sempre que encontrar uma mudança no campo magnético no caminho. Essas reflexões conseguem levar uma partícula a atingir velocidades próximas à da luz.

As partículas carregadas caminham por correntes elétricas que parecem correntezas de um rio. No entanto, em regiões turbulentas, a probabilidade de uma colisão frontal com outro fluxo magnético é maior do que a continuidade. “À medida que o tempo passa, as linhas vão ficando turbulentas por uma instabilidade que a gente chama de kink e essas linhas de campo magnético turbulentas rapidamente fazem reconexões”, detalha Elisabete Dal Pino. 

Essa perturbação quebra algumas dessas linhas espirais e isso faz com que campos magnéticos em direção oposta se encontrem. O encontro de linhas de campos magnéticos contrários forma uma nova conexão que libera energia para o meio, acelerando partículas e aquecendo o gás. É nesses pontos que ocorrem as reconexões.

“Na física, quando duas linhas de direções opostas se encontram elas se anulam parcialmente, e depois se reconectam, gerando outra linha de campo”, esclarece Tania Torrejón. Na ida e volta através desses desvios, o campo magnético está variando constantemente e as partículas, ganhando energia.

Projeto científico de longo alcance

O trabalho teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do CNPq, tendo suporte do Grupo de Astrofísica de Plasmas e Altas Energias (Gapae) do IAG. Os pesquisadores detectam as emissões em raios gama por telescópios e participam ativamente da construção do futuro Cherenkov Telescope Array (CTA), um projeto que inclui pesquisadores de 31 países que será o maior observatório de raios gama do planeta.

Mais informações: e-mails dalpino@iag.usp.br, com Elisabete M. de Gouveia Dal Pino e temttm@gmail.com, com Tania Elizabeth Medina Torrejón

*Estagiário sob orientação de Fabiana Mariz


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