Impressões sobre Buenos Aires, entre a elegância, a decadência…e Milei

Esta crônica visita a capital portenha e deita um olhar pessoal sobre a realidade que cerca nuestros hermanos

 12/01/2024 - Publicado há 4 meses
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Céu azul em Buenos Aires depois do tornado de 150 km/h. Mas o furacão Milei só está começando a atormentar nossos vizinhos. Foto: Carla Risso

Quando uma metáfora deixa de ser uma figura de linguagem e passa a ser algo real, tangível – muitas vezes aterrorizante? Em que confluência astral isso deve acontecer, que astros devem estar alinhados – ou desalinhados – para o que parecia apenas retórica se transforme em um estado de calamidade? Não se sabe exatamente qual a resposta adequada. O que se sabe é que, na madrugada entre os dias 16 e 17 de dezembro, apenas alguns dias depois da posse de Javier Milei como presidente da Argentina e da apresentação de seu “Plano Motosserra” – que começava a colocar o país em polvorosa – a capital Buenos Aires foi varrida por um temporal com ventos de mais de 150 quilômetros por hora. O tornado metafórico das medidas iniciais de Milei – que estava prestes a se tornar um furacão dias mais tarde, com os 350 itens de seu Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) – havia se tornado real, com os ventos violentos balançando e fazendo rodopiar sólidos e pesados aviões de metal na pista do Aeroparque Jorge Newbery, no centro da capital federal, como se fossem brinquedos de plástico. As aeronaves foram jogadas de um lado para o outro, escadas eram levadas pista afora e o vento entrava pelo túnel de despacho de bagagens violento e canalizado.

Resultado? Mais de 600 árvores caídas, 100 mil pessoas sem luz, as barracas da tradicional feira de antiguidades da Recoleta – em frente ao cemitério clássico onde Evita Perón repousa eternamente – devastadas e de ponta-cabeça, 13 mortos em Baía Blanca, na área metropolitana de Buenos Aires. A culpa de tudo isso é de Milei? Obviamente, não – por mais que ele deseje explicitamente se arrogar poderes extraordinários, ainda não tem o condão de se tornar um Thor portenho e dominar as intempéries, manipulando ventos, raios e trovões a seu bel prazer. Mas não podemos esquecer da confluência astral que cria tempestades perfeitas.

Mas como sei de tudo isso? Eu estava lá.

Felizmente, muito da ação do tornado real eu só vi pela televisão, domingo pela manhã – mas foi por pouco. Saímos – eu e minha mulher – por volta das 2 da manhã do Aeroparque. O vendaval começou uma hora depois.

Mas não dá para ficar alheio a tudo o que aconteceu logo na nossa chegada e não pensar na moça sem-teto que, minutos antes de nossa saída do aeroporto, brincava quase que de forma ingênua com seu cachorro na área externa do Aeroparque, uma área destinada a crianças mas que já há algum tempo se tornou abrigo para aqueles “descamisados” e sem lar que viraram estatística – hoje, a Argentina apresenta uma taxa de 40% de seus habitantes na linha da pobreza, ou abaixo dela. O que terá acontecido com aquela moça e tantos outros desabrigados que improvisavam – e depois voltaram a improvisar – “casitas” de papelão nos afueras do aeroporto?

Décadence avec élégance

Mas o que fomos fazer lá, logo após a posse de um extremista com costeletas anacrônicas e ares de alucinado, que pede conselhos a um cachorro morto, menos de um ano depois de o nosso extremista particular, com outro tipo de anacronismo, ter desocupado o Planalto? Bem, vou a Buenos Aires há exatas duas décadas, quase todos os anos – com poucos intervalos. ¿Por qué, de nuevo? Primeiro, porque minha mulher tem mais de 80 primos por lá – e a genética e o coração chamam. Segundo, porque aquele charme resistente de uma cidade que se quer europeia, um quê de “décadence avec élégance” (como Lobão cantou nos anos 1980) me atrai – e muito. Assim como Cortázar, Borges, Quino e Gardel – este que, como todos sabem, canta cada dia melhor.

Nestas duas décadas de visitas prolongadas ou não, aprendi a conviver com o cotidiano buenairense e ver como, pouco a pouco, a elegância ia dando lugar a uma decadência acelerada. Cenas de alguns bons anos atrás, como a do senhor distinto, trajando um terno elegante – terno mesmo, comme il faut, com paletó, calça e colete – me abordando na rua para pedir dinheiro e afirmar, quase constrangido: yo también tengo hambre. Ou das crianças, tocando um minúsculo bandoneón, pedindo: por favor, una moneda de su país. De qual país, pouco importava naquele momento – como parece não importar hoje. Com a inflação batendo os 150% ao ano – o que levou nossos primos portenhos a lançar olhares desalentados e com certa envidia ao saber que a nossa não chega a 5% – e o dólar blue, aquele não oficial mas que circula livremente no comércio, chegando a mil pesos, qualquer moeda parece valer mais do que o peso argentino. E os pedidos continuam, por vezes constrangidos, com um pedido de desculpas ao mesmo tempo em que se estende a mão. Mas mais intensos do que anos atrás. As pessoas continuam dormindo nas ruas. E um dado novo, desconcertante: ao desalento físico, à fome, se soma também o desalento mental. Cruzei algumas boas vezes com desabrigados que não pediam nada, mas gritavam enquanto caminhavam. Gritavam. Para Deus, para Milei, para qualquer um. Um grito, quase uma catarse contra uma realidade que não tinham como combater ou vencer. Amelita Baltar não cantaria melhor essa balada da triste loucura que vive nas ruas.

Cena triste, mas recorrente: desabrigado dorme ao relento próximo à Plaza San Martin, sob o olhar impassível da estátua de Diana. Foto: Carla Risso

 

Mas há contrapontos curiosos. A frota de carros nas ruas está renovada – até alguns anos atrás, era comum vermos muitos carros velhos, mal cuidados, trafegando pelas calles portenhas –, não há mais lixo aparente nas calçadas, coisa bem comum de se encontrar há quatro anos, por exemplo, na última vez que fui a BsAs antes desta do tornado. Com a pandemia assolando o planeta e outras cositas, acabei passando ao largo de todo o governo Alberto Fernandez.

Mas se a frota está aparentemente renovada e o lixo sumiu das calçadas, o desalento parece grassar pelas ruas arborizadas e pelas largas avenidas da cidade. Estando lá a pouco mais de uma semana do Natal, parecia que a data era uma mera sugestão. Diferentemente de outras capitais do mundo, quando parece haver uma disputa sobre qual decoração ou iluminação será a mais impactante e superlativa, Buenos Aires não tinha uma arvorezinha decorada para apresentar. Nem uma luz. Nada. As pouquíssimas lojas que tinham um arremedo de decoração de Natal pareciam fazê-lo pro forma, quase que como uma obrigação pouco atraente, algo para brasileiro ver. E o brasileiro tinha que se esforçar muito para entender que aquele recorte de pinheiro mal colado na vitrine era uma tentativa de mensagem de feliz navidad. Mas não há muita felicidade depois da DNU do novo presidente, o tal decreto que o crítico periódico Página 12 ataca sistematicamente, chamando de “decreto sem necessidade nem urgência”.

Sem casa, sem abrigo, sem nada: moradores de rua improvisam uma “casita” de papelão, lençóis e carrinho de malas do lado de fora do Aeroparque. Foto: Carla Risso

 

Essas linhas que estão quase em seu final não são uma análise sociológica de uma realidade bem nossa vizinha – nem poderia pensar em ser. São, na verdade, uma visão impressionista de uma certa realidade de nuestros hermanos. Uma realidade dura, com preços ao mesmo tempo alarmantes para quem não tem dólares no bolso, mas apaziguadores quando o assunto é transporte público – mas até isso parece ter data para terminar, já que o presidente e suas costeletas querem acabar com o subsídio do ônibus e do metrô. A passagem de ônibus, que custa irrisórios 59 pesos – algo como 30 centavos de real – corre o risco de chegar a 400 pesos (ou mesmo 800) se as ideias de Milei vingarem.

Mas de toda essa percepção impressionista que acabei de relatar, talvez o que fique seja a fala de um senhor tentando vender meias à entrada da Livraria Ateneo, na calle Florida. E ficou para mim como uma coisa acre, que nenhum doce de leite pode aplacar. Ele me abordou enquanto via livros na bela vitrine. Agradeci e entrei na Ateneo. Minha mulher, logo atrás, ouviu seu suspiro: “Mais um que me diz ‘gracias’, vira as costas e me ignora”. Sem perceber, sem querer, fiz exatamente aquilo que ele mais temia.


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