* Lúcia G. Lohmann, Gregório Ceccantini, Miguel Trefaut Rodrigues, Regina Célia Mingroni-Netto e Gladys F. Melo-de-Pinna, do Instituto de Biociências da USP, Mário de Pinna, do Museu de Zoologia da USP, e Rafaela C. Forzza, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
A precoce partida do professor Renato de Mello-Silva, professor titular do Instituto de Biociências (IB) da USP, abalou muito todos os colegas, amigos e a comunidade botânica em geral. Professor no Departamento de Botânica do IB-USP desde 1988, Renato sempre colaborou nas decisões com suas opiniões claras e objetivas, trazendo de forma prática o entendimento dos fatos em um pensamento de integração e coletividade. Publicou 115 trabalhos em revistas científicas e 37 capítulos de livros. Neste período também orientou 16 alunos de iniciação científica, 20 alunos de pós-graduação (mestrado e doutorado) e supervisionou cinco pós-doutores.
Era reconhecido internacionalmente pelo seu trabalho com os campos rupestres da Cadeia do Espinhaço e outras regiões montanhosas brasileiras, e sobretudo pelo seu trabalho com as famílias botânicas Velloziaceae e Annonaceae. Passou longos períodos no Royal Botanical Gardens, Kew (Reino Unido), onde desenvolveu etapas importantes de suas pesquisas, incluindo estudos sobre a taxonomia, filogenia e evolução das famílias de sua especialidade. Estabeleceu colaborações relevantes com botânicos de diversas instituições nacionais e de outros países, notadamente Inglaterra, Holanda e Alemanha. Atuou como membro do Comitê Internacional de Nomenclatura da IAPT (International Association for Plant Taxonomy) e como membro do corpo editorial da Revista Brasileira de Botânica, da revista Hoehnea e do Boletim de Botânica da USP.
Renato era dessas pessoas únicas que raras vezes encontramos pela vida. Dotado de curiosidade científica e cultural ímpares e grande amor pela natureza, seu dia a dia era pensar a origem e evolução das plantas que tanto amava. Vibrava com amostras desconhecidas, a ponto de cruzar o País (ou outros países, como Argentina e Bolívia) para obter uma exsicata melhor de uma espécie pouco conhecida. Disciplinado e incansável no campo, a natureza o tranquilizava. Coletava plantas para todos, não só dos grupos de sua especialidade, com alegria e afinco, ciente da responsabilidade que tinha para com as coleções e de seu papel científico e educativo. Mencionava sempre que as coleções no Brasil não eram valorizadas o suficiente e que precisávamos coletar mais intensivamente para documentar a biodiversidade que estamos perdendo. Coletou milhares de amostras de plantas durante numerosas expedições de coleta, sempre com enorme entusiasmo e acompanhado de alunos ou colegas.
Em uma de suas últimas viagens foi ao Pico da Neblina. Apaixonado pela flora das montanhas, coletar no ponto mais alto do País constituiu a realização de um dos maiores sonhos de sua vida, culminando com a publicação de uma lista de espécies dessa área dias antes de sua partida desta vida. Planejava integrar uma segunda viagem, desta vez à Serra do Imeri, também isolada na imensidão da Amazônia. Se um dia a viagem vier a ocorrer, a equipe não poderá partilhar de sua alegria e surpresa ao se defrontar com um mundo desconhecido, não desfrutará de sua companhia, nem testemunhará mais a sua garra no campo. No entanto, sua lembrança estará com todos, transmitindo sua força e a esperança por um mundo melhor.
Renato também tinha uma imensa cultura museológica, tendo visitado museus de arte, de história natural, reservas técnicas e coleções científicas no mundo todo. Argumentava que as coleções não são depósitos de peças biológicas inertes, mas serão mais vivas quanto mais visitadas forem, e quanto mais forem compartilhadas suas duplicatas e dados. Manteve e expandiu as atividades do Herbário do IB-USP (SPF), no qual atuou como curador desde 2009. Promoveu grande aprimoramento e expansão da capacidade de armazenamento desse herbário e planejava a união do acervo com outras coleções ameaçadas por fragilidades institucionais. Também foi durante seu tempo como curador que grande parte da coleção foi digitalizada e publicada on-line em diferentes repositórios.
Tinha uma visão holística dos museus, com o claro objetivo de conservar o acervo para as próximas gerações de pesquisadores e, ao mesmo tempo, beneficiar toda a sociedade, aplicando as informações contidas nas coleções para a conservação dos recursos naturais. Do seu ponto de vista, este patrimônio pertencia a toda a humanidade e deveria ser compartilhado amplamente. Fazia controle de pestes destruidoras de coleções, aplicando ele mesmo defensivos químicos tóxicos. Atuou para a proteção do acervo contra o fogo, pois tinha pavor que ocorresse no IB-USP o mesmo que ocorrera no Instituto Butantan e, mais recentemente, no Museu Nacional. Foi frustrado por editais concedidos que não cumpriram o prometido e não pagaram os custosos equipamentos de controle de incêndio. Mas não tinha desistido e estava se concentrando nesse intento outra vez. Deixou muitas lições sobre coleções que vamos continuar a perseguir: museus com grandes acervos da biodiversidade bem curados, bem protegidos para a posteridade e cientificamente vivos.
No que se refere ao ensino, Renato era um ótimo didata. Suas exposições eram dinâmicas, bem ilustradas, criativas e bonitas. Cheias de alusões e alegorias periféricas sobre as vidas e gostos dos cientistas do passado, mostrando como aquele conhecimento e aquelas descobertas eram vibrantes e iluminadas. Sua enorme erudição, que incluía música e literatura, dialogava com a teoria botânica. Nas aulas práticas, não respondia diretamente às perguntas: respondia com outras perguntas que faziam os alunos pensar. Com esta abordagem, ele buscava mostrar o que o aluno já sabia, em seguida pensar na própria questão, instigar o poder de observação e, por fim, explicar tudo com calma. Durante os seus 30 anos como docente, ele fazia espontaneamente o que os estudiosos do ensino recomendam hoje: resgatar o conhecimento preexistente, pensar no problema, refletir sobre possíveis respostas e ajudar o aluno a ligar os pontos e assim construir seu conhecimento e autoconfiança.
Renato contribuiu com diversas disciplinas de pós-graduação e com várias disciplinas de graduação, destacando-se as disciplinas Sistemática e Evolução de Espermatófitas e Princípios de Sistemática e Biogeografia, nas quais participou desde sua concepção. Suas aulas expositivas sobre as monocotiledôneas eram famosas e apreciadas por todos. Por outro lado, a inclusão do tema Princípios de Sistemática e Biogeografia no núcleo básico do curso de graduação em Ciências Biológicas foi uma iniciativa pioneira e muito oportuna, cujo sucesso foi subsequentemente replicado em outras universidades. Tal ideia envolveu o desafio de desenhar uma disciplina sem precedentes no currículo, focada nos fundamentos da sistemática filogenética e integrando docentes dos departamentos de Botânica e Zoologia, um desafio que Renato achou instigante e executou com diligência. Com seu talento de comunicador, ele conseguia transmitir os conceitos e métodos mais abstratos para alunos desprovidos de qualquer base de conhecimento prévio do assunto, desde reconstrução filogenética até os meandros da nomenclatura biológica. Os colegas que tiveram a felicidade de compartilhar com ele a disciplina lembram com imensa satisfação os dias de aula, em que todos assistiam a todos.
Também são inesquecíveis as refeições compartilhadas no Clube dos Professores da USP e os intervalos enriquecidos com conversas intelectuais ou mundanas. No ano de 2019, aceitou um novo desafio na sua carreira de mestre, ensinar morfologia de plantas para comunidades da Amazônia. As aulas com Renato eram uma diversão do início ao fim. Sua efetividade na transmissão do conteúdo instigava a todos e contagiava a sala de aula. Só em sua casa possuía mais de 1000 livros de naturalistas e de filosofia, que enriqueciam qualquer conversa com ele.
Como coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas (Botânica) por três mandatos consecutivos, entre 2011 e 2017, sua contribuição foi vital para a modernização do programa: simplificação da burocracia e progressão do programa para a nota máxima das avaliações (7, pela Capes). Foi presidente da Comissão de Pós-Graduação (CPG) do IB-USP, também exercendo vários mandatos, desde 2012 até o presente. Renato defendia que o IB-USP e a Pós-Graduação do IB-USP seriam muito beneficiados por reformas que atenuassem o caráter segmentado do instituto. Renato enxergava os objetivos comuns aos diferentes programas de pós-graduação e departamentos do IB-USP e acreditava que estas afinidades deveriam ser exploradas e desenvolvidas em conjunto. Tinha como meta incrementar a integração entre os diferentes programas de pós-graduação e o fluxo das atividades de pesquisa entre eles.
Em resumo, Renato foi um profissional muito competente e brilhante, que ostentava todos os louros que a USP se honra em exibir, bem como representava todas as facetas do IB-USP: respeito e amor à natureza, excelência na pesquisa, ética profissional, empolgação com o trabalho de campo, além de profunda dedicação, respeito e zelo pela qualidade do ensino de pós-graduação e de graduação. Seu exemplo já deixou marcas profundas em muitos colegas e alunos, e viverá para sempre.