Uso de terapias alternativas pela Justiça pode gerar questionamentos na própria Justiça

Segundo Rubens Beçak, professor da FDRP, a adoção de técnicas que não possuem respaldo científico e não é reconhecida pelo órgão de classe, pode ser questionada em recursos aos Tribunais de Justiça

 09/11/2023 - Publicado há 6 meses
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Tribunais já gastaram mais de 2 milhões de reais em cursos e palestras sobre constelação familiar. Foto: Pixabay/AJEL
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O Brasil sofre com a quantidade de processos judiciais em aberto no país, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Apenas em 2022, mais de 21 milhões de ações foram ajuizadas pela primeira vez. Por conta disso, o poder judiciário incentiva a adoção de medidas para a resolução dos processos sem a necessidade de levá-los a julgamento. Buscando seguir essa recomendação, os tribunais de Justiça (TJs) pagam cursos e palestras aos seus servidores para que eles tenham mais ferramentas para ajudar as partes em um processo. Uma dessas ferramentas é a constelação familiar, prática terapêutica não reconhecida pelo Conselho Federal de Psicologia.

Segundo dados divulgados pela Agência Pública, agência de jornalismo investigativo independente, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), entre 2016 e 2022, mais de R$ 2 milhões foram gastos entre cursos e palestras para os servidores sobre constelação familiar. Desse montante, mais de R$ 1,5 milhão foram gastos pelo Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO), que teve o último curso sobre o tema encerrado em novembro de 2022. Além do TJRO, cinco TJs confirmaram que já fizeram ou fazem uso da constelação familiar: os tribunais de Justiça da Bahia (TJBA), de Minas Gerais (TJMG), de Santa Catarina (TJSC), de São Paulo (TJSP) e do Ceará (TJCE).

Criada durante a década de 1990 por Bert Hellinger, teólogo, filósofo e pesquisador alemão, a constelação familiar é uma prática terapêutica que busca resolver conflitos familiares que atravessam gerações. A prática tem métodos parecidos com os do psicodrama, por conta da dramatização de situações e da psicoterapia breve, pela ação rápida que provoca. Durante a sessão, são recriadas cenas que envolvam os sentimentos e sensações que o paciente tem com a sua família. A sessão pode ser realizada individualmente, quando bonecos ou outros objetos são escolhidos para representar os membros da família, ou em grupos, quando outras pessoas assumem esse papel.

Pseudociências são questionáveis

Segundo Rubens Beçak, professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, a adoção de técnicas alternativas, como as técnicas de conciliação, mediação e arbitragem, para concretizar acordos entre as partes é bem-vinda, mas o uso de uma terapia alternativa não reconhecida pelo próprio órgão de classe não é o melhor caminho. “Cursos são desejáveis e necessários para aumentar o escopo do conhecimento desses funcionários, mas gastar recursos públicos com técnicas que não possuem respaldo científico suficiente gera alguns desgastes totalmente desnecessários.”

Rubens Beçak. Foto: Arquivo Pessoal

Beçak explica que os TJs têm o direito de contratar qualquer palestra ou curso que eles acreditem que trará bons frutos ao exercício do órgão, mas é necessário que haja uma avaliação anterior. “Os tribunais de Justiça tem um sistema de verificação orçamentária próprio, então, em tese, pode aprovar tudo o que julgar necessário para o exercício dos TJs, desde que haja orçamento para tal, agora gastar em técnicas como a constelação familiar é questionável.”

Conselho Federal de Psicologia 

A constelação familiar sofre críticas até por parte do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Segundo extensa nota emitida em 3 de março de 2023, o CFP destaca “incongruências éticas e de conduta profissional no uso da constelação familiar enquanto método ou técnica da Psicologia.”

A nota destaca ainda “a inadequação do uso das constelações por profissionais da Psicologia no âmbito da Justiça, em especial em casos de violência. A exposição de mulheres em situação de violência a estes procedimentos e técnicas pode colocá-las em situações de risco, insegurança e de revitimização.”

Por fim, a nota técnica também destaca que a sessão de constelação familiar pode “suscitar a abrupta emergência de estados de sofrimento ou desorganização psíquica, e que o método não abarca conhecimento técnico suficiente para o manejo desses estados – o que conflita com a previsão do Código de Ética Profissional do Psicólogo.”

Leia a nota na íntegra.

É bom lembrar que, apesar do CFP não oficializar a terapia, a constelação familiar faz parte das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), que foram institucionalizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) como um dos 29 recursos terapêuticos oferecidos à população.

O professor Beçak lembra que os prejudicados na sentença dada pelo juiz podem recorrer se não ficarem satisfeitos com os métodos usados. “Em tese, quando há uso de pseudociências, a parte resignada sempre usará elementos para tentar derrubar a sentença e o uso de constelação familiar pode ser um deles.” Mas para que isso ocorra é preciso ficar claro na sentença que o método utilizado para se chegar a um acordo ou à decisão do juiz foi uma pseudociência como a constelação familiar, por exemplo.

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