Crônica de uma falácia anunciada

Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 10/09/2021 - Publicado há 3 anos
Jean Pierre Chauvin – Foto: Arquivo pessoal

 

 

Dez e meia da manhã. Ao longo da Cesário Mota, escutava gritos contra o desgovernante. A explicação para os protestos estava alguns metros à frente. Enquanto cruzava a Consolação, havia um grupo fantasiado de verde e amarelo em direção à Paulista. À proporção que subiam, os gritos contra o presidente aumentavam. E eu – que sempre achei esquisito haver patriotas que sonham com a Disney, desprezam tudo o que é feito aqui e, quando podem, vivem em Orlando – senti com mais força o peso das incoerências que pairam nesta província.

O problema seria bem menor se se tratasse apenas de haver pessoas contraditórias: todos nós carregamos ambivalências. A questão é que alguns seres, embalados pelo ressentimento e pela violência, persistem em reverberar as bravatas do desgoverno, embrulhados na bandeira republicana (embora as cores remetam ao Império) e a reverberar os argumentos mais inconsistentes. Onde estão os paladinos da ética, que dizem zelar contra a corrupção? Onde estão os ferrenhos justiceiros que combatem nepotismos? Estão todos calados, ao sabor das conveniências.

O circo de horrores do Sete de Setembro começou no Distrito Federal. Afora a invasão da Esplanada, um ex-piloto de corridas conduzia a marcha fúnebre num Rolls-Royce, meses após ter “concedido” uma entrevista-de-encomenda à TV Brasil (canal oficial do desgoverno), em que foi bajulado pelos três “entrevistadores”. Prestar-se a esse papel pode revelar muitas coisas, a começar pelo desmedido grau de cinismo dos que confundem nacionalismo com egoísmo. Os mesmos que passaram a vida fora do país (e a falar mal dele) posam de condutores do ato cívico. Como se vê, há variados graus de hipocrisia, a depender do grau de recompensa.

Surpresa com o rumo das coisas na neocolônia?

Em parte, não: o que esperar de um sujeito que está na vida pública há mais de 30 anos e sempre votou contra as pautas sociais, culturais, educacionais etc.? O que esperar de um sujeito que em vez de promover a concórdia e harmonizar o povo (que chama de “seu”) promove e agencia todas as formas do caos; e que só “governa” em função de MPs?

Em parte, sim: é assustador constatar o persistente grau de alienação e oportunismo dos “seguidores”, num território em que faltam oportunidades para a maioria dos seus habitantes. Evidentemente, o problema nunca esteve no método de ensino; mas na suposição de que é possível produzir discursos neutros, isentos de convenções e artifícios – como pretendem certos grupos financiados por megaempresários e um setor considerável dos veículos de informação.

Como sou destes que podem almoçar, em instantes farei a refeição e seguirei para o Anhangabaú. E como tive a oportunidade de estudar em um bom colégio e numa excelente universidade, aprendi, com ótimos professores e livros, que o nacionalismo de cá nasceu de um projeto (para bem poucos) consolidado durante o Segundo Império. Não se confunda trajetória pessoal com destino de um povo. Isso é coisa para megalomaníacos.


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