Noventa anos de “Macunaíma”

José de Paula Ramos é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e autor de “Leituras de Macunaíma: primeira onda (1928-1936)”

 13/08/2018 - Publicado há 6 anos

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José de Paula Ramos – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Do prelo do Estabelecimento Gráfico Eugenio Cupulo, no dia 26 de julho de 1928, veio à luz Macunaíma, a rapsódia do “herói sem nenhum caráter”. A tiragem de 800 exemplares, paga pelo autor, apresentava-se em folhas de papel de baixa qualidade, encadernadas numa brochura modesta. Mário de Andrade encarregou-se da distribuição da obra em livrarias e bibliotecas, com a colaboração de amigos.

A imprensa divulgou amplamente o livro. Só até dezembro de 1928, foram publicados ao menos treze resenhas, artigos ou ensaios em periódicos de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, assinados por célebres veteranos, como Nestor Vítor e João Ribeiro, críticos de grande prestígio, como Tristão de Ataíde (Alceu Amoroso Lima), bem como por autores que talvez fossem menos (re)conhecidos na época, mas vieram a ser famosos (Oswald de Andrade, Antônio de Alcântara Machado, Ascenso Ferreira, entre outros). Algumas dessas apreciações mostram-se um tanto inseguras, a tatear em terreno movediço; outras se manifestam como francamente adversas, por rejeitarem tanto a proposta estética modernista quanto os significados sugeridos pela obra; há, também, aquelas que saudaram Macunaíma como um divisor de águas na história da literatura brasileira, uma obra-prima a apontar novos e fecundos caminhos a percorrer.

Em 1937, a editora carioca José Olympio lança a segunda edição de Macunaíma, numa tiragem de mil exemplares. Em brochura também modesta e papel, igualmente, de baixa qualidade, a obra fora refundida pelo autor. Entre as inúmeras alterações, o texto da segunda edição suprime um episódio inteiro (“As três normalistas”). Esse aspecto, tão importante do ponto de vista da ecdótica, foi totalmente ignorado nos escassos quatro pronunciamentos críticos, registrados pela pesquisa da fortuna da obra, publicados em periódicos ao longo do ano de lançamento. Brito Broca, Nelson Werneck Sodré e uma resenha não assinada pronunciaram-se de modo favorável, enquanto Rubem Braga ressaltara o que no seu entender seriam “os defeitos de Macunaíma”.

Se, durante a vida do autor, a recepção de Macunaíma mostrara-se polarizada entre os que a reconheceram como obra-prima e os que a desqualificaram como uma “asneira” (João Ribeiro), passados dez anos de sua morte, inaugura-se uma nova fase da fortuna crítica da rapsódia, com a publicação do primeiro livro inteiramente dedicado a ela: Roteiro de Macunaíma (SP, Anhembi, 1955), de M. Cavalcanti Proença.

Como quarto volume do projeto de publicação das “obras completas” de Mário de Andrade, a Livraria Martins Editora publica a terceira edição de Macunaíma, no final de 1944. Uma pequena nota não assinada da edição de 7 de novembro daquele ano, no jornal Folha da Manhã, assim recomendava a rapsódia: “Macunaíma revela-se uma das obras mais altas da nossa literatura; e a crítica, apreciando-a, foi unânime em aplaudi-la, quer pelo conteúdo, quer pela forma”. Contradizendo essa assertiva, o jornal carioca A Manhã publica na edição de 1o de dezembro uma resenha assinada com as iniciais A. F. [Aníbal Fernandes]. Segundo esse resenhista, a terceira edição da obra fora recebida com o silêncio da crítica e “o silêncio, Mário de Andrade bem o sabe, sempre foi um indício de morte”. Mário de Andrade morreu em fevereiro de 1945.

Se, durante a vida do autor, a recepção de Macunaíma mostrara-se polarizada entre os que a reconheceram como obra-prima e os que a desqualificaram como uma “asneira” (João Ribeiro), passados dez anos de sua morte, inaugura-se uma nova fase da fortuna crítica da rapsódia, com a publicação do primeiro livro inteiramente dedicado a ela: Roteiro de Macunaíma (SP, Anhembi, 1955), de M. Cavalcanti Proença, que coincide com o lançamento da quarta edição, primeira póstuma, das peripécias do “herói de nossa gente” (Livraria Martins Editora, 1955).

Desde então, tem início um processo que levaria não só a crítica literária a reconhecer a rapsódia, quase por unanimidade, como obra-prima, um clássico da literatura brasileira, mas também a uma difusão altamente significativa: dezenas de edições, em vários formatos (populares de larga tiragem; de arte – como a elaborada por Gustavo Piqueira para a editora Ateliê; e as fundamentais edições críticas empreendidas por Telê Ancona Lopez); consagração como obra lecionada no ensino médio e selecionada como de leitura obrigatória para exames vestibulares; estudos eruditos de largo fôlego, desenvolvidos em universidades (Haroldo de Campos e Gilda de Mello e Souza, entre tantos outros); traduções para vários idiomas (p. ex., em 2016, foi lançada a segunda tradução de Macunaíma no Japão); a notável adaptação de Joaquim Pedro de Andrade para cinema (1969); a magnífica adaptação para teatro, encenada por Antunes Filho (1978); inúmeras obras de artistas plásticos renomados (Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Cícero Dias e vários outros). Outro exemplo importante do prestígio e da repercussão de Macunaíma vem a ser o samba-enredo e a alegoria carnavalesca da Portela (1975), o que pode ser entendido como forte índice da assimilação do “herói de nossa gente” no imaginário popular brasileiro.

Contudo, há ainda quem interprete Macunaíma por um viés redutor, unilateral e deformado pela ideologia da “ordem”, como o fez o general da reserva Antônio Hamilton Mourão, atual candidato a vice-presidente da República na chapa de Jair Bolsonaro: “Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. […] E a malandragem […] é oriunda do africano. […] Então, esse é o nosso cadinho cultural. Infelizmente gostamos de mártires, líderes populistas e dos macunaímas”[1].

Macunaíma é uma obra permanente, como toda obra “clássica”, e cada leitor a lerá de acordo com sua sensibilidade, inteligência, repertório cultural e inclinação ideológica. Cada leitor reagirá ao livro conforme o seu protocolo de leitura individual e, em certos casos, poderá encontrar nele os preconceitos que lá não estão, ou que lá estão, mas satirizados.

Acho aconselhável ficar na companhia de outros generais, leitores de Macunaíma: M. Cavalcanti Proença e Nelson Werneck Sodré.

 

[1] Apud <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/08/vice-de-bolsonaro-diz-que-brasil-herdou-indolencia-dos-indigenas-e-malandragem-dos-africanos.shtml>.


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