Diário de um câncer – “Pai, mãe: fui diagnosticada com um tumor maligno”

Por Valéria Dias, jornalista e subeditora de Ciências do “Jornal da USP”. Em dezembro de 2023 foi diagnosticada com câncer ginecológico

 Publicado: 05/04/2024
Valéria Dias – Foto: Arquivo pessoal

 

Capítulo 2

É estranho pensar na possibilidade de morrer antes de meu pai ou de minha mãe. Tenho de lidar com isso desde que recebi o diágnóstico de câncer, no início de dezembro de 2023. Uma das primeiras coisas que pensei foi “como, quando e o que conto para meus pais?”. Eu sou solteira, sem filhos, tenho irmãos, sobrinhos, amigos, colegas de trabalho, conhecidos etc. Como abordar esse assunto com essas pessoas, ainda mais no mês de dezembro, em que as festividades natalinas parecem não combinar muito com “notícias ruins”?

+ Mais

Diário de um câncer – Eu vi a cara da morte e ela estava viva (mas estou mais viva que ela)

A dúvida era: conto para os meus pais que estou com câncer antes do Natal e “estrago” as festas de fim de ano? Ou espero as festividades acabarem? Ou ainda só conto quando tiver sido encaminhada para tratamento? Ou espero falar com o oncologista primeiro? Ou somente quando iniciar a quimioterapia? Ou escondo a doença deles?

O que você faria, caro leitor, se estivesse no meu lugar?

Pode ter certeza: é difícil ouvir que o outro está com câncer. Mas muito mais difícil é para quem vai falar.

No meu ambiente de trabalho foi mais tranquilo: no dia 8 de dezembro, tive uma reunião com minhas chefes e contei tudo. Fui carinhosamente acolhida por todas. Também encarei com tranquilidade o CID C53 que a médica do Hospital Universitário (HU) da USP colocou no meu pedido de afastamento de alguns dias, logo após o diagnóstico, recomendado gentilmente por ela para eu me tranquilizar e “organizar minhas ideias”. Segundo a médica, meu caso foi encaminhado à Central de Regulação de Oferta de Serviços de Saúde (Cross) da Secretaria de Estado da Saúde. O prazo para encaminhamento a um hospital especializado era de, no máximo, 15 dias.

O CID é um código para identificação de doenças. A médica informou que eu poderia optar por não citá-lo, mas autorizei o uso, afinal era aquilo mesmo, eu não tinha como fugir do câncer. Entendi que eu precisava falar sobre a doença, admitir o diagnóstico. Nos meses seguintes passaria por inúmeras consultas, internações, quimioterapia, o cabelo ia cair. Achei melhor não esconder.

Mas como falar para os familiares? Me preocupava principalmente com meus pais, velhinhos, mas lúcidos, na casa dos 80 e 90 anos. Entendi que precisava ter com eles um cuidado redobrado por conta da idade avançada.

Mostrando a solução antes de falar do problema

Aí bolei um “plano infalível”: eu somente falaria após ser encaminhada a um serviço especializado. Assim poderia dizer: “Pai, mãe, estou com um problema de saúde, estou com câncer, mas podem ficar tranquilos porque meu tratamento já está encaminhado, estarei em um dos hospitais mais renomados do Brasil e do mundo pra tratar a doença”. Genial! A gente já apresenta a solução antes mesmo de falar sobre o problema.

Mas a solução milagrosa do meu plano infalível não durou muito. Um dia, uma colega de trabalho me contou a história do vizinho dela. O homem teve um episódio de diarreia sanguinolenta, passou mal, desmaiou e foi parar no hospital. Após alguns exames, veio o diagnóstico: câncer colorretal.

Isso me acendeu um alerta. Naquele momento eu achava que dificilmente passaria por um episódio semelhante. Mas não era impossível, visto que o tumor poderia crescer e obstruir algum órgão interno a ponto de eu precisar ser encaminhada às pressas a um hospital (bingo! isso de fato acabou acontecendo comigo no final do mês de janeiro). Comecei a pensar nessa possibilidade. Me imaginei na emergência do pronto-socorro e a equipe de médicos e enfermeiros (e não eu) contando para a minha família. E eles aterrorizados: “Valéria, como assim você recebeu o diagnóstico de câncer e não falou nada com a gente???”.

Recentemente assisti ao filme 50% (Netflix), que conta história de um rapaz de 27 anos diagnosticado com um câncer raro, com chance de cura de 50%. Em uma das cenas, a mãe do protagonista (Anjelica Huston) fica indignada ao descobrir que o filho, interpretado por Joseph Gordon-Levitt, demorou alguns dias até contar para ela que estava com câncer. Me identifiquei demais com aquela cena e com outras questões levantadas pelo filme. Aliás, me vi retratada em vários momentos. Recomendo a todos, mas principalmente para aqueles que, como eu, receberam o diagnóstico de câncer ou têm algum parente ou amigo enfrentando a situação.

Além de tudo isso, eu estava com a ideia pra lá de equivocada de que eu “estragaria” o Natal da minha família caso falasse sobre a doença. Quando tive esse pensamento, a ideia era poupá-los de uma notícia dolorosa que poderia interferir nas comemorações natalinas. Francamente não faço ideia como esse pensamento dominou minha mente nos primeiros dias de dezembro. Mas tive um momento de lucidez enquanto refletia sobre o caso e percebi o óbvio: eu não estragaria nada caso contasse. A ideia de que iria “estragar” não fazia o menor sentido, pois ia totalmente contra aquilo que o espírito natalino representa: união, amor, fraternidade, esperança.

Se, por um lado, esse pensamento mostrava o meu jeito torto de cuidar das pessoas, de encontrar a hora e as palavras certas para tratar de um tema tão delicado, por outro lado, revelava também um misto de ignorância e arrogância: quem eu pensava que era para achar que poderia determinar como as pessoas iriam se sentir quando eu falasse sobre a doença?

A verdade é que eu não tinha – e continuo não tendo – poder algum sobre como as pessoas encaram o câncer. O modo como elas recebem a notícia – e o que vão fazer com isso – tem mais a ver com elas mesmas do que comigo.

A possibilidade de ser levada às pressas a um pronto-socorro e surpreender meus familiares com a notícia sobre o câncer foi decisiva para eu contar para a minha irmã antes mesmo do 8 de dezembro. Tive de falar pelo WhatsApp. Estava no meio da semana, moramos em lado opostos da cidade e eu não queria esperar o sábado ou domingo. Falei algo como “olha, estou com um probleminha de saúde, mas, por enquanto, não quero contar para o restante da família. Então… existe uma grande possibilidade de eu estar com câncer de colo de útero”.

Aí fui falando dos sintomas, de como foi passar pelos médicos, dos exames que havia feito e aproveitei para falar que o tratamento poderia ser pelo Instituto do Câncer de São Paulo (Icesp). Minha irmã encarou na boa. Ela demonstrou tranquilidade, esperança e fé.

Quando o diagnóstico saiu, ela foi uma das primeiras a saber.

Pai, mãe, preciso falar com vocês

Então chegou a vez de contar para os meus pais. No dia 16 de dezembro fui para a casa deles. Não lembro se contei antes ou depois do almoço. Só sei que fui bem direta e objetiva.

“Eu preciso falar um assunto sério com vocês. Eu fui diagnosticada com uma doença grave, mas adianto que já fui encaminhada para um hospital de referência, então serei tratada pelos melhores especialistas do Brasil.”

“Qual doença?”, perguntou minha mãe.

“Câncer de colo de útero.”

O silêncio que se seguiu durou pouquíssimos segundos. Foi interrompido por minha mãe, que soltou um “ah, mas você vai se tratar e vai ficar tudo bem”, na maior confiança. Meu pai chorou um pouco, mas se eu dissesse “pai, vou passar uma semana de férias na Bahia”, ele choraria do mesmo jeito, porque é um homem extremamente emotivo e chora por qualquer coisa.

Depois disso, meus pais iniciaram uma conversa (muito bizarra, por sinal, devido às circunstâncias) sobre a causa da morte de algumas pessoas da família, sendo que muitos deles somente conheço por nome, pois morreram bem antes de eu nascer. Ouvi histórias de pessoas que morreram de tuberculose (há várias décadas passadas) e outras que morreram de câncer. E que antes as pessoas escondiam as duas doenças, nunca falavam sobre o assunto ou admitiam o diagnóstico e sequer pronunciavam a palavra câncer.

Minha mãe lembrou do câncer que teve, nos anos 1990: um tumor colorretal, tratado apenas com cirurgia e que nunca mais voltou. Meus pais ainda falaram de vários parentes que tiveram a doença e hoje estão bem. Também relembraram daquelas que morreram de câncer de mama: minha bisavó, minha avó paterna e uma das netas (minha prima). E falaram com muita alegria de uma tia dessa mesma linhagem que sobreviveu a esse mesmo tipo de tumor.

Para morrer, basta estar vivo: a conversa foi interrompida pela notícia de que um primo deles havia falecido. Eles trocaram de roupa e eu os coloquei dentro de um Uber para que pudessem ir ao velório.

No dia seguinte, 17 de dezembro, contei para minha cunhada. Ela teve câncer de mama há alguns anos e hoje está curada. Foi uma “troca de figurinhas”. Meus sobrinhos e cunhado ficaram sabendo nos dias seguintes. Para amigos, tios e primos fui contando aos poucos, ao longo dos meses que se seguiram, e continuo fazendo isso até hoje, conforme parentes, colegas, amigos e conhecidos vão aparecendo.

Ainda no domingo, 17 de dezembro, recebi a tão esperada ligação do Icesp informando que minha primeira consulta seria na sexta-feira, dia 22. Me enchi de alegria e esperança: aquilo era a vida antecipando meu presente de Natal.

________________
(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.