O antirracismo na educação desempenha um papel fundamental na construção de uma sociedade mais inclusiva e justa, proporcionando a estudantes de diferentes origens o reconhecimento e a valorização de suas identidades culturais. Em Macapá, o projeto Afroamapaensises nas Escolas buscou cumprir essa função ao introduzir o Marabaixo, tradição cultural afrodiaspórica do Amapá, no cotidiano escolar. A iniciativa, lançada em 2021, visava fortalecer o conhecimento das raízes afro-brasileiras entre estudantes da rede pública, possibilitando uma conexão com a herança cultural local. Contudo, apesar de seu impacto inicial, o projeto foi interrompido, revelando os desafios complexos enfrentados por políticas de educação inclusiva e antirracista no Brasil.
Foram esse projeto e suas complexidades que Arlene Marta da Silva Gomes pesquisou em sua dissertação de mestrado, entregue à Faculdade de Educação (FE) da USP no ano de 2024. A pesquisadora, que também é professora do ensino fundamental na rede pública do Amapá, comentou ver poucos momentos em que a cultura marabaixeira é ensinada nas escolas.
“Enquanto educadora, eu também percebi a falta do aprofundamento do Marabaixo nas escolas. Meu filho é do fundamental 1 e ele nem sabia o que era o Marabaixo pela escola. E eu senti também isso [desconhecimento] nos meus alunos. Um tempo atrás, não só na Igreja Evangélica, mas na Igreja católica também, ocorreram episódios de preconceito em relação ao Marabaixo. Era difícil conseguir transformar o Marabaixo em dispositivo educacional. E esse foi o objetivo. Eu achei muito interessante o projeto”, comentou Arlene.
O que é o Marabaixo?
O Marabaixo é uma expressão cultural tradicional da população afro-amapaense. Caracterizado por música, dança e cantos, o Marabaixo não é apenas uma celebração, mas também uma forma de resistência cultural e de fortalecimento de identidades. Os cânticos, conhecidos como ladrões, e o ritmo forte dos instrumentos de percussão, construídos artesanalmente, caracterizam o som do Marabaixo. A dança, os versos e as vestimentas dos participantes contam histórias e representam a luta e a alegria do povo negro da região.
No Amapá, o Marabaixo representa um elo com a ancestralidade e reforça o papel das comunidades afrodescendentes na construção da sociedade local. Em 2018, o Marabaixo foi reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial do Brasil. Foi registrado como forma de expressão cultural, assim como o Carimbó e o Maracatu.
A implementação do projeto Afroamapaensises
O projeto Afroamapaensises foi desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação (Semed) de Macapá em parceria com o Instituto Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Improir) e outras entidades culturais e educativas. Desde seu lançamento, o Afroamapaensises teve como base a Lei 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, e a Lei 11.645/2008, que ampliou essa abordagem para incluir a cultura indígena.
A escolha do Marabaixo como centro dessa proposta foi estratégica. De acordo com Arlene, a intenção era valorizar um elemento autêntico da cultura afro-amapaense e promover o Marabaixo como ferramenta pedagógica e de resistência ao racismo nas escolas. Quatro escolas municipais foram selecionadas como piloto para o projeto, que incluía formação continuada para professores e equipe técnica, a fim de garantir uma compreensão ampla e uma prática consistente dos elementos culturais afro-amapaenses nas aulas.
Inicialmente, o projeto obteve uma recepção positiva, com professores, estudantes e a comunidade abraçando a ideia de incorporar o Marabaixo como parte do currículo escolar. Em oficinas ministradas por “marabaixeiros” (pessoas que dominam e preservam a tradição), estudantes e professores tiveram contato direto com os costumes, ritmos e significados profundos da tradição. Essa abordagem prática não só reforçou o conhecimento cultural, mas também promoveu um ambiente de maior inclusão e pertencimento para estudantes afrodescendentes.
Contudo, o projeto enfrentou obstáculos significativos que impediram sua continuidade. Entre os principais desafios, estava a falta de financiamento consistente, necessário para garantir a permanência dos marabaixeiros nas escolas e a expansão do projeto para outras unidades de ensino. Além disso, questões estruturais, como o racismo institucional e a falta de apoio legislativo para consolidar o Afroamapaensises como uma política pública duradoura, dificultaram seu progresso. Esse impasse revelou a resistência enfrentada para incluir temas raciais de forma contínua no sistema educacional.
Apesar da boa recepção das escolas para a iniciativa, Arlene, ao entrevistar os professores que participaram do projeto, relatou ter ouvido histórias de preconceito de alguns pais em relação ao Marabaixo. “Eu ouvi comentários de alguns professores. Um que eu não esqueço é de uma professora que falou que houve casos de alunos que não puderam participar do projeto porque os pais relacionavam o Marabaixo a uma manifestação ligada a algo demoníaco. E os alunos não eram obrigados a participar. Mas foi procurado trabalhar com os pais, sensibilizar os pais em relação a isso”, conta.
A importância da cultura de matriz africana nas escolas
O projeto Afroamapaensises deixou uma marca importante na trajetória da educação pública de Macapá, ao menos enquanto esteve em atividade. Ele representou uma tentativa de reescrever a história local, oferecendo aos estudantes uma versão que inclui e valoriza a contribuição da população negra e sua luta por reconhecimento. Arlene destaca em sua dissertação que o Marabaixo é, em si, um símbolo de resistência, e que levar essa tradição para o espaço escolar é uma forma de legitimar o lugar dos afro-amapaenses na sociedade amapaense e, consequentemente, na construção do Brasil.
“Eu acho importante que mais escolas, não só aqui da rede do Estado Amapá, do município de Macapá, trabalhem a temática relacionada à cultura de matriz africana. Não só agora, no mês de novembro, mas que isso possa ser trabalhado como dispositivo educacional durante o ano todo. Porque manifestações culturais precisam que sejam quebradas esses estereótipos de preconceitos. E eu digo que a comunidade, pais, alunos, responsáveis, só vão quebrar esse estereótipo quando eles conhecerem”, comenta a pesquisadora.
Por que o projeto foi interrompido?
A interrupção do Afroamapaensises expôs as dificuldades de consolidar projetos culturais e antirracistas em estruturas educacionais muitas vezes resistentes a mudanças profundas. Segundo Arlene, além da ausência de políticas públicas que garantam um financiamento, a falta de continuidade se deve à necessidade de sensibilizar gestores e profissionais para a importância dessas ações que, combinadas à transição administrativa na prefeitura de Macapá, contribuiram para a descontinuidade do projeto. Já que muitos programas não obtêm apoio integral sem um planejamento consolidado entre diferentes gestões e mandatos políticos.
Arlene defende que projetos como esse são essenciais para quebrar barreiras e incentivar uma educação inclusiva e diversa, especialmente em estados como o Amapá, cuja população negra e indígena é expressiva. De acordo com dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2022, a população do Amapá é composta 65,3% por pessoas pardas, 21,4% por pessoas brancas, 11,8% por pessoas negras, 1,5% por pessoas indígenas e 0,1% por pessoas amarelas.
O desafio agora é encontrar formas de resgatar e dar continuidade a esse projeto, ou a iniciativas semelhantes, de forma a garantir que a cultura afroamapaense continue sendo valorizada e transmitida para as novas gerações. Como mostra o exemplo do Marabaixo, a cultura é uma poderosa ferramenta de resistência e transformação. E, se devidamente integrada ao sistema educacional, pode contribuir para uma sociedade mais justa e inclusiva.
*Estagiário supervisionado por Silvana Salles