"Um projeto para um país mais civilizado"

O seminário USP Pensa Brasil de 2023 discutiu ideias para superar a pobreza e as desigualdades e para democratizar as oportunidades

 06/10/2023 - Publicado há 7 meses     Atualizado: 09/10/2023 as 13:38

Texto: Luiz Roberto Serrano
Arte: Jornal da USP

Com pedaços de madeira carbonizada e folhas de ouro, Siron Franco dialoga com eventos como a invasão ilegal da terra indígena Ianomami montada no Complexo Brasiliana, em frente ao Auditório István Jancsó, que sediou o seminário – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

“Para o seminário USP Pensa Brasil de 2023 lançamos uma nova temática para a reflexão: ‘A Produção do Comum numa Sociedade Fraturada’. Reconhecendo que no Brasil e no mundo os processos políticos têm construído sociedades cada vez mais polarizadas; reconhecendo que a ampliação da desigualdade econômica tem produzido cenários de crescente anomia social; reconhecendo que as mudanças climáticas estão resultando em violentos impactos na vida cotidiana da população, especialmente na vida dos mais vulneráveis, e reconhecendo a dificuldade de construir projetos coletivos, ao longo desta semana, de 2 a 6/10, buscaremos percorrer caminhos para superar as fraturas da nossa sociedade.”

Da esquerda para a direita, o pró-reitor adjunto de Inovação Raul Gonzalez Lima, os pró-Reitores Ana Lúcia Duarte Lanna (Inclusão e Pertencimento) e Aluisio Augusto Cotrim Segurado (Graduação), a vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda, a pró-reitora de Cultura e Extensão Marli Quadros Leite, o pró-reitor adjunto de Pós-Graduação Adenilso da Silva Simão, e a socióloga Beatriz Paredes - Foto Cecília Bastos/USP Imagens

O social x o egoísmo

USP Pensa Brasil realiza a vocação maior de uma universidade pública e de qualidade, qual seja cumprir ou seu papel republicano: contribuir para equacionar por meio do conhecimento e da reflexão comprometida os problemas, desajustes e iniquidades do mundo em que vivemos”, disse, na abertura do seminário, a vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda, no dia 2 de outubro. “Esta segunda edição do evento realiza-se em um contexto diferente do ocorrido no ano passado […] no qual as instituições resistiram a despeito de todas as ameaças; mas que não foram totalmente escoimadas.”

Referindo-se ao título do seminário, a vice-reitora Maria Arminda explanou: “Esta edição do USP Pensa Brasil dedica-se a refletir sobre a relação – naturalmente problemática – entre a existência possível de problemas comuns em meio ao domínio egoísta do puro interesse representado pela naturalização das regras de mercado; tem como objetivo pensar as nossas questões, que estão imersas nos problemas que conformam o mal-estar contemporâneo […] é um projeto para o Brasil, diverso, mais equânime, civilizado, que não se mova em direção às paixões mesquinhas mas que nos enlace em uma grande paixão civilizatória. Paixão da qual a Universidade é parte integrante”.

Construir o comum depende da luta dos prejudicados

Rap da Felicidade

“Eu só quero é ser feliz
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar
Fé em Deus, DJ

Eu só quero é ser feliz
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar

Mas eu só quero é ser feliz
Feliz, feliz, feliz, feliz onde eu nasci (Han!)
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar”

Veja a íntegra da canção, aqui.

O rap de MC Cidinho e MC Doca funcionou como uma síntese da intervenção de Conceição Evaristo, doutora em Literatura Comparada da Universidade Federal Fluminense, que foi a estrela da primeira mesa do evento, que tinha o mesmo nome do seminário, realizado no Auditório István Jancsó. No final de sua palestra, formou-se uma numerosa fila de alunos em busca de um autógrafo da palestrante.

Superar a dificuldade de construir o comum na sociedade brasileira depende das lutas e reivindicações dos prejudicados”, advertiu Conceição. “A USP é um lugar que não pode se resumir a constatações teóricas, precisa pensar formas que superem as fraturas, se lançar na superação dessas fraturas.”

Conceição Evaristo – Foto: Cecília Bastos /USP Imagens

A cultura foi sequestrada

“A construção do comum no Brasil […] deve enfrentar a fratura econômica, política e cultural no País”, disse Eugênio Bucci, superintendente de Comunicação Social da USP e professor da Escola de Comunicações e Artes, citando o programa do evento, no seu segundo dia. Para Bucci, “esse comum vem sendo bloqueado pela cultura da publicidade, do entretenimento e dos chavões primários e prepotentes”. E continuou: “Como escreveu a professora Maria Arminda do Nascimento Arruda, ‘estamos numa sociedade dominada pela tecnologia e pela ventriloquia das redes sociais’”. Radicalizando essa ideia, como ele mesmo afirmou, Bucci acrescenta: “Podemos afirmar que a cultura foi sequestrada e recrutada para combater o comum; mais do que dominada pela tecnologia, ela se encontra tiranizada pela técnica e pelo capital – que sabotam o comum.”

Olhando em volta, Bucci declara: “Estamos às voltas com o trumpismo, com o bonapartismo redivivo, com forma sortidas de fascismo regurgitados, com negacionismos, fanatismos, ódio e intolerâncias. O que é tudo isso senão a inversão da cultura? Quanto ao comum, este se desmancha na obsessão pelo gozo delirante que começa apenas onde a civilização moderna termina”. E em seguida expôs o que considera “os quatro sintomas gritantes da nossa era”: o entretenimento fundamentalista; o infantilismo totalizante; a violência ritualística; a máquina como sujeito de linguagem. Cada um dos quais analisou longamente.

Citando seu professor Teixeira Coelho, Bucci lembrou uma frase: “O único projeto cultural que deu certo para valer no Brasil foi a integração do imaginário pela televisão”. E comentou: “Ele tinha razão. Essa política cultural foi posta em prática pela força bruta, pelas antenas via Embratel, pela repressão, e pelo dinheiro. E hoje política cultural é coisa de algoritmo. É a religião do individualismo, a infantilização e a violência do ódio e do preconceito. Não, as coisas não podem seguir assim”.

Autora da recém-terminada novela Vai na Fé, exibida pela TV Globo, a diretora e cineasta Rosana Svartman, participante do debate, concordou com a frase de Teixeira Coelho, lembrando que as novelas fazem parte da cultura nacional e inverteram o fluxo transnacional de produções que vinham do exterior, tornando-se produtos de exportação. “Hoje alcançam, no Brasil, um público de 28 milhões de pessoas, e contando os que apenas assistem a trechos, por cinco minutos, chega a atingir 44 milhões.” Lembrou que seu conteúdo espelha os temas que estão na sociedade e na imprensa, mostrando conflitos, a questão de cotas, fala de estupros. “A novela faz as vezes de ensino pedagógico para uma população analfabeta.”

A primeira utopia do Antropoceno

A sustentabilidade é a primeira utopia do Antropoceno”, disse o professor José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP, responsável pela palestra Projetos para o Desenvolvimento Sustentável, realizada no terceiro dia do evento. Depois de lembrar que o Antropoceno é esta época geológica caracterizada pelo impacto do homem na Terra, recordou que a utopia do século 20 era o respeito aos direitos humanos, que evoluiu para agora englobar a sustentabilidade.

José Eli da Veiga – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Veiga lembrou, em sua palestra, que havia sinais de preocupação com a sustentabilidade, não com esse nome, já no século 18, em países como a Alemanha e o Japão, que espelhavam temores relativos a uma eventual falta de madeira. “Quem tinha bosque se preocupava com como cortá-lo e como ele se reproduziria. Ocupavam-se em calcular uma taxa de extração sustentável.”

Segundo Veiga, as palavras desenvolvimento e sustentável levaram um certo tempo para se juntar na expressão “desenvolvimento sustentável”. Foram reunidas inicialmente em 1987, e a expressão se consagrou na Rio92 realizada aqui no Brasil.

“Hoje a mudança do clima é uma ameaça ao desenvolvimento sustentável”, reforçou, por sua vez, a debatedora Thelma Krug, ex-vice-chair do IPCC – The International Panel on Climate Change. E lançou a pergunta: “Por que demora tanto para perceberem a necessidade de cuidados em relação a esse problema?”.

“Eu fico perplexa diante do que está acontecendo por culpa dos mais ricos, sejam países ou pessoas. As empresas usam o chavão da sustentabilidade, mas nossos rios e nosso vestir está sendo contaminado”, protestou Nelsa Nespolo, diretora das Cooperativas Univens e Justa Trama, referência em Economia Solidária.

Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas, o debatedor João Paulo Tukano, ativista indígena do povo Ye’pamahsã, concentrou-se na contradição entre os valores da civilização branca e os da indígena. “Temos outra visão. Nosso objetivo é viver bem. Não dá para pensar em sustentabilidade se seu povo não tem água, a mata pega fogo, há um maior número de suicídios no meu território. O desenvolvimento é uma ilusão.”

Uma ode à Constituição Cidadã

Hoje, 5 de outubro, comemoramos o 35º aniversário da Constituição Cidadã, a terceira mais duradoura da sete que tivemos, lembrou o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal - STF, Ricardo Lewandowsky, na abertura da mesa Instituições, Participação Social e Estado Laico. “É uma Constituição democrática, das mais importantes do mundo, moderna, cujo fundamento é o princípio da dignidade humana.” Lembrou que ela nasceu da transição negociada entre dois regimes (ditatorial e democrático), mas que, apesar disso, teve grande participação popular. ”É extraordinária, avançada, incorpora liberdades e direitos importantes, inclusive sociais”, acrescentou. Segundo ele, o diploma constitucional criou o federalismo cooperativo, permitindo a transição de uma democracia representativa para uma participativa.

Ricardo Lewandowski - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

“É um documento resiliente, resistente a crises, longevo; por intermédio dela instauramos o estado de direito entre nós”, ressaltou, lembrando que ela é importante em momentos em que há tentativa de minar sutilmente as instituições. Ou diretamente, como ocorreu nas invasões da Praça dos Três Poderes, em Brasília, no último dia 8 de janeiro.  “Apoiemos as conquistas constitucionais consagradas em 1988”, afirmou.

Depois de apontar como o Brasil, ao longo do tempo, reconheceu os direitos de várias raças e nacionalidades que imigraram para este país, Eunice Prudente, doutora e professora sênior da Faculdade de Direito da USP, presente no debate, perguntou: “Onde estavam os negros?”, apontando que eles não receberam o mesmo tratamento dos demais. Recordou o assassinato de Mãe Bernadete, a líder quilombola, no quilombo Pitanga dos Palmares, perto da capital baiana, Salvador – cujos dois filhos também foram mortos. “A integração das religiões de matrizes africanas é dificultada, faltam políticas com esse objetivo”, apontou. Para ela, é preciso conversar muito, dialogar muito, rever o período da escravidão. Enfim, usar os instrumentos da Constituição Cidadã para superar a questão do racismo no Brasil

“Não temos um sistema de investigação internacional”, registrou, por sua vez, o advogado argentino Luís Gabriel Ocampo, ex-procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional, que trabalhou como promotor no Julgamento das Juntas, os últimos militares que comandaram a ditadura no país vizinho.

Ocampo, presente no debate, será o primeiro titular da Cátedra Erney Plessmann de Camargo, recentemente criada na Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação da USP, com o objetivo de gerar e disseminar conhecimento sobre pesquisas que tenham impacto na sociedade em âmbito local, nacional e internacional. Com o ex-ministro Lewandosvsky, ele concluiu que, para superar as dificuldades de investigar crimes que ocorrem simultaneamente em vários países, o que é cada vez mais comum acontecer, seria útil criar o conceito de “soberania compartilhada”, que permitisse a atuação conjunta dos sistemas policiais e judiciais de várias nações em conjunto.

Irapuã Santana, doutor em Direito Processual pela Universidade do Rio de Janeiro, lembrou aos demais participantes da mesa que há, no Brasil, instituições que ele classifica como extrativistas ou inclusivas. “O grande desafio no País é transformar as extrativistas em inclusivas.”

Lembrando que a política é a arte do consenso, Santana advogou que a sociedade deve ter papel fundamental no estabelecimento das regras que regem a vida nacional, especialmente no desenho de políticas públicas que beneficiem toda a população.

“Uma fratura impede a construção da Nação”

“… a abundância de força de trabalho que sempre existiu por aqui, mesmo depois de encerrada a escravidão negra, nas circunstâncias históricas que conhecemos, permitiu que as elites pudessem decidir sozinhas o destino do excedente e, assim, ‘desenvolver’ o país sem serem obrigadas a carregar consigo, nesse movimento, a massa da população”. 

Este trecho da palestra  Fratura Social, Racismo e Desigualdade,  da economista Leda Paulani,          livre docente na Faculdade Economia, Administração e Contabilidade da USP, na mesa “Por uma economia com distribuição de renda”, realizada na noite do último 6/10, de certa forma sintetiza as ideias que expôs em sua fala, em que citou Celso Furtado, Fernando Hadad, Chico de Oliveira, Caio Prado, Silvio Almeida, Roberto Schwarz, Wanderley Guilherme dos Santos. 

“Creio que mais do que falar em distribuição de renda, muito mais, aliás, do que falar em desigualdade, temos   que falar de uma fratura social, de um abismo em nossa constituição, que até hoje impede que se complete a construção do Brasil como nação; aparthaid esse que foi se aprofundando e permanecendo incólume ao longo de nossa história, independentemente do momento econômico e da posição do país na gangorra de democracias e ditaduras que marca nossa experiência política”, disse. E sentenciou: “O ‘desenvolvimento’ do Brasil, esta modernização conservadora ainda hoje em marcha, é um processo que envolve em seus benefícios apenas uma parcela, pequena, da população, deixando sua enorme maioria à margem” . 

Em sua exposição, Paulani coloca o racismo como um dos principais elementos constitutivos da desigualdade social no país. “Como observa com propriedade Silvio Almeida, o racismo não é um ‘resto’ da escravidão, um resquício do passado colonial a impedir a modernização do país. Ao contrário, escravidão e racismo são elementos constitutivos tanto da modernidade quanto do capitalismo. A fratura social brasileira, fratura exposta, constitui evidência palmar desta verdade” 

“Como economizar neste país se a pessoa ganha pouco?”, perguntou, por sua vez, a debatedora Natália Rodrigues, a Nath Finanças, que comanda uma organização voltada a ensinar pessoas de baixa renda a poupar e investir.  

Nath lembra que são pessoas que gastam mais do que ganham. “80% utilizam cartão de crédito, mas deixam de pagar água e luz e com o tempo acertam uma conta atrasada aqui outra ali”. E assim enfrentam a escassez de recursos. “Como ter acesso ao crédito?”, pergunta ela, lembrando que a população de baixa renda enfrenta obstáculos intransponíveis para obtê-lo. 

Nath defendeu a inclusão da educação financeira no currículo das escolas para que a população de baixa renda tenha noção de como navegar no seu dia a dia administrando seus parcos recursos.  

“Acredito que a esquerda deveria entrar na conversa da educação financeira”, recomendou ao final de sua exposição. 

”O Brasil precisa crescer para distribuir ou redistribuir a renda no país, advogou, por sua vez,  Marcos Nobre, mestre e doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Campinas e professor livre-docente pela Universidade de Campinas. De acordo com ele, o país está enfrentando uma fase de transição entre a necessidade de crescimento e de dar respostas à questão ambiental. “Nosso trunfo é a transição energética”, afirmou. 

Na sua visão, no horizonte do país vislumbra-se um projeto de primarização da economia liderado pelo agronegócio e a mineração, enquanto a indústria perde fôlego. Na área social, o reflexo dessa tendência seria a forte presença da cultura sertaneja na sociedade e o crescimento das confissões evangélicas. 

 No encerramento do seminário USP Pensa Brasil, na noite de 6/11, a vice-reitora, Maria Arminda Nascimento Arruda, lembrou que a universidade está submetida a questões complexas em seu papel de agente civilizatório e em sua função de desenvolver pesquisas. “Não há desenvolvimento sem pesquisas”, finalizou. 


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