O “Antropoceno”: uma estranha ideologia a serviço do status quo

Por André Francisco Pilon, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP

 05/10/2023 - Publicado há 7 meses
André Francisco Pilon – Foto: ResearchGate GmbH

 

Os ambientalistas associam o status quo político e econômico à desertificação, à poluição, ao desmatamento, à perda da biodiversidade, ao aquecimento global, ao desperdício descontrolado e a muitas outras consequências relacionadas à governabilidade e ao bem-estar geral, a afetar a maioria das pessoas, carentes de escolaridade e de escassos recursos sociais e econômicos.

Embora tenha recebido pouca aceitação entre os ecologistas e até mesmo entre os geólogos, o termo Antropoceno, proposto pelo químico Paul Crutzen e pelo biólogo Eugène Stoermer, em uma reunião do Programa Internacional Biosfera-Geosfera, foi adotado por Francine McCarthy, da Universidade de Brock, ao definir o ano de início da “nova época geológica” em 1950.

Interpretações “sistêmicas”, apoiadas por teorias da “complexidade” e do “Antropoceno” como uma nova era na história humana, podem inadvertidamente obscurecer o papel e a ação efetiva de pessoas e grupos que controlam a economia e a política no mundo de hoje, que encontram uma desculpa fácil para declinar de suas responsabilidades nos destinos da humanidade.

Jason W. Moore, da Universidade de Binghampton, descreve o argumento do Antropoceno como “uma confusão conceitual e histórica, uma visão neomalthusiana da população, uma interpretação fantasiosa”. Não se trata apenas de uma palavra, mas de uma forma falsa de entender as coisas, afetando a comunicação, a advocacia, as políticas públicas, a pesquisa e o ensino.

É claro que os males que alguns estudiosos atribuem ao “Antropoceno” não são responsabilidade de toda a humanidade; os principais culpados, que têm o poder político e econômico para delinear as formas de produção e consumo e definir os estilos de vida, devem ser distinguidos da maioria da população, cujo poder para modificar as coisas não pode ser comparado com aqueles.

Se a responsabilidade for atribuída indiscriminadamente a toda a humanidade ou à complexidade da vida contemporânea (abordagens sistêmicas), os atores políticos e econômicos seriam exonerados de qualquer responsabilidade. Por exemplo, a coleta seletiva de resíduos não isenta os governos de estabelecerem normas relativas às embalagens dos produtos (cartões, sacos, plásticos etc.).

A proliferação de automóveis ou caminhões, a construção de rodovias, estão diretamente vinculadas a políticas públicas que abandonaram a locomoção sobre trilhos, o transporte público, nas cidades e entre cidades (passageiros e cargas), e que ainda é um meio de transporte concorrente em diferentes países do mundo. Cabe apenas aos cidadãos deixar os carros em casa?

“A ideia de que todos são culpados pelos danos aos ecossistemas e pelas alterações climáticas esconde os verdadeiros culpados”, diz S. Falzi. Segundo este autor, ecologista e negociador ambiental da ONU, estamos na época do “corporatoceno”, outro termo para o “capitaloceno”, ou seja, o capitalismo, como forma de organizar as relações de exploração homem-natureza.

Enquanto as políticas e práticas lucrativas permaneçam inalteradas (business as usual), uma série de problemas políticos, econômicos, sociais e ambientais se aglomeram e se agravam em todo o mundo e têm um efeito sinérgico, reforçando-se mutuamente. Isso definiria a atual era que alguns estudiosos classificam como a era do corporatoceno ou do capitaloceno.

Embora a “complexidade” implique diversidade, um grande número de partes interdependentes, tem sido reconhecido que o “todo” não controla inteiramente as suas partes. As pessoas têm sempre, em diferentes circunstâncias, a opção de cumprir ou opor-se, através dos seus pensamentos e ações, à cultura predominante, embora, em muitos casos, isso tenha um preço.

O “sistema” poderia explicar tudo ou falta alguma coisa nesta equação? Os vereditos dos tribunais internacionais poderiam elucidar muitos quadros conceituais e esclarecer as verdadeiras questões, ao identificar com clareza os indivíduos que, dentro de um “sistema”, optaram por cometer crimes e atrocidades que aumentaram o sofrimento das pessoas em diferentes circunstâncias.

O pensamento sistêmico é proposto para compreender e lidar com problemas complexos e ampliar o leque de opções para lidar com eles. O foco não está em variáveis isoladas, mas nas interconexões entre elas, à medida que se combinam para produzir os fenômenos, entrelaçando todas as demais dimensões relativas à existência e ao estar no mundo (íntima, interativa, social e biofísica).

A análise sistêmica não se aplica, por exemplo, ao problema da concentração populacional nas grandes cidades, que ocorre em detrimento do desenvolvimento das pequenas cidades e da zona rural, da agricultura familiar, como opção para a produção de alimentos orgânicos, que não exigiria as vastas extensões de terra para a produção de mercadorias para exportação.

O localismo descreve uma série de filosofias políticas que apoiam a produção e o consumo locais de bens, o controle local do governo e a promoção da história local, da cultura local e da identidade local, dando o poder aos conselhos locais, às comunidades e aos indivíduos para agirem. O localismo contrasta da globalização maiormente controlada por corporações de negócios.

Não existem problemas complexos, mas problemas que se tornam complexos. O consumo de narcóticos está vinculado à falta de atenção primária dos programas de saúde, que deveriam tratar de forma integrada as questões de saúde física, social e mental. As unidades de saúde deveriam ser estruturadas com pessoal qualificado, inclusive em termos de assistência domiciliar.

As desigualdades de renda, riqueza e oportunidades, as circunstâncias que impedem as pessoas de menor nível socioeconômico de ir além das preocupações diárias de sobrevivência, somam-se à indiferença das pessoas mais aquinhoadas, que, imersas no rentável “mundo dos negócios”, permanecem preocupadas apenas em manter o “panorama” em que estão inseridas.

As crises contemporâneas que envolvem o ambiente, a economia, a sociedade e a política “implicam uma transformação fundamental dos valores, crenças e práticas sociais em muitos setores da sociedade” (Lidskog, Standring & White), uma “mudança redentora”, uma transformação que não pode ser confundida com “correções” tecno-científicas e dispositivos de vigilância.

Num mundo despojado de princípios morais, na ausência de coisas que realmente importam na vida, o consumo conspícuo de bens, amplamente alardeados como sinal de status e prestígio no “vale tudo” das campanhas publicitárias, tem tentado jovens das populações menos favorecidas a irem ao crime para obterem as coisas realmente valorizadas pelo “sistema”.

O secretário-geral das Nações Unidas instou os líderes mundiais a apresentarem um “Plano de Resgate para as Pessoas e o Planeta” (2023 SDG Summit), tendo em conta compromissos nacionais e globais para a inclusão e a sustentabilidade, o impacto das crises múltiplas e interligadas que o mundo enfrenta e suas consequências políticas, sociais, econômicas e ambientais.

Face aos problemas climáticos e ambientais globais a aumentar rapidamente (primeiro, não causar dano), a Aliança dos Cientistas Mundiais (AWS), com a intenção de transformar o conhecimento acumulado em ação, está a apelar aos cientistas mundiais para se tornarem signatários de um documento diante de uma situação de emergência, em termos de uma voz coletiva internacional.

O processo deve escudar-se do intenso lobby das corporações de negócios e do brilho fugaz das manchetes sobre temas segmentados, devendo concentrar-se na vigilância permanente sobre convenções globais e pactos internacionais, implementação da legislação e atuação de políticos e funcionários de alto escalão, suscetíveis de colocar interesses privados acima do bem público.

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