O fenômeno do filme “A sociedade da neve” nos Prêmios Goya 2024, para os melhores do cinema espanhol

Por João Eduardo Hidalgo, pós-doutorando na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 04/03/2024 - Publicado há 2 meses
João Eduardo Hidalgo – Foto: Arquivo pessoal

 

A festa do audiovisual espanhol, com a 38ª entrega dos Prêmios Goya, aconteceu em fevereiro deste ano, em Valladolid. Os prêmios são concedidos para os diferentes profissionais do cinema espanhol, desde 1987. A premiação acontecia comumente em Madri, mas esta foi a sexta festa fora da capital, a próxima edição, 2025, será em Granada. Os ganhadores recebem um busto do pintor Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828), a pequena estátua pesa três quilos e é uma cópia em bronze da escultura feita por Mariano Benlliure, em 1902.

Muitos dos grandes autores do audiovisual, ainda que não todos, receberam a premiação. Alguns nomes: Carlos Saura; José Luis Garcí (que recebeu o primeiro Oscar para o cinema espanhol com Volver a empezar, 1982); Fernando Trueba (segundo Oscar espanhol com Belle époque, 1992); o cineasta que dispensa apresentações Pedro Almodóvar (terceiro Oscar para Todo sobre mi madre, 1999, além de ganhar o Oscar de Melhor Roteiro Original para Hable con ella, 2002); Alejandro Amenábar (quarto Oscar para Mar adentro, 2003). E também os excelentes diretores, que não têm público internacional, circulando em ciclo de filmotecas, centros culturais e congêneres: Alex de la Iglesia; Iciar Bollaín; Agustí Villaronga; Isabel Coixet; Jose Luis Borau; Pilar Miró; Luis García Berlanga; Gonzalo Suárez; Fernando Fernán-Gomez; David Trueba; Fernando León de Aranoa; Vicente Aranda e Imanol Uribe; qualquer um deles é bom programa, caso encontrem suas obras pelos streamings que se multiplicaram nos últimos anos.

Não posso deixar de nomear os que não receberam o prêmio por ser de outra época, ou de outras vertentes, mas que são fundamentais para entender o cinema espanhol, são eles: Segundo de Chomón, um dos fundadores do cinema mundial, trabalhou com Georges Méliès, com os irmãos Pathé; criou um carrinho para os movimentos de câmera para Cabiria, de 1914, dirigido por Giovanni Pastrone, e foi um dos técnicos em Napoleon, de Abel Gance de 1927. Suas obras significativas são El hotel eléctrico (1908) e La mariposa dorada (1907); um gênio, seu trabalho é bastante divulgado pela Filmoteca da Catalunha, através de seu experiente diretor Esteve Riambau (grande teórico da Escuela de Barcelona, movimento cinematográfica catalão).

Outro diretor dos primórdios do cinema espanhol é Edgar Neville, quem tem muitos filmes, mas destaco La torre de los siete jorobados de 1944. Numa Madri escura e misteriosa existe uma torre invertida, para baixo do solo, onde corcundas (judeus, complicado) se dedicam a falsificar papel moeda e grupos que querem destruir a sociedade (uma metáfora das duas guerras que a Espanha viveu e vivia). Um retrato sem retoques da situação social da época imediatamente posterior é o filme Surcos (1951), de José Antonio Nieves Conde, que mostra os problemas vividos por uma família que abandona o pueblo e vai tentar a sorte em Madri. O estraperlo, a venda de produtos escassos por quantias altas, é retratado no filme, assim como a dificuldade de adaptação na metrópole de pessoas sem qualificação, como é o caso da maioria dos membros dessa família. Temos aqui um dos primeiros filmes espanhóis a dialogar com o neorrealismo italiano, que influenciaria em muito a cinematografia mundial da década.

Luis Buñuel, o primeiro espanhol mundial, dirigiu Viridiana, de 1961, que causou um escândalo no Vaticano, que se refletiu na Espanha católica. Basílio Martín Patino, com seu tristonho panorama da Guerra Civil Espanhola e Segunda Guerra Mundial e das mazelas pelas quais a população estava passando, como Cartilha de Racionamento, reescrita da história recente, a situação dos povoados que desapareceram durante a guerra, tudo com uma montagem exemplar em Canciones para después de una guerra, de 1971.

Para quem acha Pedro Almodóvar irreverente e rompedor sugiro conhecer Eloy de la Iglesia, que mostra a vida sexual liberal em El diputado, de 1978, ou Colegas, de 1982, onde o ator principal é seu jovem parceiro marginal da vida real; Pedro Olea com ¡Pim, pam, pum…fuego! de 1975, um panorama da cínica vida da burguesia durante a ditadura. Os catalães Jacinto Esteva e Joaquín Jordá dirigiram um filme experimental e ajudaran a criar um cinema de contracultura chamado Escuela de Barcelona; sugiro a obra-prima Dante no es únicamente severo, de 1967, e a análise cuidadosa do crítico Esteve Riambau sobre o estilo.

Também fundamental para entender o final do franquismo e início da abertura política e cultural, que depois se convencionou chamar La Movida, é o filme El desencanto, de Jaime Chavarrí, de 1976. O movimento dos cinemas novos também teve seu filão na Espanha, mas não se deve esquecer que este novo cinema já tinha raízes autóctones delineadas em obras de Luís García Berlanga, Juan Bardem, Fernando Fernán-Gómez com La vida por delante (1958); o prolífico Carlos Saura com Los golfos (1959) e La caza (1966); Marco Ferreri com El cochecito (1960) e Mario Camus e o surpreendente Young Sánchez (1963).

Um filme desta época, do multifacetado Fernando Fernán-Gomez, é o inovador El extraño viaje, de 1964, retratando um povoado da Espanha profunda, localidades perdidas num passado opressor, um filme do gênero chamado Negro na Espanha, que mostrava pessoas sem rumo e sem um futuro promissor, como a maioria dos espanhóis do período; nele vemos uma mulher poderosa que subjuga seu amante, fazendo ele travestir-se, dois irmãos com uma certa deficiência intelectual; muito ódio e desconfiança nos habitantes do povoado e dentro das famílias, quase todos acabam tendo um mau destino. Outro filme que merece comentário é Nocturne 29, obra experimental e surrealista do criativo catalão Pere Portabella, que encontrei na Filmoteca de Catalunha em fevereiro de 2022, quando ele fazia 95 anos; agora já fez 97.

Como no Brasil nos anos 1970, começaram a surgir na Espanha filmes que exploravam, com muita ingenuidade, a nudez primeiro feminina e depois a masculina e que recebeu o nome de El destape. As produções eram modestas com estrelas muitas vezes já decadentes, prevalecendo a comédia de costumes. Dentro da sociedade reprimida da época elas foram um estrondoso sucesso. Antes do fenômeno Destape, para ver qualquer tipo de filme adulto, era necessário cruzar a fronteira com a França. Estas escapadas, principalmente até os cinemas das cidades francesas de Biarritz e Perpignan, eram célebres nas piadas masculinas da época. Satirizando este fato, foi feito Lo verde empieza en los Pirineos (1973), de Vicente Escrivá. Nestes mesmos anos tem destaque as produções de Ivan Zulueta, cineasta que representava a própria vanguarda dentro do cine underground madrilenho, e que já tinha um extenso currículo dentro da experimentação imagética com seus curtas: Na-da (1976), Leo es pardo (1976); e com seus longas Uno, dos, tres… al escondite inglés (1967) e Arrebato (1979), filme em que o diretor acaba sendo digerido pelo próprio cinema que produz.

Em julho de 2009 consegui o telefone de Zulueta em San Sebastian (Donostia), que vivia no Paseo Duque de Baena. Liguei e surpreendi uma voz masculina, debilitada, que não se identificou a princípio, mas quando eu disse que falava do Brasil e da minha admiração pelo seu cinema, disse que era o próprio. Falamos de uma possível vinda ao Brasil, ele me informou que não estava muito bem de saúde, conversamos um bom tempo sobre cinema e ficamos de pensar em algo; em dezembro do mesmo ano, um corpo maltratado pelas drogas e outros abusos, se revoltou contra seu dono e ele partiu, uma pena.

Os anos 1990 dão lugar a um número significativo de novos diretores, graças a uma mudança na legislação do audiovisual. Entre eles o mais talentoso é, a meu ver, o agora veterano Alejandro Amenábar, que em 1996 dirigiu seu grande filme Tesis, que conta a história de uma pós-graduanda (Ana Torrent) do Departamento de Audiovisual da Universidad Complutense de Madrid, que estuda a violência no cinema com os snuff-movies, filmes de supostas mortes reais. Este departamento e faculdade onde Amenábar estudou e onde o filme foi rodado é o mesmo onde em 2004 fiz a parte de pesquisa de meu doutorado (com uma bolsa Capes). Revendo o filme, vi a cafeteria, a biblioteca, a entrada e as principais salas da faculdade, até ter uma experiência de estar literalmente dentro do filme, esclareço, vendo o filme na videoteca da faculdade entra o personagem do orientador da tese (Miguel Picazo) nesta mesma videoteca, vai até o balcão onde eu havia pegado a fita de VHS, passa ao lado da cabine onde eu estava e entra numa porta no fundo da imensa sala, um momento único. E minhas aulas com o catedrático de Cinema Espanhol e orientador espanhol professor Emílio García Fernandez aconteciam no auditório onde o orientador fictício aparece morto, experiência única.

Um pouco depois disso fui convidado por Paz Sufrategui, assistente de Almodóvar, para a coletiva de lançamento do filme La niña santa de Lucrecia Martel, produzida por Pedro e Agustín Almodóvar, e uma jornalista que não fez a lição de casa perguntou a Almodóvar se ele tinha ainda esperança de que La mala educación (2004) representasse da Espanha no Óscar. Ele com uma cara bem aborrecida disse que já foi escolhido o filme Mar adentro de Amenábar, que ganhou (merecidamente) o Óscar de Filme Estrangeiro daquele ano. Listo alguns filmes do final dos anos 1990 e início dos 2000 que são obras memoráveis: La madre muerta (1993) de Juanma Bajo Ulloa; A los que aman (1998) de Isabel Coixet; Cuando vuelvas a mi lado (1999) de Gracia Querejeta; Volavérunt (1999) de Bigas Luna; Plenilunio (2000) de Imanol Uribe; En construcción de José Luis Guerin (2001); Octavia (2002) de Basilio Martin Patino; Soldados de Salamina (2003) de David Trueba; Te doy mis ojos (2003) de Iciar Bollain; e Tiovivo c.1950 (2004) de José Luis Garcí; a animação Donkey Xote (2008) de José Pozo e o filme mudo Blancanieves (2012) de Pablo Berger. Um panorama sempre é limitado e injusto com filmes e diretores, ficando muitos de fora, mas a intenção aqui foi dar uma ideia da riqueza e complexidade do cinema espanhol.

Voltando aos prêmios Goya de 2024 dois filmes concentravam as indicações das categorias do galardão: 20.000 especies de abejas com 15 indicações; La sociedad de la nieve, com 13 indicações; Cerrar los ojos com 11 indicações e o filme catalão Saben aquell também com 11 indicações.

Em 20.000 especies de abeja, a diretora Estibaliz Urresola Solaguren conta a história de Cocó, que nasceu Aitor, está com oito anos e passando por uma transição, se sente mulher, não quer ser chamado com seu nome masculino e depois de visitar uma igreja em Alcarràs, decide que quer ser Lucía, por ver a imagem de Santa Lucía de Siracusa. Culturalmente o filme é múltiplo, ouvimos espanhol, basco e o francês. A avó de Cocó se opõe à liberdade dada pela mãe, pois, para ela, “Deus nos fez homem e mulher”. A mãe diz que Cocó é um menino confuso e com muita sensibilidade, ela também não sabe muito bem como lidar, mas vai aprender. No desfecho do filme, Cocó quer ir a uma grande festa familiar com um vestido, a mãe aceita, mas ao chegar na festa Cocó decide tirar o vestido, e acaba fugindo para as montanhas do entorno. Um grupo de pessoas entre eles a mãe, saem gritando pela floresta “Aitor”, até que um menino amigo de Cocó começa a gritar “Lucía” e nisto é seguido sofridamente pela mãe. Lucía/Aitor aparece perto das colmeias dizendo “Abelhas, eu sou Lucía”.

A ideia do filme surgiu para Estibaliz quando ela, em 2018, leu sobre suicídio de Ikai, um menino trans do Principado de Andorra, que deixou escritos tristes e impactantes. Ikai era um membro acolhido pela Asociación Nizen de Euskal Herria (País Basco, Espanha), que reúne jovens trans e suas famílias. Estibaliz ouviu muitas das histórias e construiu o roteiro de seu filme tendo os mesmo como consultores. A diretora ganhou o Goya de Melhor Roteiro Original, merecido, Melhor Direção Revelação e Melhor Atriz Coadjuvante. Das 15 indicações que tinha, levou três, mas todas elas muito significativas. Devo fazer um destaque para a atriz mirim Sofía Otero, que vive Aitor/Lucía, que ganhou o Urso de Prata em Berlim de Melhor Interpretação Feminina, um talento a se acompanhar. A diretora aproveita muito as paisagens naturais da Catalunha e do País Basco, com longos planos sequências, mas peca no excesso de cenas longas e muito contemplativas, como quando Aitor está na igreja, escuta a tia contar a história de Santa Lucía, a câmera demora muito no seu rosto mostrando a admiração que aparece e depois em um contraplano fica muitos segundos enquadrando a imagem de Santa Lucía, do ponto de vista de Aitor, agora Lucía. Uma montagem mais assertiva, com alguns cortes faria bem à narrativa do filme.

O segundo filme em indicações era Sociedad de la nieve de Juan Antonio Bayona, com 13 indicações, das quais levou 12, entre elas Melhor Filme, Melhor Diretor, só não conquistou o de Melhor Roteiro Adaptado, um fenômeno. O filme é uma nova adaptação, existem várias, do caso do acidente do grupo de uruguaios na Cordilheira dos Andes, entre a Argentina e o Chile, ocorrido em 1972. Eu ouvia muito a história deste grupo contada pela minha mãe, no final dos anos 1970. Ela unia este caso a outra tragédia acontecida com uma família de São José do Rio Preto, perto de Uchoa, onde vivíamos, e que ela conhecia: é a tragédia do Cessna 140, de propriedade de Milton Terra Verdi, que caiu na Bolívia, em 29 de agosto de 1960, com seu cunhado Antônio Augusto Gonçalves. Antonio, não aguentando a sede e a fome toma gasolina e morre em 7 de setembro. Milton fica sozinho durante 70 dias e registra o seu sofrimento, no que foi chamado depois de Diário da morte, publicado em 1961. Milton morre também e os dois corpos são achados em dezembro de 1960. Até hoje tenho gravado na retina o túmulo de Milton no Cemitério da Ressurreição, na avenida da Saudade em Rio Preto, com copos de água cheios sobre toda a área da lápide. A tragédia dos Andes é diferente: 45 pessoas, entre passageiros e tripulantes caem no Vale das lágrimas, 29 sobrevivem ao acidente, a fome, mas a dureza da montanha só permite que 16 se salvem, depois de 71 dias no inferno branco da cordilheira. O filme do diretor Juan Antonio Bayona, que já tem em seu currículo El orfanato (2007), Lo imposible (2012), Reina de España (2016) é um filme de extrema competência. A equipe construiu três protótipos de aviões para a rodagem, um na Sierra Nevada em cenário aberto, um em uma plataforma, em um vale cercado de oliveiras e a outra numa planta industrial no Campo de Peñones, todos em Granada.

A produção trabalhou por mais de dez anos para viabilizar o projeto, a grande qualidade é a escolha do elenco, atores uruguaios e argentinos, o sotaque é praticamente o mesmo; a equipe foi registrar o Vale das Lágrimas, nos Andes argentinos, todas as nuances de luz e de partes do dia que foram inseridos no filme na pós-produção. A narração é a escolha mais impactante que faz Bayona: quem narra história é Numa Turcatti, vivido pelo ator Enzo Vogrincic Roldán, que não fazia parte do time de rugby Old Christians, pois já estava na faculdade estudando Direito e era um personagem forte e enigmático. Ele passa pelo acidente, pela sede, fome, completa 25 anos ali na montanha e perto do final da jornada sente que vai morrer, e que não sairá da montanha, mas num ato de amor deixa um bilhete escrito, que ele segura na mão, No hay amor más grande que aquél que dá la vida por sus amigos. O diretor justifica a escolha dizendo que quis dar voz aos que não sobrevieram, no caso de Numa ele foi uma força moral e morreu depois de dois meses na cordilheira, escolha bastante original.

O filme faz uma adaptação do livro do jornalista e escritor uruguaio Pablo Vierci, lançado em 2009. Bayona já tinha uma admiração pelo autor e pela história, desde 2012 quando usou o livro como motivação para os atores do seu filme Lo imposible. Vierci é produtor associado do filme e esteve presente em muitos momentos das filmagens. Neste livro, Pablo Vierci dá voz aos 16 sobreviventes do acidente, que dão a sua visão particular que constrói um mosaico da tragédia, que muitas vezes se sobrepõe e se nega, por isto é sensível e crível. Explico, os sobreviventes da queda do avião tinham pouco alimento para comer, tiveram que inventar um sistema para descongelar a água, já que a neve colocada na boca, queima e não vira água tão facilmente e tiveram que lidar com a escolha mais difícil, comer o corpo dos que tinham morrido. Os estudantes de medicina do grupo foram os encarregados de cortar com vidro das janelas do avião os corpos congelados, em pedaços possíveis de serem deglutidos. Eram eles Roberto Canessa, Adolfo Strauch e Gustavo Zerbino.

Canessa disse que o mais difícil foi cortar uma roupa que era conhecida para rasgar a carne congelada do corpo logo abaixo. Ele escreve pela mão de Vierci, “Talvez a medicina tenha me feito visualizar a situação como um cirurgião que consegue separar o físico do espiritual ao abrir o ventre e retirar determinado órgão”, e mais, depois foram obrigados a abrir cabeças a paulada, para comer o cérebro e a roer ossos para consumir algum cálcio. Adolfo e seus primos Eduardo e Daniel Strauch foram os que lidaram com os corpos, numa das cenas podemos ver Adolfo (apelidado de Fito) com um machado golpeando um corpo, no chão, fora do campo da câmera. No livro La sociedad de la nieve, Roberto Canessa diz que ninguém sabia de quem eram os corpos que tinham sido utilizados, mas Gustavo Zerbini, no capítulo que lhe toca, esclarece que ele guardou alguns objetos dos mortos, para entregar para as famílias quando voltassem, e fez uma anotação detalhada dos corpos que tinham sido usados, dos quais só restaram esqueletos na parte da frente do avião e dos corpos que estavam enterrados debaixo da neve. Depois de um mês do resgate dos sobreviventes, uma expedição por terra chegou ao lugar do acidente e enterrou todos os corpos numa fossa comum, e colocou uma cruz de ferro sobre ela, o local é ponto de visita desde o ocorrido. Os sobreviventes dos andes colaboraram estreitamente com o diretor Bayona; muitos aparecem como figurantes. Roberto Canessa surge como uma pessoa que sai pela porta, pela qual os personagens entram no aeroporto de Carrasco; e, na cena mais emotiva, Carlos Paez Rodrígues, filho de Carlos Paez Vilaro, lê a lista dos sobreviventes pelo rádio, ação que o seu pai fez, em 22 de dezembro de 1972, momento poético.

No que toca à linguagem cinematográfica destaco que o trabalho de vestuário e maquiagem é primoroso, as roupas vão ficando usadas, sujas, velhas; os rostos vão ficando escuros de sujeira, os cabelos oleosos, os dentes amarelos e sujos (sabemos que a maioria ficou com eles moles, pelo escorbuto que sofreram), as cenas do interior do avião são claustrofóbicas, escuras, apertadas, as rodadas no exterior são na sua maioria com uma câmera na mão, para mostrar a desorientação que os personagens sofreram naquele ambiente inóspito e as do hospital usam lentes que distorcem a imagem e mostram a magreza dos atores. Eles fizeram um acompanhamento com nutricionista e preparador físico e muitos perderam mais de vinte quilos até o final das gravações.

Em comparação, existe uma famosa adaptação, feita em 1993, dirigida por Frank Marshall, produtor sempre associado a Steven Spielberg, com base no primeiro livro lançado sobre a tragédia Alive (Sobreviventes) do inglês Piers Paul Read, uma pesquisa detalhada e cuidadosa, que foi lançada em 1974. O filme fez bastante sucesso no lançamento, estrelado por Ethan Hawke, mas é muito pasteurizado, o interior do avião é muito iluminado, o chão muito branco, com alguns estofamentos jogados, as roupas dos atores sempre muito limpas, a passagem do tempo (eles ficaram com a mesma roupa 72 dias) é ignorada, continuam limpos, maquiagem em ordem, os cabelos levemente molhados. Durante a noite, quem fala recebe um foco de luz, que não tem origem possível; em algumas cenas que aparecem ao redor do avião, sentados nos bancos retirados interior, são enquadrados em planos gerais, bem centralizados, roupas bem passadas, rostos brilhantes, algum sangue ou arranhão (inacreditável de tão fraco). Quando Nando (Hawke) e Roberto chegam na margem da sociedade para serem salvos, eles correm com os cabelos esvoaçantes ao vento, cheios de energia, depois de 72 dias de sofrimento; quando os dois helicópteros chegam no local do acidente, Hawke aparece cheio de energia de novo, pendurado na porta de um deles, cabelos ao vento novamente, um dos sobreviventes dá um sorrido largo, com uma dentição branca de comercial de creme dental, produção vergonhosa pelo orçamento que tiveram. Filmada no Canadá, voltei a ver a obra e me surpreendi como a passassem do tempo mostrou que ele é nada mais que um espanto; e obviamente pela comparação com a minuciosa adaptação de Bayona, Belén Atieza e Sandra Hermida, já que bom cinema é sempre uma obra coletiva que envolve, roteiro, produção, montagem e pós-produção.

O filme ganhou 12 dos 13 Goyas a que foi indicado, perdendo somente Melhor Roteiro Adaptado para Robot Dreams de Pablo Berger, que tem recebido vários prêmios e está indicado ao Óscar de Melhor Animação. La sociedade de la nieve também concorre ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, aguardemos os resultados das duas possibilidades da Espanha. Por hora Bayona está perdoado por ter dirigido o enlatado e seriado Jurassic World (2018). Estas duas adaptações da tragédia dos Andes mostram que em cinema algumas obras tornam-se clássicas, obras primas, filmes cults e outras lixo, que ocuparão espaços mortos em canais pagos ou abertos.

Comento mais dois filmes dos Prêmios Goya 2024, os dois receberam alto número de indicações, 11 no total. Cerrar los ojos do veterano diretor Victor Erice, de 83 anos, é o quarto longa de sua carreira; ele fez El espiritú de la Colmena (1973); El sur (1983) e El sol del membrillo (1992) entre vários curtas e outras produções. Este sofisticado autor estudou Ciências Políticas no País Basco e depois foi aluno do Instituto de Investigaciones y Experiencias Cinematográficas de IIEC de Madri, que era uma escola de nível profissionalizante e foi fechada quando a carreira de audiovisual foi incorporada à Universidad Cumplutense de Madrid, em 1976. Ele foi roteirista de alguns filmes como Oscuros sueños de agosto de Miguel Picazo (1967) e crítico cinematográfico na importante revista de cinema Nuestro Cine. Erice é uma pessoa calada, tímida, que fala pouco mesmo em debates, isto se reflete na narrativa de seus autorais filmes. Eles são como o espelho de Alice, portais para outras dimensões, nas quais você é convidado a entrar, pelas muitas referências que ele espalha pela obra.

Cerrar los ojos começa como outro filme (dentro do filme que vemos), La mirada del adiós, em um local perto de Paris, Triste le Roi, em 1948, um homem de mais de quarenta, Monsieur Franc, é chamado por um rico senhor, Monsieur Levy (judeu sefardita) que tem um exótico mordomo indiano para buscar a sua filha, Jodir, que desapareceu misteriosamente em Shangai, um início de 15 minutos que dá um monte de informações, que irão refletir-se no filme “real”. Com 15 minutos e 30 um narrador em off diz que estas foram as últimas cenas que o famoso ator Julio Arenas gravou em 1990, para o inacabado filme, antes de desaparecer misteriosamente. Agora no presente, o diretor do filme Miguel Garay (Manolo Solo) é chamado para participar de um programa de TV, sobre casos não resolvidos de desaparecimento de pessoas, no caso o do ator Julio Arenas. Ele aceita e vai buscar as fitas em película do filme no depósito controlado por um antigo colaborador Max (Mario Pardo), no espaço deste amigo vários cartazes de filmes como Monsieur Verdeaux (1944), They live by night (1948) e Rio Bravo (1959) e numa placa no chão lemos Rosebud (nome do esqui do personagem título de Cidadão Kane de 1941). Depois vai encontrar com a atriz protagonista do filme Ana Arenas (Ana Torrent) no Café do Museu do Prado. Ela sente falta do amigo desaparecido, mas não se interessa em participar do programa. Aqui uma citação do próprio Erice, a atriz Ana Torrent começou, aos sete anos no cinema, com ele, no grande sucesso de público e crítica El espiritú de la colmena, agora cinquenta anos depois aparece trazendo seu talento e um dos olhares mais expressivos do cinema espanhol para as telas. Depois do encontro o diretor vai até a conhecida Cuesta Moyano, uma alameda perto do Prado, onde existe, há muitos anos uma Feria de Libros. Em um quiosque, o diretor pede o livro (real) Caligrafía de los sueños, de Juan Marsé, Prêmio Cervantes de 2008, que fala da própria gênese de se escrever uma história (ou um roteiro); em outro quiosque encontra, em meio a muitos livros reais (como El tesoro de Miguel Delibes) o seu (fictício) Las ruínas, que teria recebido o Prêmio Café Gijón e tem uma dedicatória do próprio: “Para Lola por los soles compartidos. Miguel, diciembre, 1977″. Ele resolve comprar o próprio livro e tantos anos depois relê-lo como leitor, vemos a epígrafe que abre o mesmo: “Jávais vingt ans. Je ne laisserai personne dire que c’est le plus bel âge de la vie (Eu tive 20 anos. Não deixarei ninguém dizer que esta é a mais bela idade da vida). Aden Arabie. Paul Nizan, 1932.” O diretor gosta muito de planos de sequências demorados, planos gerais que demoram a virar planos médios e closes, é seu estilo. Seus filmes são difíceis e sofisticados, com um jogo de profundidade muito acentuado, que se pode perceber ou não. Filme para iniciados na linguagem cinematográfica e em leituras mais difíceis, talvez por isto das 11 indicações só tenha recebido uma, a de Melhor Ator coadjuvante, para o experiente ator José Coronado.

O último filme que comento é Saben aquell, dirigido por David Trueba, uma cinebiografia do humorista catalão Eugenio Jofra (1941-2001), que tinha uma aparência muito particular, nunca ria, e contava piadas com a cara mais sem expressão possível, falando com um sotaque catalão e misturando espanhol e catalão o tempo todo e o resultado era incrível. Com uma fala que não coadunava com a aparência, atuou em casas de espetáculo e na TV, da década de 1960 até o final dos 1990. O filho de Eugenio, Gerardo Jofra escreveu um livro biográfico sobre o pai Saben aquell que diu (Sabe aquele que diz…), que era a maneira que o pai introduzia as piadas em seu espetáculo. O ator que dá vida ao humorista, David Verdaguer, tem uma caracterização tão convincente e original, que vai além da simples imitação. Era o favorito e levou fácil o Goya de Melhor Ator; das 11 indicações do filme, único prêmio, filme muito típico, racial e local para interessar ao público não catalão/espanhol.

Falando de espanhol e catalão faço uma pequena comparação entre dois prêmios espanhóis, não os únicos, mas que são muito complementares/opostos. Os Prêmios Goya são entregues desde 1987 pela Academia de las Artes y las Ciencias Cinematográficas de España; os Premis Gaudí desde 2009 pela Acadèmia del Cinema Català, Catalunha. A 16ª edição dos Premis Gaudí aconteceu em 4 de fevereiro de 2024, os principais premiados foram: Creatura, de Elena Martín, Melhor Filme (obviamente em catalão) e Melhor Direção; Saben aquell, de David Trueba, Melhor Ator para David Verdaguer; e, o mais interessante de apreciarmos, La sociedad de la nieve ganhou como Melhor Filme Europeu. Já que o prêmio é dado na Catalunha, tirem suas conclusões. O filme mais premiado da história dos Premis Gaudí é Pa negre (Pão negro) de Agustí Villaronga, Pa negre ganhou nove dos 14 Goyas aos quais foi indicado em 2011, como o de Melhor Filme, Melhor Diretor entre outros, sem nenhuma classificação acrescentada, como de fala “não espanhola”, a observar. Aa cultura, o cinema, a literatura, a pintura devem ser coisas que unem, não que separam, na minha modesta opinião.

Um último comentário, Pedro Almodóvar não concorreu a Melhor Curta de Ficção, por não ter se inscrito. Todos estamos esperando para entender a trilogia de curtas, que ele resolveu produzir nesta altura de sua carreira — duas das quais já foram entregues –, então aguardemos para ver se ele ficou ligeiramente preguiçoso ou sem inspiração nos últimos anos, que seria algo estranho para alguém tão criativo. Ele recebeu uma homenagem especial dos apresentadores Ana Belén, Javier Calvo e Javier Ambrossi, los Javis, que dirigem sempre juntos suas obras e são grandes representantes da comunidade LGBT.

Os três começaram a falar de filmes significativos até chegar em Todo sobre mi madre (1999) que completou 25 anos de lançamento, sentados em um colorido sofá. Por trás do mesmo surgem Pedro Almodóvar, Penélope Cruz, Cecilia Roth, Marisa Paredes e Antonia San Juan, protagonistas e diretor; Almodóvar lembra que aquele é o sofá original do apartamento de Agrado (Antonia San Juan), que ficava na frente do cenográfico Palau de la Música Català. Depois Almodóvar faz uma crítica feroz a um político García Gallardo (vocês conhecem?) do Partido de Ultra Direito Vox, que disse que o cinema espanhol produz filmes que ninguém vê e que importantes são os agricultores e blá blá blá. Sem dúvida todas as instâncias da vida econômica espanhola são importantes, difícil mesmo é ver o presidente deste partido, Santiago Abascal (sabem quem é?), com sua barbinha estranha, que parece colada e sempre me lembra um bigodinho estranho, em formato de escova de dente, que ficava colado embaixo de um nariz também ridículo, logo acima de uma boca em que faltava pelo menos um canino e soltava cobras e lagartos contra estrangeiros, raças diferentes e um largo etecétera, em alemão.

O cinema espanhol é complexo, multifacetado, tem uma grande história, grandes filmes, grandes diretores, grandes atores, quero citar alguns: Julieta Serrano, Alicia Hermida, Carmen Machi, José Sacristán, Juan Echanove, Fernando Rey (preferido de meu pai), José Isbert, Chus Lampreave, Carmen Maura, Victoria Abril, Mabel Rivera, Concha Velasco, Rafaela Aparicio, Angela Molina… E acima de tudo, tem um grande futuro pela frente, com os novos talentos e os veteranos que o mantem vivo sempre.

Vejam cinema do mundo todo, mas prestem atenção ao cinema espanhol. Gracias.

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