Caso Margarida Maria Alves expõe violência política de gênero praticada pelo Estado

A reescrita feminista do caso da líder sindical camponesa executada em 1983, na Paraíba, reforça a memória e a verdade

 13/04/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 14/04/2023 as 14:36
Margarida Maria Alves – Arte sobre fotos Domínio público e Herve Thery

 

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O processo de reescrita em perspectiva jurídico feminista da decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no caso Margarida Maria Alves, líder sindical camponesa executada em 1983, é o tema do episódio desta semana do Mulheres e Justiça.

A entrevistada de Fabiana Severi é a professora Gilmara Medeiros, Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), que, num trabalho conjunto com a professora Clarissa Alves, do Instituto Federal da Paraíba (IFPB), e as estudantes de direito Aléxia Maia, Julia Barreto  e Miriam Aquino, todas da UFERSA, buscou reconstruir os argumentos utilizados pela CIDH  com vistas a evidenciar a violência política de gênero praticada pelo Estado brasileiro contra Margarida Maria Alves. 

Segundo Gilmara, os processos que apuraram a sua morte acabaram por resultar na absolvição de dois mandantes do crime, bem como na aplicação da prescrição penal para os executores. A escolha do caso, diz a professora, diz respeito ao local no qual nós trabalhamos e produzimos conhecimentos. As pesquisadoras envolvidas nesse projeto pertencem a universidades localizadas no interior dos Estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte e trabalham diretamente com mulheres camponesas, com a realidade dos conflitos fundiários na região.

Além disso, Gilmara afirma que o caso de Margarida também chama a atenção pela própria relevância histórica que tem a defensora dos direitos humanos, Margarida Maria Alves. “Ela é muito importante para o movimento de mulheres brasileiras, ao ponto de que o seu nome batiza a maior marcha de mulheres da América Latina, a marcha das Margaridas.”

Contradições

Em 2023, a morte de Margarida Maria Alves completa 40 anos e, segundo a pesquisadora,  os processos que investigaram sua morte foram marcados por diversas contradições  e esses 40 anos de impunidade são bastante representativos da forma como o Estado brasileiro lida com violações de direitos humanos.  “O processo interno brasileiro era um processo bastante conturbado que nos levou a optar por reescrever a decisão de mérito da denúncia internacional feita pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos.”

Para o grupo, a decisão de mérito é progressista, que condena o Estado brasileiro, mas as pesquisadoras consideraram importante agregar uma argumentação feminista, que reforça a memória e a verdade para a figura de Margarida Maria Alves dentro do País. Com isso, veio à tona a história e o contexto sobre a sua vida e a execução de Margarida, que viveu no período da ditadura militar. Também floresceu a violência de campo no Brasil e os desmandos dos proprietários de terra com relação aos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais. “Consideramos importante esse contexto ser  sempre reforçado; além disso, reforçar o contexto de ser Margarida Maria Alves uma mulher diante de uma realidade interiorana e machista. Como liderança política e mulher sua execução repercute também num tipo de violência específico, a violência política de gênero.”

As pesquisadoras também agregaram documentos com legislações internacionais relativas aos direitos das mulheres, que não estavam presentes nas argumentações da CIDH, tratando exclusivamente da Convenção Americana de Direitos do Homem e do Pacto de São José de Costa Rica. “Optamos por trazer, por exemplo, argumentações relativas a convenções para punir, prevenir e erradicar a violência contra a mulher, além da Convenção Interamericana também conhecida como convenção de Belém do Pará.”

Sobre o que torna a reescrita feminista, Gilmara diz que é o fato dela enfatizar a história de Margarida, como camponesa e liderança sindical, o contexto de sua morte e o cenário de impunidade praticado pelo Estado brasileiro, uma violência política de gênero.

Para as pesquisadoras, os principais resultados dessa reescrita são: o que ela agrega para o ensino jurídico, tanto do ponto de vista teórico como na prática jurídica e até no cotidiano do ensino jurídico em sala de aula. A reescrita, diz Gilmara, mostra como é possível utilizar o mesmo conteúdo probatório, olhando para o caso com ênfase de gênero e jogando luz sobre pontos que não estão tão visíveis ou tão notórios nas argumentações mais tradicionais do mundo jurídico. Nesse caso, especificamente, conseguiu jogar luz sobre a violência política de gênero sobre o contexto da ditadura militar, sobre a relevância dela como defensora dos direitos humanos na região e também sobre as consequências e o modus operandi patriarcal do Estado que age de forma proposital para que haja a prescrição e absolvição dos mandantes de seu assassinato. “Então, seja o Estado responsável tanto por sua morte, mas também pela violação de sua memória e pela violação da Justiça, que não é uma justiça só para os seus familiares, mas uma justiça social mais ampla”.

Nesse caso, a utilização das teorias e métodos feministas ajudou a evidenciar aspectos para uma escrita mais neutra da perspectiva de gênero, mais contextualizada e direcionada para a vida dessa defensora e para sua relevância política. “Reescrevemos uma decisão cujo resultado já era satisfatório, mas conseguimos pelo menos enfatizar direcionamentos para o Estado brasileiro, voltados para mulheres defensoras de direitos humanos.”

Por: Rosemeire Talamone e Cinderela Caldeira

A série Mulheres e Justiça tem produção e apresentação da professora Fabiana Severi, da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, e das jornalistas Rosemeire Talamone e Cinderela Caldeira - Apoio: Acadêmica Sabrina Sabrina Galvonas Leon - Faculdade de Direito (FD) da USP Apresentação, toda quinta-feira no Jornal da USP no ar 1ª edição, às 7h30, com reapresentação às 15h, na Rádio USP São Paulo 93,7Mhz e na Rádio USP Ribeirão Preto 107,9Mhz, a partir das 12h, ou pelo site www.jornal.usp.br


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