No Brasil, profissionais de saúde, policiais e membros de tribunais violam, individual e em conjunto, os direitos das mulheres e o direito à privacidade de seus cuidados médicos. A conclusão é de estudo realizado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP em parceria com a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP e com o Instituto de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Columbia, nos Estados Unidos. O estudo analisou 167 decisões judiciais relacionadas à acusações de aborto no Brasil e integra o TrialWatch Relatório sobre Mulheres e Meninas, iniciativa da Clooney Foundation for Justice.
De acordo com o levantamento, nos últimos cinco anos, o Brasil registrou cerca de 400 mil processos por ano relativos ao autoaborto ou aborto consentido. E as mulheres negras e de comunidades de baixa renda “são os principais alvos das investigações e condenações porque elas dependem desproporcionalmente dos serviços de saúde pública”, conta a advogada Thainara Saiane da Silva José, pesquisadora da FDRP e integrante do estudo.
Segundo o relatório que compilou as análises, Aborto no Brasil: Falhas Substantivas e Processuais na Criminalização de Mulheres, os profissionais da saúde geralmente são os responsáveis pelos encaminhamentos ao sistema de justiça. E as razões para os encaminhamentos, afirma Thainara, vão de “crenças pessoais e religiosas e à possibilidade de enfrentar uma pena criminal mais elevada por realizar os abortos do que as pacientes por terem se submetido”.
O crime do aborto
Atualmente, no Brasil existem três tipos de procedimentos abortivos que são considerados crimes. O autoaborto, praticado pela própria gestante ou por um médico, com o consentimento dela; o aborto realizado por uma terceira pessoa, sem o consentimento da gestante; e o aborto consentido, realizado por uma terceira pessoa, em que é incriminada a pessoa que provocou o aborto. Segundo o Código Penal, a punição para esses procedimentos, dependendo do caso, pode chegar a dez anos de prisão.
Em contrapartida, existem três exceções para a criminalização. A primeira ocorre nos casos em que a gravidez decorre de um estupro. A segunda, gestações em que o aborto é necessário para salvar a vida da mulher. E mais recentemente, em 2012, o STF permitiu abortos em casos de anencefalia, “uma condição médica fatal em que os bebês nascem sem partes do cérebro ou crânio”, explica a advogada. Mesmo assim, desde 2019, o legislativo recebeu no mínimo 30 projetos de lei que vetavam aspectos do direito ao aborto no País.
Desequilíbrio no judiciário
Um relatório da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, divulgado em 2018, aponta que dos 55 processos de aborto realizados entre 2004 e 2017, 60% das mulheres processadas eram negras. “De acordo com o que as mulheres são profissionalmente ou de onde socialmente elas vêm, do pertencimento racial, tudo isso acaba sendo também posto um julgamento nos processos”, afirma Thainara. Esse desequilíbrio, somado à ausência da presunção de inocência, é o que o grupo de pesquisadores envolvidos na produção do relatório chama de falhas processuais.
A causa dessas falhas processuais no cenário brasileiro é um judiciário “institucionalmente racista e machista”, adianta a pesquisadora, exemplificando que uma mulher que recusa seu status natural de mãe “é considerada com algum desvio psíquico e uma afronta à sociedade”.
Impedidas de questionar
O relatório também chama a atenção para as mulheres que de certo modo são impedidas de recorrerem no caso de decisões desfavoráveis. Nos tribunais de primeira instância do País, aproximadamente 75% dos recursos apresentados pelas acusadas, pedindo extinção do processo por falta de provas, foram negados. As rés dos processos enfrentam problemas tanto financeiros e emocionais quanto técnicos.
Segundo Thainara, para recorrer a uma sentença é preciso boa fundamentação, de forma a abrir espaço para debater os pontos controversos. “O que ocorre aqui na maior parte das vezes é que as sentenças são fundamentadas na própria condenação das mulheres, então eles [os juízes] utilizam e citam diretamente as alegações da acusação com pouco espaço de investigação sobre as provas e sem questionar as conclusões das acusações”. A pesquisadora conclui que as mulheres acabam não tendo material técnico suficiente para contestar as sentenças, o que acaba prejudicando o recurso.
O estudo Aborto no Brasil: Falhas Substantivas e Processuais na Criminalização de Mulheres foi desenvolvido e supervisionado pelas professoras Fabiana Cristina Severi e Gislene Aparecida dos Santos, e contou com uma equipe de 11 pesquisadores estudantes de graduação e pós-graduação da FDRP e da EACH.
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