Ernst Wolfgang Hamburger (8/6/1933 – 4/7/2018)

Silvio R. A. Salinas é professor sênior do Instituto de Física (IF) da USP

 12/07/2018 - Publicado há 6 anos

Foto: Francisco Emolo / USP Imagens

Com o falecimento do professor Hamburger o Instituto de Física perdeu um docente excepcional, uma das nossas lideranças mais expressivas. Hamburger nasceu em Berlim e veio para o Brasil com apenas três anos de idade, acompanhando pais e irmãos mais velhos. O pai era juiz de direito, lutou pela Alemanha na Primeira Guerra, mas foi obrigado a fugir das novas “leis raciais”, reconstruindo a vida aqui em São Paulo.

Hamburger terminou o curso científico num antigo colégio estadual, junto com o seu amigo Herch Moysés Nussenzveig, e entrou no curso de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP. Foi aluno da primeira geração de físicos brasileiros da USP (Marcello Damy, Mario Schenberg, Abrahão de Moraes, Oscar Sala) e de jovens professores estrangeiros, como o norte-americano David Bohm, que se asilara dos tempos negros do macartismo, e propunha nova interpretação da mecânica quântica. As turmas eram pequenas. Apenas 14 alunos se formaram com Hamburger em 1954, incluindo Nussenzveig e a sua futura esposa, Amelia Imperio, falecida em 2011. Os diplomados da FFCL – numa época em que a licenciatura exigia mais do que o bacharelado – assumiam posições valorizadas no ensino secundário, que ainda era muito restrito, mas que não tinha sofrido a desvalorização dos tempos atuais. Ainda como estudante – e logo depois de formado – trabalhou no laboratório do Acelerador Eletrostático Van de Graaff, que estava sendo construído sob a orientação do professor Oscar Sala, em condições de competição com máquinas nucleares instaladas em universidades e laboratórios internacionais. Por sugestão dos professores visitantes americanos Philip Smith e John Cameron, conseguiu uma assistanship para desenvolver pesquisas num acelerador cíclotron, associado à Universidade de Pittsburgh, EUA, que era uma máquina moderna, em franca atividade.

Iniciou nessa época uma linha de investigação de espectroscopia nuclear, que ainda daria muitos frutos, contribuindo para desvendar a estrutura de isótopos nucleares e testar propostas de modelos teóricos. Obteve o Ph.D. em 1959 e voltou para a USP como assistente, dando continuidade às investigações de estrutura e reações nucleares com as máquinas disponíveis, o acelerador eletrostático e o bétatron (em colaboração com José Goldemberg). Continuou mantendo colaborações internacionais, e retornou a Pittsburgh como professor associado visitante no final da década de 1960. O seu currículo registra uma série notável de artigos nesse período, numa época em que se publicava bem menos, em que os trabalhos tinham caráter mais artesanal. As próprias universidades ainda gerenciavam os seus aceleradores de partículas, e nem tinham surgido as grandes colaborações internacionais. Hamburger publicou artigos em colaboração com as gerações seguintes do acelerador eletrostático – Fernando Zawislak, Olacio Dietzsch, Alinka Szily, Tereza Borello – sobre a estrutura de camadas em núcleos leves e depois em núcleos mais pesados, envolvendo reações nucleares diretas, principalmente com dêuterons, que exigiam preparação de alvos e controle eletrônico fino dos detectores.

Em 1968 tornou-se um dos últimos catedráticos da USP, assumindo a cadeira de Física Geral e Experimental, responsável pelo ensino básico de física da antiga FFCL. Logo depois, com a reforma universitária, foram incorporadas as disciplinas de física da Escola Politécnica e as responsabilidades didáticas se multiplicaram. Era uma época difícil, em que havia muito alunos, expansão de vagas, mas pouquíssimos colegas com experiência de pesquisa em física. Os assistentes eram muito jovens, contratados em geral para dar aulas em tempo parcial.

Assumindo a cátedra, Hamburger organizou a ampliação e a modernização dos laboratórios didáticos, que estão na origem do nosso atual Laboratório de Demonstrações. Após a reforma da USP, Hamburger contribuiu para a implantação de cursos básicos mais atualizados nas áreas de ciências exatas e engenharias. No final de 69, no auge da ditadura militar, foram aposentados o presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF), José Leite Lopes, o vice-presidente, Jayme Tiomno, que tinha assumido uma cátedra aqui na USP, e o conselheiro Mario Schenberg. A partir dessas aposentadorias, Hamburger teve uma atuação de fundamental relevância junto às nossas sociedades científicas, tanto a SBF quanto a SBPC, e posteriormente junto à nossa própria Adusp, que tinha um caráter acadêmico, estritamente universitário. O Boletim número 1 da SBF foi editado pelo secretário geral Ernst W. Hamburger, que de fato passou a exercer a presidência.

Em janeiro de 1970, a SBF organizou aqui na Cidade Universitária a sua primeira “reunião regular”, o primeiro Simpósio Nacional de Ensino de Física, abrangendo todos os níveis de ensino, que ainda se repete periodicamente, reforçando o apoio tradicional dos físicos aos trabalhos pedagógicos com forte conteúdo científico. Essa era uma das preocupações de Hamburger quando participou da criação dos primeiros cursos de pós-graduação em ensino de física, que não deveriam pertencer exclusivamente às faculdades de educação.

Desenvolveu um dos projetos pioneiros de aperfeiçoamento do ensino médio de física, incluindo a produção de material e filmes didáticos. A residência de Amélia e Ernesto, nas imediações da Cidade Universitária, era ponto de encontro e acolhimento de docentes mais jovens e de alunos. No início da década de 70, após ter abrigado um dos nossos alunos, Amélia e Ernesto foram presos, submetidos a interrogatório vexaminoso, e passaram a ser estreitamente vigiados pelo setor de segurança instalado na USP.

Em 1977, o governo proibiu a realização da reunião anual da SBPC em Fortaleza, nas dependências da universidade federal. Formou-se então um grupo, que se reunia na residência do casal Hamburger, e que propôs organizar a reunião aqui em São Paulo, em “território neutro do Vaticano”, nas dependências da PUC. Essa foi uma das reuniões mais memoráveis da SBPC, sob a égide de um cartaz de Galileu com a frase famosa sobre o movimento da terra… Nos últimos anos, Hamburger se dedicou a atividades de divulgação científica, que têm sido cada vez mais valorizadas pela comunidade científica. Colocou a sua paixão na organização de exposições científicas e na renovação da Estação Ciência, como já foi comentado em diversas matérias.

11/7/2018

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