Uma das vantagens da tecnologia é que ela pode possibilitar à humanidade desenvolver novas estratégias para lidar com velhos problemas. É o que acontece no caso da atual pandemia. Não é de hoje que os seres invisíveis, a quem chamamos vírus, vêm aterrorizando os humanos; mas nossos antepassados não tiveram a chance de ter nas mãos uma poderosa arma na guerra contra os inimigos: os telefones celulares.
“Como diz o próprio nome, os telefones celulares formam uma rede de células, em que cada telefone se conecta a uma antena mais próxima, formando uma malha de inúmeras células de telefonia distribuídas pelas cidades. É por isso que os deslocamentos podem ser facilmente detectados, identificando em qual célula estamos conectados e qual a intensidade do sinal, considerando a proximidade das antenas”, explica o professor Fernando Osório, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos.
Ou seja, os dados sobre a localização das pessoas são obtidos por meio do registro de qual antena está atendendo quais telefones, estando ativada ou não a localização por GPS no aparelho. Para não ser localizado, só mesmo desligando o telefone ou deixando o aparelho em casa. Por isso, o sistema de telefonia, usualmente, já tem registradas informações sobre onde moramos e dormimos, nosso endereço de trabalho e as atividades que costumamos realizar rotineiramente.
Unindo esses dados a ferramentas de inteligência artificial é possível identificar como as pessoas estão se deslocando e onde há grupos e multidões, diz Osório: “No caso dos deslocamentos, podemos monitorar quando um determinado aparelho trocou de posição e de antena, ao qual estava conectado. É possível, inclusive, monitorar perfis de usuários: um motorista de caminhão, por exemplo, tem certo padrão de deslocamento, que vai ser bem diferente das outras pessoas que residem na cidade onde ele está passando”.
O professor ressalta, ainda, que coletar e analisar esses dados é de grande importância para que possamos adotar estratégias inteligentes de gestão na guerra contra o vírus: “Todos esses dados podem e devem ser disponibilizados de modo anônimo, sem invadir a privacidade das pessoas. De posse deles, é viável aplicar técnicas de inteligência artificial para estimar a propagação do vírus e ajudar no controle do avanço da doença”.
Especialista em segurança na web, a professora Kalinka Castelo Branco, do ICMC, ressalta que até mesmo entre os profissionais que atuam na área a discussão sobre o uso desses dados tem gerado muita polêmica. “A gente tem hoje uma pandemia, então, temos a necessidade de acessar os dados para poder auxiliar na contenção do novo coronavírus. O que temos como premissa é que nenhum dado deve ser suprimido ou não fornecido em um contexto assim. Mas o debate que devemos trazer à tona é sobre como esses dados devem ser protegidos e como devem ser liberados”, ressalta a professora.
Na opinião de Kalinka, temos que mudar o foco da discussão: não se trata de avaliar se devemos ou não acessar os dados dos celulares, pois já há evidências científicas do quanto isso é extremamente relevante na luta contra a covid-19. O que precisamos é avançar na construção de regulamentações, processos e procedimentos.
“O grande problema que a gente tem aqui no Brasil é a falta de uma legislação. A entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que já deveria estar vigente no País, foi protelada para janeiro de 2021 e as sanções poderão ser efetuadas até agosto do ano que vem. O problema é que nós já deveríamos ter leis e formas de regulamentar o uso dos dados coletados dos celulares”, ressalta a professora.
Segundo ela, os Estados Unidos e os países da Europa saíram na frente no uso dessa arma contra a covid-19 justamente pelo fato de já terem essas leis regulatórias, garantindo o respeito aos dados privados: “O que nos falta também, e que a gente vê que existe nos países da Europa e em outros lugares, é uma autoridade nacional de proteção de dados”.
A professora revela que a existência de uma autoridade na área possibilita a criação de normas específicas sobre o uso dos dados, além do estabelecimento de regras que assegurem aos usuários informações transparentes sobre o que está sendo coletado, o que permite às pessoas tomarem atitudes para preservação da segurança. “Atualmente, a gente não tem indicações e meios sobre como proceder para que a segurança dos dados privados seja realmente garantida”, adiciona Kalinka.
De acordo com informações oficiais, o Sistema Inteligente de Monitoramento (Simi-SP), que está sendo utilizado pelo Governo do Estado de São Paulo, por exemplo, não possibilita a identificação do número do celular das pessoas. “Nesse caso, as empresas estão fornecendo ao governo um grupo de informações já pré-processadas e não individualizadas”, diz a professora. “A gente pode ter problema com isso? Os dados podem cair em mãos erradas? Sim. É por isso que eu volto a dizer: precisamos ter regulamentações e leis”, defende.
Na guerra contra o novo coronavírus, os celulares são uma arma não só por causa do monitoramento a partir dos dados das operadoras de telefonia móvel. Essa é somente uma entre as diversas estratégias que podem ser empregadas quando temos uma arma tão poderosa como essa em mãos. Uma estratégia que tem, inclusive, limitações. “Você tem erros da casa de 50 metros ou, dependendo do celular, até mais. O monitoramento informa apenas que a pessoa está aproximadamente em certo lugar e quantas outras pessoas estão ali, mas não dá para dizer que ela pode ter infectado alguém que está muito próximo”, revela a professora do ICMC.
Para obter dados mais exatos sobre a proximidade de uma pessoa contaminada com alguém não contaminado, por exemplo, é necessário utilizar outras tecnologias, como o sistema Bluetooth, que possibilita a conexão sem fio do celular com outros dispositivos eletrônicos. Por estabelecer uma conexão por meio de ondas curtas e de baixo alcance, o Bluetooth só funciona se as pessoas estiverem perto umas das outras. Isso implica maior precisão na localização dos usuários do que as antenas das operadoras de telefonia móvel.
Um aplicativo criado pelo governo de Singapura, chamado TraceTogether, já utiliza esse sistema. “Quando a pessoa instala o aplicativo, pode informar se está contaminada. Assim, se ela passar perto de outra pessoa que tem o aplicativo, o sistema Bluetooth possibilitará que o outro seja informado, por meio de um alerta. É óbvio que lá eles já têm uma regulamentação, os dados coletados são enviados para um serviço do governo, que também já é regulamentado e assegura a privacidade dessas informações.”
Até gigantes da tecnologia como a Apple e o Google anunciaram, no final da semana passada, que criarão, em conjunto, uma solução para permitir que smartphones com sistema Android (Google) e iOS (disponível nos iPhones da Apple) consigam trocar informações via Bluetooth e alertar sobre o risco de contágio de maneira anônima. Um sinal de que as maiores empresas do mundo compreenderam o valor dos celulares no combate à pandemia.
Tal como qualquer outra arma, esses dispositivos podem ser usados tanto para nos proteger quanto para nos ameaçar. Haverá mais benefícios do que problemas no uso dessa arma? Isso depende, essencialmente, da maneira como a humanidade estabelecerá as regras do combate. A guerra está acontecendo e, por enquanto, nosso inimigo invisível está vencendo.
Texto: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação do ICMC/USP