A dificuldade do tema está no fato de o apoio militar norte-americano, ao final das contas, não ter sido necessário. Como mostra de forma detalhada o novo livro de Heloísa Starling, A máquina do golpe, apesar de o governo Lyndon Johnson ter aprovado uma gigantesca força-tarefa naval para oferecer suporte logístico e militar aos conspiradores – operação que receberia o codinome de Grande Irmão –, essa força-tarefa acabaria sendo cancelada antes de chegar ao litoral brasileiro. Já que o governo Goulart cairia sem resistência, não tinha por que explicitar o apoio ianque a uma causa ganha.
Por mais que a Operação Grande Irmão esteja fartamente documentada, ainda pairam dúvidas sobre até onde Washington estaria disposta a ir. Tratava-se de oferecer somente armas, munições e combustível aos golpistas, ou será que o governo Johnson concebia ir além, atacando diretamente forças brasileiras por água e ar, além de desembarcar tropas em solo brasileiro?
Para responder a essa pergunta, o Núcleo de Apoio à Cultura e Extensão da Comissão Nacional da Verdade-Brasil (NACE CNV-Brasil) da USP publicou, no aniversário dos 60 anos do golpe de 1964, um documento bombástico que prova que os ianques estavam, sim, pelo menos concebendo uma ajuda militar de gigantescas proporções aos golpistas. Se concretizada, essa ajuda representaria a maior intervenção militar de uma potência estrangeira na história da América Latina.
Trata-se de um plano de contingência elaborado pela Embaixada norte-americana no Rio de Janeiro em 4 de novembro de 1963, ainda durante a presidência de John F. Kennedy, que previa três possíveis cenários de enfrentamento entre forças pró-Estados Unidos e o governo Goulart, e a ajuda norte-americana que seria necessária em cada um deles.
No primeiro cenário, os ianques pressupunham um ato explicitamente ilegal de Goulart, como o fechamento do Congresso Nacional, por exemplo, o que, segundo a Embaixada, não demandaria apoio logístico e militar norte-americano explícito, já que as Forças Armadas brasileiras, em sua maioria, resistiriam a um movimento desse tipo por parte de Jango.
Em outro cenário, a Embaixada projetava ações ambíguas de Goulart no sentido de cercear, bloquear ou até mesmo eliminar forças opositoras, o que provavelmente acabaria rachando as Forças Armadas brasileiras. Aqui a Embaixada previa, inicialmente, apoio explícito em termos de suprimentos de armas, munições e combustíveis, mas que poderia evoluir para algo muito maior em caso de uma guerra civil prolongada.
No último cenário (que, na verdade, é o segundo cenário na sequência apresentada pelo documento), previa-se o surgimento de uma confederação de Estados aliados aos Estados Unidos que proclamariam secessão do Brasil de Goulart.
Formada pelos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, essa confederação se rebelaria contra o governo federal visando, obviamente, derrubar João Goulart, e isso sem que o presidente tivesse dado qualquer pretexto, explícito ou ambíguo, para tal.
Nesse impressionante cenário, a Embaixada ianque projetava a necessidade de uma gigantesca operação logística e militar dos Estados Unidos no Brasil em apoio à confederação. Dado que o governo Goulart, pelos cálculos da Embaixada, acabaria retendo o grosso das forças terrestres, aéreas e navais do País, a confederação rebelada não teria qualquer chance de vitória sem um suporte de grande magnitude de Washington.
E que suporte seria esse, exatamente? Tratava-se, nada mais, nada menos, de prover uma companhia inteira de Forças Especiais, composta de sete brigadas (dois mil soldados cada); uma companhia de engenharia; uma companhia para transporte aéreo leve; uma brigada aerotransportada, uma brigada de infantaria e um hospital móvel. Ao total, a Embaixada previa colocar algo em torno de 35 mil soldados ianques em solo brasileiro.
Isso sem contar toda a parte relativa à Marinha e à Aeronáutica, que envolveria, entre várias outras unidades, um porta-aviões, um porta-helicóptero, seis destroieres e sete esquadrões aéreos de diferentes características. Enfim, como dissemos, tratava-se de uma intervenção militar sem precedentes.
O plano de contingência também trazia um mapeamento detalhado sobre as distâncias e necessidade de reabastecimento para jatos entre as bases ianques no Canal do Panamá e aeroportos brasileiros, principalmente aqueles do Estado de São Paulo (Congonhas, Cumbica e Viracopos).
O plano apresentava ainda um mapeamento extensivo sobre a capacidade de refino e de estoque de vários tipos de combustíveis e alimentos para diferentes regiões brasileiras, com destaque para as cidades de Belém, Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Trazia, da mesma forma, uma listagem das principais rádios, com suas respectivas frequências, do Rio e de São Paulo.
É verdade que estamos falando de um plano de contingência, o que significa que se trata de uma projeção da Embaixada sobre possíveis cenários, e não de decisões que tivessem sido aprovadas oficialmente pelo governo Lyndon Johnson. No entanto, dado que Washington acabaria aprovando uma enorme operação logístico-militar de apoio ao golpe, é plausível supor que, se houvesse resistência por parte do governo Goulart, os Estados Unidos estariam prontos para intervir de forma muito mais significativa no território brasileiro.
Com tamanho apoio previsto aos golpistas, que certamente foi divulgado pelas lideranças dos movimentos a outros oficiais, pode-se entender o porquê de muitas lideranças das Forças Armadas que vinham se posicionando de forma neutra e até mesmo legalista terem debandado em manada a favor dos conspiradores.
Até hoje, essa impressionante e ilegal intervenção na política brasileira, com consequências tão dramáticas para o nosso país, que conviveria com uma ditadura de 21 anos como decorrência do golpe de 1964, ainda não resultou em um pedido oficial de desculpas por parte de Washington.
O passado não pode ser desfeito, mas pode e deve ser reparado. E os Estados Unidos devem uma reparação à sociedade brasileira por esse ato de indefensável violação à soberania nacional.
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