Crime e castigo: uma breve análise sobre os seis meses de guerra na Ucrânia

Por Pedro Donizete da Costa Júnior, doutorando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Valdir da Silva Bezerra, membro do Grupo de Estudos sobre o Brics (Gebrics) da USP

 02/09/2022 - Publicado há 2 anos
Pedro Donizete da Costa Júnior – Foto: Arquivo pessoal
Valdir da Silva Bezerra – Foto: Arquivo pessoal

 

Após os eventos de 2014, na Ucrânia, Vladimir Putin enxergou o país vizinho como uma “plataforma” utilizada pelo Ocidente para minar a segurança da Rússia. Baseando suas alegações em elementos históricos, filosóficos e religiosos, Putin deixou claro que o movimento da Ucrânia em direção ao Ocidente (e especialmente em direção à Otan) seria algo inaceitável (uma red line), na medida em que minaria a “unidade espiritual e cultural” existente entre russos, bielorrussos e ucranianos.

Por outro lado, durante as décadas de 1990 e 2000, a ascensão de sentimentos nacionalistas nas ex-repúblicas soviéticas, e particularmente na Ucrânia, foi enxergada de forma positiva pelo Ocidente, uma vez que representava a perspectiva de uma democratização regional e de seu afastamento da Rússia, enquanto polo de poder regional.

Logo, Putin afirmava que Kiev foi arrastada para um perigoso jogo geopolítico que visava transformar a Ucrânia numa barreira entre a Europa e a Rússia, um trampolim (de ataque) contra o país, motivo que levou o Kremlin a crer que a Ucrânia estava servindo aos interesses geopolíticos do Ocidente e não aos interesses de seu próprio povo. Com isso, Putin não somente enxergou a soberania ucraniana como essencialmente frágil, como passou a exigir garantias por parte da Otan de que a Ucrânia não seria incluída futuramente na organização.

Nesse contexto, durante as primeiras semanas de 2022, enquanto mantinha conversações com diversos estadistas europeus, Putin e o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, enfatizavam as preocupações do Kremlin sobre a chamada “política de portas abertas” da Otan, mencionando que o descaso demonstrado pela liderança ocidental quanto à posição russa de que “uma possível admissão da Ucrânia na Aliança Atlântica seria inadmissível” foi uma das principais razões por trás da crise de confiança surgida entre a Rússia e a Aliança Atlântica.

Enquanto, por um lado, essa “política de portas abertas” da Otan enfatizava o direito de cada Estado de escolher livremente seus arranjos de segurança, a Rússia enfatizava a necessidade de se atentar para que “nenhum Estado fortaleça sua própria segurança em detrimento da segurança dos demais”. Segundo a liderança russa, uma eventual adesão da Ucrânia à Otan representaria uma ameaça militar ao país, na medida em que a Aliança Atlântica poderia colocar em solo ucraniano mísseis balísticos de médio alcance (500-5.500 km) capazes de atingir importantes cidades russas como Moscou e São Petersburgo em questão de minutos, ao mesmo tempo em que forneceria terreno para o estacionamento de tropas da Otan nas fronteiras meridionais da Rússia. Além de tudo, para os russos, perder a Ucrânia para a Otan seria o mesmo que perder uma parte de sua própria origem.

Fato é que, com o fiasco das negociações entre o Kremlin e líderes europeus a respeito de “garantias de segurança” e sob a justificativa de defesa das populações de Lukansk e de Donetsk contra “as agressões do exército ucraniano”, Putin decidiu tomar a controversa decisão de iniciar a Guerra na Ucrânia, evitando aquele movimento que se aprofundava ao longo dos últimos anos em que a Rússia se via novamente como o alvo de uma política de “cerco” empregada pelo Ocidente. Na prática, tinha início então uma nova guerra em território europeu contra o poder do hegemon ocidental, que hoje chega à marca de seis meses. Durante esse tempo, os olhos do mundo se voltaram para a Ucrânia e os destinos de milhões de pessoas, assim como da própria Ordem Mundial, nunca mais seriam os mesmos.

Do ponto de vista sistêmico, seis meses após o início da guerra, pela primeira vez em 30 anos, o Ocidente liderado pela Otan e a hegemonia dos EUA estão na defensiva. “A parceria sem limites” assinada por Rússia e China, no dia 4 de fevereiro, e aprofundada desde então, evidencia não só os interesses e as implicações regionais desse conflito, mas um cisma muito maior do ponto de vista da geopolítica e da geoeconomia do poder. A imposição de uma Eurásia nesta Nova Ordem Mundial policêntrica, pela força, da parte russa, e pela economia, da parte chinesa. Afinal, como escreveu Dostoiévski, “em tudo há uma linha além da qual é perigoso cruzar; pois uma vez que você a atravessa, é impossível voltar atrás”.


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