Uma resposta da homeopatia a Beny Spira

Clarice Vaz é médica veterinária pela FMVZ e especializanda em Bioética na FMUSP

 19/05/2017 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 22/05/2017 as 10:27
Clarice Vaz – Foto: Arquivo pessoal
Com a transição de uma concepção mitológica de cosmos para um reconhecimento epistemológico da razão enquanto critério de legitimação do conhecimento, a civilização ocidental inaugura, na Antiguidade, uma nova forma de vida social. A crença é substituída pelo logon didonai como método de validação: é no prestar contas/dar razões socrático que passa a residir o exercício de apuração por parte de um orador e seus interlocutores. As palavras proferidas pelo orador constituem uma responsabilidade inalienável.

Tamanho salto cronológico tem como objetivo salientar o seguinte: a censura ao logon didonai, à prestação de contas no âmbito acadêmico e fora deste, ao direito de difusão de conhecimento – seja ele compatível com suas afiliações científicas, políticas e filosóficas ou não – parece-nos mais “arcaico” do que os argumentos utilizados para assim caracterizar a homeopatia. Não fica claro o modo pelo qual uma apologia à restrição institucional para determinados objetos de estudo favorecerão a ciência e a sociedade. Muito menos como a adoção de um tom desdenhoso se adequa ao progresso científico.

Reconhecemos que fatos científicos não derivam de plebiscitos. Tal não equivale, contudo, a afirmar-se que “a ciência não é democrática”. Declaração alarmante e que representa a mentalidade vigente em muitas circunstâncias.

Entenda-se: a importância do conhecimento científico é inequívoca, a história e a filosofia da ciência estão aí para confirmar isso. Não se trata de “jogar fora o bebê junto com a água do banho”. Porém é um equívoco adotar uma perspectiva polarizada e possessiva da ciência. Ela não é exclusivamente A ou B e muito menos pertence a um grupo restrito de indivíduos – os cientistas.

Lembremo-nos de que a ciência é objeto de estudo de diferentes áreas e a sua discussão se dá em esferas distintas. É fácil perder-se esta perspectiva em um panorama de ultraespecialização e de compartimentalização estrita dos saberes: facilitadores na formação de sábios-ignorantes.

A filosofia da ciência surge como um terreno fértil para a análise do conflito concernente à homeopatia (vide o artigo A homeopatia como ciência: uma análise filosófica, de autoria do professor Sílvio Chibeni, da Unicamp). A sociologia, idem (destaque-se a vasta bibliografia da autora Madel Terezinha Luz sobre o tema). O que equivale a dizer que não só de ciência se alimenta a ciência. É na transdisciplinaridade, mais do que numa inter ou multidisciplinaridade, que muitos temas manifestam sua potência.

A alusão ao artigo de metanálise de Shang et al. (2005) que é feita no seu artigo deixa a seguinte dúvida: leu o texto que serviu de base à entrevista que censurou?  A questão parte do seguinte: logo no primeiro capítulo da minha dissertação de mestrado, não por acaso intitulado “O conflito”, é feita uma referência ao mesmo artigo de Shang et al. (2005). Na sequência, é apresentada a réplica por parte do pesquisador homeopata José Eizayaga, com a publicação do artigo “The Lancet e o proclamado fim da homeopatia: revisão crítica de publicação de Shang et al. (2005) e dos artigos relacionados subsequentes”. A escolha das nossas referências e o modo como encerramos uma discussão, quando ainda existe a ser dito, demonstra que a ciência é mais do que esse monolito hermético e imparcial que dá a transparecer. De resto, poderíamos nos questionar sobre a legitimidade de alguém que reitera o método científico tão acirradamente sequer se empenhar em conhecer o objeto criticado.

Existem sérias implicações na utilização da homeopatia no âmbito da saúde humana e animal tal como em qualquer outro modelo de prática médica. A responsabilidade para com a saúde, a doença, a vida e a morte requer, além de conhecimentos científicos e de ordem mais técnica, um trabalho de reflexão ética que norteie tais práticas.

Existem sérias implicações éticas também na marginalização de determinados tipos de saber, além do óbvio caráter espoliativo implícito. No caso específico da homeopatia, assistimos a um bloqueio ao desenvolvimento de uma prática médica com milhões de usuários. Criar condições não só de resistência, mas de plena existência à homeopatia é respeitar a autonomia do indivíduo e permitir que este seja um protagonista ativo no processo de saúde-adoecimento.

A desventura não foi em vão. Após a publicação do artigo do professor Beny Spira no Jornal da USP e sua divulgação no Facebook do Estadão e no site Catraca Livre, a discussão sobre a homeopatia intensificou-se, tanto no âmbito informal como em meios especializados. Saliente-se o excelente texto de resposta do dr. Lucas Franco Pacheco (disponível em http://doutorlucashomeopatia.com.br/2017/05/17/resposta-geneticista-da-usp-homeopatia-funciona/).

O conflito é histórico e está longe de ser resolvido. A questão é complexa mas não insolúvel. A homeopatia tem provas dadas de sua capacidade de resistência, através da firme convicção de seus usuários e praticantes. Porém, faz-se necessária a criação de um cenário mais favorável ao estudo e pesquisa da homeopatia, colocando um ponto final ao clima de constrangimento e censura que envolve o tema, seus praticantes e opositores.

Deixo alguns exemplos de bibliografia útil a quem se interessar pelo tema:

 

  1. KOSSAK-ROMANACH, A. Homeopatia em 1000 Conceitos. S. Paulo: Elcid, 2003. Versão em formato digital e de livre acesso disponível em:http://www.homeopatiaexplicada.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=56&Itemid=19

 

  1. LUZ, Madel TA Arte de Curar versus A Ciência das Doenças.  São Paulo: Dynamis Editorial, 1996.

 

  1. ROSENBAUM, Paulo. Homeopatia e Vitalismo. São Paulo: Robe  Editorial, 1996.

 

  1. ROSENBAUM, Paulo. Homeopatia – medicina interativa, história lógica. São Paulo: Imago, 2000.

 

  1. ROSENBAUM, Paulo. Fundamentos de homeopatia para estudantes de medicina e de ciências da saúde. São Paulo: Roca, 2002.

 

  1. TEIXEIRA, M. Z. A Natureza Imaterial do Homem. S. Paulo: Petrus, 2000. Versão em formato digital e de livre acesso disponível em: http://www.homeozulian.med.br/livros/A%20Natureza%20Imaterial%20do%20Homem%20-%20Dr.%20Marcus%20Zulian%20Teixeira.pdf

 

  1. WAISSE, Silvia. Hahnemann – um médico de seu tempo. São Paulo: EDUC, 2005.

Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.