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Transtorno de estresse pós-traumático é subdiagnosticado nos serviços de saúde

Violência recorrente nas periferias de São Paulo pode causar quadro de transtorno mental ainda pouco conhecido dos profissionais de saúde

 31/01/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 07/02/2023 as 15:38

Texto: Ana Fukui*

Arte: Guilherme Castro

Resultados de uma pesquisa que contou com a colaboração do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e conduzida pela University College of London (UCL) mostraram que o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) costuma ser subdiagnosticado nos atendimentos realizados nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e mesmo nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) da região Sul da cidade de São Paulo que participaram do estudo.

O TEPT é um conjunto de sintomas físicos e psíquicos que surge após eventos traumáticos tais como o isolamento social, taquicardia, suores, dores de cabeça causados por um estado de constante alerta e uma reexperiência traumática, quando a pessoa passa todo o tempo lembrando do evento que ocasionou o trauma, sem conseguir esquecê-lo ou ressignificá-lo.

Entre junho e outubro de 2020 foram entrevistados 58 profissionais de saúde que atendiam adolescentes residentes em áreas consideradas vulneráveis à exposição à violência comunitária e uma série de violências estruturais. Os entrevistados apontaram que as circunstâncias de vida desses adolescentes não poderiam ser reduzidas a um único evento traumático individual, mas sim a situações recorrentes de violência familiar e do Estado e bullying na escola. Os eventos recorrentes acabavam levando a sintomas diversos e mais graves do que havia sido listado como indicadores de TEPT, tais como mutilações ou tendências suicidas que exigiam atenção imediata e colocavam de lado qualquer prognóstico mais elaborado sobre a saúde mental dos sujeitos.

Recentemente, a conceituação de TEPT foi ampliada por especialistas e passou a incorporar também as situações recorrentes de trauma: o transtorno de estresse pós-traumático complexo (CPTSD) foi reconhecido como uma doença mental segundo a Classificação Internacional de Doenças n.11 (CID-11), que entrou em vigor no início de 2022.

Essa ampliação do conceito de TEPT para CPTSD foi capaz de se aproximar dos sintomas apresentados pela população estudada de jovens periféricos.

O estudo Local understandings of PTSD and complex PTSD among health professionals working with adolescents in violent neighbourhoods of São Paulo city, Brazil foi publicado na BMC Psiquiatry em uma parceria entre a University College London, orgão financiador do estudo, com a coordenação da professora Ligia Kiss, supervisão de Alessandro Massazza e pesquisadores do Departamento de Medicina Preventiva.

Os resultados mostraram que a existência do diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático tem relevância para profissionais da área. Isso ocorre porque “se aproxima muito mais com as demandas que são apresentadas no contexto da saúde dos jovens no território, quando não se tem um evento específico, mas eventos de violência conectados e repetidos, numa exposição prolongada a essas situações”, explica ao Jornal da USP a cientista social Juliana Feliciano de Almeida, mestre em saúde coletiva pelo Departamento de Medicina Preventiva (DMP), uma das autoras do artigo e responsável pela análise das entrevistas dos profissionais de saúde.

De fato, como apontam os resultados, 68% dos entrevistados foram capazes de dar um exemplo concreto de alguém que poderia se encaixar neste diagnóstico.

Juliana Feliciano de Almeida - Foto: Reprodução/Currículo Lattes

Juliana Feliciano de Almeida - Foto: Reprodução/Currículo Lattes

Como conclusão do estudo, Juliana assinala que “o fato desses profissionais não conhecerem até então um diagnóstico específico não quer dizer que esses profissionais não reconheçam situações de violência. Eles são capazes de fazer isso e também definir estratégias de cuidado e enfrentamento das demandas.”

“A estrutura urbana faz com que as pessoas que moram longe gastem muito tempo em deslocamento e isso se reflete em transtornos de ansiedade; além disso, a preocupação se vai ter comida para a família somada a uma tensão permanente nos espaços periféricos, seja por conta da polícia, seja por conta do crime organizado, junto com a pobreza material, levam a um adoecimento mental nesses lugares. As periferias padecem muito de transtornos mentais, muito mesmo. Entretanto, essa realidade pouco aparece porque essa população tem pouco acesso aos órgãos públicos ou privados que possam registrar e avaliar os casos”, aponta o cientista social Tiaraju Pablo D’Andrea.

Subnotificação, violência e saúde

Quem concorda com a ideia de uma subnotificação é a psicóloga Flávia Pimentel. Em sua dissertação de mestrado realizada na Universidade de Brasília (UnB), em 2020, ela estudou os fatores de proteção e risco do transtorno de estresse pós-traumático. “TEPT não é um diagnóstico trivial e às vezes nem é o primeiro no qual os profissionais pensam. Já tive pacientes no consultório em que diagnostiquei TEPT severo que me relataram que ninguém tinha aventado a possibilidade até então”, diz.

A relação entre violência e saúde começou a ser construída na década de 1970 quando se analisou o seu impacto na vida das pessoas: desde as lesões que precisavam de cuidados até chegar à qualidade de vida. O tema passou a ser debatido nas agendas nacionais e internacionais, até culminar com a publicação do Relatório Mundial Sobre Violência e Saúde pela Organização Mundial da Saúde, em 2002. Neste documento se reconhece que “a violência é um dos principais problemas mundiais de saúde pública” e propõe que “se busque um enfoque científico da saúde pública para a prevenção da violência”. No Brasil, esta discussão foi conduzida pelo Ministério da Saúde e culminou com a apresentação de um guia em 2010: Linha de Cuidado Para a Atenção Integral à Saúde de Crianças, Adolescentes e suas Famílias em Situação de Violências.

Flávia Pimentel - Foto: Reprodução/Currículo Lattes

Flávia Pimentel - Foto: Reprodução/Currículo Lattes

Locais onde foram realizadas as entrevistas com os profissionais de saúde. A UBS e o CAPS costumam atender demandas da população local. Há falta destes equipamentos de saúde em vários bairros de São Paulo - Foto: Reprodução/BMC Psychiatry

Dentro destes conceitos, como aponta Juliana Feliciano de Almeida, a saúde e a doença são compreendidas em um olhar ampliado que se conecta também às condições de vida das pessoas, como classe social, gênero, raça e as diversas condições políticas da sociedade. O cientista social Tiaraju Pablo D’Andrea, da Universidade Federal de São Paulo e coordenador do Centro de Estudos Periféricos, explica um pouco dessa realidade: “A estrutura urbana faz com que as pessoas que moram longe gastem muito tempo em deslocamento e isso se reflete em transtornos de ansiedade; além disso, a preocupação se vai ter comida para a família somada a uma tensão permanente nos espaços periféricos, seja por conta da polícia, seja por conta do crime organizado, junto com a pobreza material, levam a um adoecimento mental nesses lugares. As periferias padecem muito de transtornos mentais, muito mesmo. Entretanto, essa realidade pouco aparece porque essa população tem pouco acesso aos órgãos públicos ou privados que possam registrar e avaliar os casos.”

A saúde e a doença podem ser observadas a partir de um olhar ampliado que se conecta também às condições de vida das pessoas, como classe social, gênero, raça e as diversas condições políticas da sociedade. Foto: Mariana Saraiva/Flickr

Também têm sido investigados os meios de se promover a resiliência nas pessoas em meio a essas situações de violência urbana e estrutural, bastante difíceis de se modificar num curto prazo. Como aponta Flávia Pimentel em sua dissertação, o TEPT é superado ao se fomentar sentimentos de otimismo e esperança no sujeito, que vão modificar as percepções sobre si mesmo e da realidade que o cerca.

Segundo o professor Tiaraju, “uma das formas de se fomentar esses sentimentos em territórios populares e empobrecidos se dá fundamentalmente por projetos coletivos. Toda situação social que consegue acolher as pessoas e gerar um sentimento de pertencimento leva a uma diminuição dos transtornos mentais. Essas situações podem ser várias, Igreja Evangélica, time de futebol, bloco carnavalesco, Igreja Católica, associação de moradores.”

De acordo com Juliana, a estrutura do SUS também poderia acolher o público jovem: “O desenho para que isso aconteça já existe, mas falta definir estratégias que abarquem de maneira específica esses jovens de acordo com sua realidade local, que é bastante diversa numa cidade como São Paulo. Nesse sentido, é preciso criar políticas públicas com os jovens e não só para os jovens. Eles têm que participar das decisões, tem que ser um modelo participativo e não autoritário, que já sabemos que não funciona.” Ela aponta ainda uma falta de unidades de atendimento especializado em diversas regiões e de poucos profissionais contratados para dar conta das demandas de cada bairro.

Mais informações: e-mail juliana.feliciano.almeida@gmail.com, com Juliana Feliciano de Almeida

*Ana Fukui, bolsista Mídia Ciência Fapesp/FMUSP

Tiarajú Pablo D'Andrea é coordenador do Centro de Estudos Periféricos - Foto: arquivo pessoal

Tiarajú Pablo D'Andrea - Foto: arquivo pessoal


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