Machismo e racismo atropelam direito de brasileiras em tribunais

Relatório analisou 167 decisões judiciais relacionadas à acusações de aborto no Brasil e integra o TrialWatch Relatório sobre Mulheres e Meninas, iniciativa da Clooney Foundation for Justice

 05/08/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 08/08/2022 às 13:04
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Fotomontagem, com foto de PxHere, sobre casos de aborto – Arte: Jornal da USP

 

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No Brasil, profissionais de saúde, policiais e membros de tribunais violam, individual e em conjunto, os direitos das mulheres e o direito à privacidade de seus cuidados médicos. A conclusão é de estudo realizado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP em parceria com a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP e com o Instituto de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Columbia, nos Estados Unidos. O estudo analisou 167 decisões judiciais relacionadas à acusações de aborto no Brasil e integra o TrialWatch Relatório sobre Mulheres e Meninas, iniciativa da Clooney Foundation for Justice.

De acordo com o levantamento, nos últimos cinco anos, o Brasil registrou cerca de 400 mil processos por ano relativos ao autoaborto ou aborto consentido. E as mulheres negras e de comunidades de baixa renda “são os principais alvos das investigações e condenações porque elas dependem desproporcionalmente dos serviços de saúde pública”, conta a advogada Thainara Saiane da Silva José, pesquisadora da FDRP e integrante do estudo.

Segundo o relatório que compilou as análises, Aborto no Brasil: Falhas Substantivas e Processuais na Criminalização de Mulheres, os profissionais da saúde geralmente são os responsáveis pelos encaminhamentos ao sistema de justiça. E as razões para os encaminhamentos, afirma Thainara, vão de “crenças pessoais e religiosas e à possibilidade de enfrentar uma pena criminal mais elevada por realizar os abortos do que as pacientes por terem se submetido”.

O crime do aborto

Atualmente,  no Brasil existem três tipos de procedimentos abortivos que são considerados crimes. O autoaborto, praticado pela própria gestante ou por um médico, com o consentimento dela; o aborto realizado por uma terceira pessoa, sem o consentimento da gestante; e o aborto consentido, realizado por uma terceira pessoa, em que é incriminada a pessoa que provocou o aborto. Segundo o Código Penal, a punição para esses procedimentos, dependendo do caso, pode chegar a dez anos de prisão. 

Em contrapartida, existem três exceções para a criminalização. A primeira ocorre nos casos em que a gravidez decorre de um estupro. A segunda, gestações em que o aborto é necessário para salvar a vida da mulher. E mais recentemente, em 2012, o STF permitiu abortos em casos de anencefalia, “uma condição médica fatal em que os bebês nascem sem partes do cérebro ou crânio”, explica a advogada. Mesmo assim, desde 2019, o legislativo recebeu no mínimo 30 projetos de lei que vetavam aspectos do direito ao aborto no País.

Desequilíbrio no judiciário

Thainara Saiane – Foto: Reprodução/Instagram

Um relatório da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, divulgado em 2018, aponta que dos 55 processos de aborto realizados entre 2004 e 2017, 60% das mulheres processadas eram negras. “De acordo com o que as mulheres são profissionalmente ou de onde socialmente elas vêm, do pertencimento racial, tudo isso acaba sendo também posto um julgamento nos processos”, afirma Thainara. Esse desequilíbrio, somado à ausência da presunção de inocência, é o que o grupo de pesquisadores envolvidos na produção do relatório chama de falhas processuais. 

A causa dessas falhas processuais no cenário brasileiro é um judiciário “institucionalmente racista e machista”, adianta a pesquisadora, exemplificando que uma mulher que recusa seu status natural de mãe “é considerada com algum desvio psíquico e uma afronta à sociedade”.

Impedidas de questionar

O relatório também chama a atenção para as mulheres que de certo modo são impedidas de recorrerem no caso de decisões desfavoráveis. Nos tribunais de primeira instância do País, aproximadamente 75% dos recursos apresentados pelas acusadas, pedindo extinção do processo por falta de provas, foram negados. As rés dos processos enfrentam problemas tanto financeiros e emocionais quanto técnicos.

Segundo Thainara, para recorrer a uma sentença é preciso boa fundamentação, de forma a abrir espaço para debater os pontos controversos. “O que ocorre aqui na maior parte das vezes é que as sentenças são fundamentadas na própria condenação das mulheres, então eles [os juízes] utilizam e citam diretamente as alegações da acusação com pouco espaço de investigação sobre as provas e sem questionar as conclusões das acusações”. A pesquisadora conclui que as mulheres acabam não tendo material técnico suficiente para contestar as sentenças, o que acaba prejudicando o recurso.

O estudo Aborto no Brasil: Falhas Substantivas e Processuais na Criminalização de Mulheres foi desenvolvido e supervisionado pelas professoras Fabiana Cristina Severi e Gislene Aparecida dos Santos, e contou com uma equipe de 11 pesquisadores estudantes de graduação e pós-graduação da FDRP e da EACH.


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