Do veículo de comunicação de uma grande universidade, como a USP, espera-se que textos opinativos acompanhem a responsabilidade e senso crítico de sua respeitável comunidade. O artigo de Charles Mady, professor da Faculdade de Medicina, publicado na segunda-feira (23), no entanto, evoca a barbárie dos piores folhetins antissemitas do século passado. Infame desde o título, Palestinos. A solução final, a exposição do professor tenta traçar paralelos entre o plano hitlerista de exterminar toda a comunidade judaica da Europa ocupada e os impasses políticos entre israelenses e palestinos.
Equiparar as atrocidades nazistas ao que acontece na relação entre Israel e os palestinos beira a negação do Holocausto, ainda que o autor não o faça de forma explícita. Que obras terá ele lido dos citados Herzl e Jabotinsky, para afirmar que propuseram o extermínio da população palestina? Jabotinsky, inclusive, chegou a projetar um sistema político em que os árabes teriam uma participação ativa – com certeza não era os planos dos nazistas para o povo judeu.
Por que o artigo não menciona a aceitação por parte da liderança judaica das propostas da Comissão Peel em 1937 e da Partilha da Palestina definida pela ONU em 1947, categoricamente rejeitadas pelas lideranças árabes, as verdadeiras responsáveis pela tragédia que se abateu sobre o povo palestino?
O médico recorre a estereótipos e distorções, ao escrever sobre um assunto que não é de seu conhecimento. Chega a ser embaraçoso, como seria para um especialista em história judaica e sionismo escrever sobre cardiologia no jornal de uma universidade. Mas, mais do que isso, a divulgação de tais ideias é perigosa; sabemos que atos de violência e assassinatos de minorias são alimentados por falácias espalhadas como se fossem verdade.
A partir de grotescos erros argumentativos, Mady afirma que Herzl se baseou no Deuteronômio, um dos livros parte da Torá. Herzl, um judeu secular, não se tornou o pai do sionismo moderno por causa da religião judaica. Foi como jornalista enviado para cobrir o Caso Deyfrus, famosa conspiração antissemita contra o judeu francês Alfred Dreyfus, que ele chegou à conclusão de que, mesmo se sentindo assimilados à sociedade europeia, judeus laicos sempre seriam considerados diferentes e correriam risco por isso. O julgamento político cheio de cartas marcadas teve repercussão internacional e levou Émile Zola a publicamente se posicionar contra a injustiça do caso, na famosa carta aberta intitulada “J’accuse” (“Eu acuso”).
A volta de judeus para a terra de seus antepassados de onde são comprovadamente indígenas, segundo fontes históricas e arqueológicas, se deu como reparação histórica a uma minoria perseguida e há séculos dispersa na diáspora, que foi consequência da sucessiva invasão de seu território por potências estrangeiras, dos helênicos aos otomanos, dos persas aos romanos. Última potência a ocupar o local onde um dia esteve o Reino de Israel e Judá, a Inglaterra não cedeu ao sonho de autodeterminação judaico, mas, como colonizadora, usou diferentes artifícios para dissuadi-lo. Basta lembrar do navio Exodus com mais de mil sobreviventes do Holocausto, que foram impedidos de desembarcar no local onde no ano seguinte seria criado o Estado de Israel.
Ao comparar judeus em geral e israelenses em particular a Amon Göth, o sádico capitão de Płaszów retratado no filme A Lista de Schindler, Charles Mady deixa claro seu ferrenho antissemitismo. De acordo com organizações internacionais que monitaram o ódio aos judeus, a Aliança Internacional de Lembrança do Holocausto (International Holocaust Remembrance Alliance -IHRA) e a Liga Antidifamação (Anti-Defamation League – ADL), igualar judeus, vítimas do maior genocídio perpetrado na história da humanidade, aos nazistas que levaram a cabo o plano industrial de seu assassinato em massa é antissemitismo. Não existe outra forma de conceituar.
Mady recorre a inverdades ao afirmar que Israel pratica a limpeza étnica de palestinos. Há diferentes formas de provar isso, uma das mais claras e diretas sendo o crescimento populacional acima de 2,5% dessa população, superior ao de países árabes como Irã e Jordânia. Os números ajudam a evidenciar quão distinta essa realidade é da dos judeus europeus à época da Segunda Guerra Mundial. Em 1939, havia 11 milhões de judeus na Europa, de acordo com o United States Holocaust Memorial Museum. Desse grupo, seis milhões de pessoas foram assassinadas, incluindo mais de um milhão de crianças. A comunidade judaica europeia nunca se recuperou. Segundo o Institute for Jewish Policy Research, baseado em Londres, em 2020, somente 1,3 milhão de judeus viviam na Europa em 2020.
Até mesmo a relação com os Estados Unidos é abordada de forma superficial e enviesada, ignorando o profundo laço entre os dois países, a evidência de que a maioria absoluta da população norte-americana apoia essa relação com Israel e que a política bi-partidária, em vigor há décadas, não se pauta pela ótica deste ou daquele presidente.
É inaceitável que mentiras, discurso de ódio e panfletagem antissemita ganhem espaço nos mais respeitáveis espaços livres de nossa sociedade. Repudiamos veementemente o artigo do professor Charles Mady e esperamos por um espaço de resposta no Jornal da USP, especialmente nesta semana, em que o mundo livre comemora o Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto.
(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo.)