Cristianismo e poder: de Constantino a Bolsonaro

Por Roberto Carlos Gomes de Castro, jornalista e subeditor de Cultura do “Jornal da USP”

 05/12/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 05/04/2024 as 13:17
Roberto Carlos Gomes de Castro – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

 

O apoio de um imenso contingente de cristãos brasileiros – neopentecostais, pentecostais, protestantes e, em menor escala, católicos – ao governo do presidente Jair Bolsonaro constitui, na história do Ocidente, o mais deprimente, vergonhoso e nefasto exemplo da relação do cristianismo com o poder. Desde a Antiguidade, até mesmo aqueles momentos em que a aproximação entre os cristãos e os poderosos se tornou mais estreita não foram tão nocivos às próprias Igrejas, à fé e à sociedade como a situação que ocorre no Brasil atualmente.

Três desses momentos são notáveis porque deram origem a fatos que contribuíram decisivamente para modelar a cultura ocidental: a concessão de tolerância à fé cristã decretada pelo imperador romano Constantino, no século 4, a conversão ao cristianismo ortodoxo do primeiro rei franco, Clóvis, no final do século 5, e a coroação de Carlos Magno como imperador do Sacro Império Romano, no início do século 9.

Nessas três ocasiões, nota-se um certo padrão comum: os soberanos se aproveitam do apoio dos cristãos para ampliar poder e território, a Igreja tem liberdade para divulgar a fé no Nazareno e as populações – sempre oprimidas pelas guerras, fome, doenças e ignorância – são amparadas por obras assistenciais e educacionais mantidas por clérigos.

Apontada às vezes como responsável pela secularização e decadência da Igreja, a tolerância ao cristianismo concedida no ano 313 por Constantino fez com que a instituição antes perseguida e clandestina se tornasse o fundamento do Império Romano. O próprio imperador – que se fez rodear de cristãos eruditos como o historiador Eusébio de Cesareia – se empenhou pessoalmente para restabelecer a unidade da Igreja, então ameaçada pelas heresias do donatismo e do arianismo, construiu templos, preservou sítios históricos do cristianismo em Roma e em Jerusalém, baniu práticas pagãs cruéis, impregnou a legislação de valores cristãos e favoreceu a classe dos sacerdotes.

“Só o observador superficial e o crítico parcial, que carecem de qualquer compreensão histórica, podem afirmar que a Igreja terá traído, nessa época, a sua vocação originária”, afirma o historiador alemão August Franzen em Breve História da Igreja (Editorial Presença, 1996). “O impulso missionário desse tempo, a paixão com que as questões religiosas eram tratadas e os problemas teológicos disputados, em particular o desenvolvimento do monaquismo e o elevado número de santos, conferem à época pós-constantina, apesar dos seus inúmeros perigos e fraquezas, o caráter de uma grande época da história da Igreja, plena de dinamismo e de espírito cristão autêntico.”

Dinamismo e espírito cristão não faltaram na época de Clóvis, que no Natal de 496 se deixou batizar por Remígio, bispo de Reims – outro grande erudito cristão –, o que ampliou as perspectivas da Igreja. Nos séculos seguintes, durante o predomínio da dinastia merovíngia inaugurada por Clóvis, o Ocidente assiste a um vigoroso movimento missionário, que leva o Evangelho para os povos germânicos do continente europeu e para as ilhas britânicas.

E mais: fortalece-se também o monaquismo, que, através principalmente dos monges itinerantes irlandeses, foi responsável pela implantação, em várias partes da Europa, de mosteiros dedicados ao cultivo da fé cristã e da cultura. “Além disso, como o Estado merovíngio não se preocupava em absoluto com a assistência e a instrução, era sob a sombra da Igreja que se encontravam todos os fracos, todos aqueles que sofriam com a crueldade da época”, escreve o historiador francês Pierre Pierrard em História da Igreja (Edições Paulinas, 1982). “Praticamente ignorada pelos leigos, a cultura greco-latina refluíra das cadeiras de retórica e gramática, abandonadas, para as escolas episcopais, onde jovens clérigos tonsurados viviam em comunidades, procurando manter as escolas presbiteriais, ancestrais de nossas atuais escolas de vilarejo.”

Já a coroação de Carlos Magno, no ano 800, deu origem a um movimento de reflorescimento da Igreja e da cultura – uma das “renascenças” antes da Renascença. Na época de Carlos e de seu filho e sucessor Luís I, o Pio, houve grandes avanços missionários em direção ao norte e ao leste, com a evangelização dos escandinavos e dos eslavos e a conquista da Morávia por Cirilo e Metódio.

No que se refere à cultura, Carlos Magno fez proliferar escolas por todo o território sob seu domínio e reuniu em torno de si os eruditos da época – a chamada Escola do Palácio ou Escola Palatina –, liderados pelo monge Alcuíno de York, um dos homens mais cultos do seu tempo. “Carlos considerava a restauração das letras em seu império uma obra inferior em importância somente à manutenção do próprio império”, destaca o historiador inglês James Bass Mullinger em Carlos Magno e a Restauração da Educação (Editora Kírion, 2022). Essa escola acompanhou o soberano onde quer que ele fixasse sua corte, acrescenta Mullinger, e “ele próprio costumava, junto com os cortesãos mais inteligentes, sentar-se no meio dos alunos, estimulando o ardor por seu exemplo e gratificando a própria sede de conhecimento por meio da discussão e da investigação”.

Se nos governos de Constantino, Clóvis e Carlos Magno a Igreja e a sociedade fizeram grandes conquistas – apesar das dificuldades e da tutela permanente do imperador –, o mesmo não se pode dizer com respeito à relação de parcela expressiva de cristãos brasileiros com o presidente Jair Bolsonaro. Resguardadas as devidas proporções – uma vez que não há aqui o caráter “universal” daquelas três experiências –, o que acontece no Brasil atualmente é uma submissão vergonhosa daqueles cristãos a um político medíocre, sem que isso redunde em benefícios para o cristianismo e para a população.

Pelo contrário, a associação com Bolsonaro contribuiu para descaracterizar aqueles cristãos e suas Igrejas – que passaram a ser lembrados por atos de ira, em vez de atos de amor, e pela propagação de fake news através das redes sociais – e para afastar do Evangelho as pessoas bem informadas, que repudiam a contradição entre o que as Escrituras ensinam e o comportamento daqueles que se dizem seus praticantes. Quanto à educação, uma área fundamental para o desenvolvimento da sociedade, ela foi drasticamente afetada pelo atual governo – com a participação direta de cristãos –, que criticou, atacou, perseguiu e privou de recursos uma das mais importantes instituições do País, a universidade pública, algo que certamente revoltaria cristãos como Eusébio de Cesareia, Remígio e Alcuíno.

É curioso perceber que a abjeta submissão daqueles cristãos ao presidente se faz em nome de um moralismo que está totalmente ausente nos ensinos de Jesus Cristo registrados nas páginas dos Evangelhos. Nessas páginas, os sentimentos que predominam são bem diferentes daqueles a que tais cristãos se apegam tão aguerridamente. Em vez da discriminação, do sectarismo e do autoritarismo, leem-se ali ternas, amorosas e acolhedoras palavras dirigidas sem distinção a todos os ouvintes – não importando sua orientação sexual ou preferência religiosa –, como estas, ditas pelo Bom Pastor: “Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Evangelho de Mateus 11:28).

Valores autenticamente cristãos – o amor, o acolhimento, a paz, entre outros –, ao que parece, foram perdidos por aqueles que se dizem cristãos e se associaram a Bolsonaro. Fatos mostrados na imprensa recentemente ilustram essa perda com precisão. Por exemplo, em julho passado, numa Marcha Para Jesus, em Vitória (ES), manifestantes conduziram um carro alegórico com uma réplica gigante de um revólver calibre 38. Em diferentes ocasiões, cristãos foram fotografados, dentro de suas igrejas, fazendo com as mãos o sinal de uma arma. Não é difícil perceber que são cenas claramente estranhas, até afrontosas, ao espírito do Evangelho.

Os chamados cristãos protestantes contam ainda com um agravante. Acontece que o princípio da separação entre Igreja e Estado é justamente um legado da Reforma Protestante do século 16, a que aqueles cristãos se declaram filiados. Nos últimos anos no Brasil, também esse princípio foi aviltado, com uma união espúria entre governo e lideranças eclesiásticas, que inclusive se tornaram ministros de Estado – dos quais um chegou a ser preso sob acusação de corrupção.

Agindo assim, esses cristãos bolsonaristas contrariam uma palavra revolucionária de Cristo, dada em resposta a alguém que lhe perguntou se era lícito pagar imposto ao Império Romano: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Evangelho de Mateus 22:21). Uma das passagens bíblicas mais diretamente ligadas à relação entre o cristianismo e o poder, essa palavra é revolucionária porque, na época em que foi dita, tudo – absolutamente tudo – era “de César”. Não havia espaço para algo que fosse “de Deus”. Ao pronunciá-la, Cristo ensinou que deve-se, distintamente, entregar a César o imposto que lhe é próprio e a Deus aquilo que lhe pertence. E o que pertence a Deus que se lhe deve dar? Pelo que se depreende dos Evangelhos, aquele que se diz cristão deve a Deus uma vida dedicada a um profundo amor ao próximo (e não à indiferença em relação à dor alheia), ao acolhimento (e não à discriminação de minorias) e à promoção da paz (e não do armamentismo).

É preciso se perguntar pelos motivos que levaram a essa situação, em que mesmo Igrejas sérias, históricas, chegaram a se descaracterizar, a trair sua missão original, devido a uma devoção e submissão cegas a um político medíocre. Muito provavelmente, isso se deve em parte à formação dada nas últimas décadas pelos seminários teológicos brasileiros, que em certos casos se aproxima de um fundamentalismo religioso radical. Seminários são – ou deveriam ser – um ambiente acadêmico e, por isso, devem ampliar ao máximo possível a visão de mundo dos seus alunos, em vez de restringi-la. Devem necessariamente variar os temas e autores estudados, incluindo Karl Marx, pois é incompreensível que líderes religiosos, com atuação marcante numa sociedade regida pelo capitalismo, como a brasileira, não tenham a mínima noção dos mecanismos perversos e injustos desse sistema, tão bem descritos por aquele pensador alemão.

Por tudo o que foi exposto, convém concluir este artigo invocando a figura de Martim Lutero – líder da Reforma Religiosa do século 16 –, que para muitos cristãos é um símbolo da luta contra a deturpação da maravilhosa mensagem do Evangelho. Quinhentos anos depois da Reforma, é necessário que Lutero inspire um movimento de renovação do cristianismo no Brasil, que retome a simplicidade dos princípios e valores pregados por Jesus. Pois é dessa forma, através da prática de um profundo amor ao próximo, da verdadeira humildade e da sincera compaixão pelos sofredores – como o Mestre ensinou – que os cristãos podem mudar o País.


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