Arte e política, eterna questão

Alecsandra M. de Oliveira é doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da USP e membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA)

 14/02/2019 - Publicado há 5 anos

Alecsandra M. de Oliveira – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

A preocupação e a crítica social dos modernistas, o realismo socialista dos clubes de gravuras, a irreverência pop das bananas de Antônio Henrique Amaral, a acidez de Antônio Dias e a denúncia de João Câmara Filho tornaram-se lições de como os artistas brasileiros foram tocados pelo instante que vivem. As proposições de Hélio Oiticica e Lygia Clark, por exemplo, são constantemente repensadas pela crítica e pela história da arte. Afastadas pelo tempo, torna-se fácil compreender as motivações políticas dessas obras. Além do mais, críticos, historiadores e artistas suscitaram embates que nos colocaram os “discursos vencedores”. Nesse processo de legitimação, aos historiadores e especialistas, parecem mais seguras as referências mais afastadas – quando as fronteiras entre arte e política, aparentemente, deixam margens mais confortáveis para digressões e debates.

Hoje, as práticas poéticas e políticas nos deixam em terreno arenoso. Diversos artistas se arriscam ao registrar fatos sem o julgamento do tempo. Às vezes, trazem a abundância de ficções, referências e metáforas tão presente nas narrativas contemporâneas. Aliás, as ficções sempre foram o vértice entre arte e política. Segundo Rancière, arte e política produzem ficções, construídas entre a aparência e a realidade, entre o visível e o seu significado, entre o singular e o comum[1]. No campo das ficções, os artistas travam questionamentos envolvidos pelo “calor da hora” e continuam criando obras motivadas pelas circunstâncias políticas de sua época – algo que os teóricos não conseguem de modo tão tenaz, justamente, porque precisam do distanciamento do tempo. Atônitos com as reverberações políticas atuais, entre elas, as Jornadas de Junho de 2013 (também conhecidas por Manifestações pelos 20 Centavos), as passeatas pró-impeachment da presidente Dilma Rousseff, a Operação Lava Jato (2015/2016), as últimas eleições e suas demais consequências, historiadores e intelectuais intentam articular historicamente o processo político em curso.

Já os trabalhos artísticos que emergem dessa situação não se conservam apenas no lugar de comentário ou se colocam meramente como militância. As obras espelham demandas e sentimentos da coletividade – são declarações políticas que, em sua maioria, evocam o potencial transformador da arte. Lembremos que, em meio às táticas de protesto, surgem manifestações artísticas, tais como, fotografias, performances, grafites, música e dança que acabam por compor uma estética contemporânea. Recordemos ainda que nos últimos 40 anos, arte e política têm importante quebra de paradigmas.

As constantes revisões historiográficas trazem preocupações e atividades que requerem o tratamento de questões sociais e de gênero. O atual contexto político exige ainda a prática das micropolíticas – as pequenas revoluções que provam que a existência é, fundamentalmente, um movimento de resistência. A inerente transgressão da arte permite sair do nível do discurso para a prática diária.

As buscas destinam-se ao relato de histórias individuais, às particularidades das origens dos artistas, à genui­nidade de lugares, ao entendimento do cotidiano urbano e do seu papel na sociedade. Contudo, todos procuram, através do trabalho artístico, dar sentido à existência, seja a sua própria ou a da coletividade.  Artistas, coletivos e movimentos artísticos têm crucial papel na construção de seu tempo através de múltiplas linguagens estéticas. Alguns atingem um significativo grau de especificidade no modo de construção e se tornam, de certo modo, cronistas do cotidiano – uma expressão que somente pode ser compreendida através da reconstituição dos diversos “agoras” – um tempo fragmentado diante da profusão de imagens, sons e sentidos imersos na sociedade atual. As práticas poéticas e políticas podem responder às indagações e/ou podem implicar novas reflexões.

Em março de 2014, na exposição Pintura como Meio 30 anos, exibida no MAC USP, Ciro Cozzolino apresenta a tela SP Jun 2013. Produzida no instante das manifestações populares, que tomam as principais cidades brasileiras, a obra traz a multidão: nela, personagens diversos em posição de protesto (de punhos cerrados) e de combate. Um pouco deslocado do centro, à esquerda, o mascarado Anonymous, mais ao canto o Black Bloc e o símbolo anarquista e, ao fundo, os arranha-céus de São Paulo. Dentro da estética do grafite e do mundo dos quadrinhos, o artista retrata a juventude da primeira semana das Jornadas liderada pelo MPL (Movimento Passe Livre) que tem como demanda o não aumento das tarifas de ônibus da capital paulista.

A agitação nas ruas do país torna-se intensa. No Rio de Janeiro e em outras cidades semelhantes, instituições financeiras são atacadas – parecia que Seattle era o modelo para a mobilização. Os protestos contra o FMI e o Banco Mundial surgem como protótipo para a postura política daqueles jovens. Josely Carvalho recolhe os vidros blindados atacados pela multidão e concebe Memorial às Resistências, 2013. Naquele instante, o modo de ocupação das ruas persiste como revolta contra o sistema capitalista. Josely conserva o ato que irrompe dos manifestantes; emoldura a memória do vidro estilhaçado. Em 2018, após o assassinato de Marielle Franco, a artista resolve atribuir seu nome à obra. Talvez, por compreender que o processo que se inicia nas manifestações de 2013 tenha relações com a morte da vereadora carioca.

Nesse ponto, nota-se que, após sua segunda semana, apropriadas pela juventude meritocrática e midiática, as Jornadas de Junho de 2013 tomam um discurso voltado ao combate à corrupção. Elas integram o processo histórico e, simultaneamente, preparam as ruas para o impeachment da presidente Dilma e todos os seus desdobramentos. Nessas manifestações, “vermelhos” e “verdes-e-amarelos” tomam as rua e travam batalhas no campo das reivindicações. Na memória de alguns deles, o movimento dos “caras-pintadas” e o impeachment de Collor, em 1992. Nessa movimentação, estão artistas militantes à esquerda e artistas à direita (por que não?).

Dos grandes aos pequenos acontecimentos, “nada do que um dia acontecer pode ser considerado perdido para a história”, como diria Walter Benjamin … e tão pouco à arte. A revolução diária dos artistas mostra-se profundamente comprometida com o combate à exclusão social. Beth Moysés está envolvida com o universo feminino, trazendo para suas obras embates sobre gênero, identidade, abusos, violência doméstica, assim como a necessária solidariedade entre as mulheres. Sua investigação artística está ligada à reflexão sobre o aumento do feminicídio no país. Em 2014, Beth Moysés chama atenção para as 5.664 mulheres mortas naquele ano. Sua bandeira do Brasil é composta por esse número de cápsulas de balas deflagradas. Coincidência ou não, fato é que o símbolo nacional, tão presente nas manifestações que se seguiram em 2015 e 2016, é colocado pela artista como a lembrança da violência.

Já o trabalho Resistência Uniforme (2017/2018), de Marcela Tiboni, apresenta símbolos de resistência, ao longo do mundo, bordados em camisetas usadas. São emblemas diversos ligados à resistência feminina, negra e homossexual. Mostra o repertório imagético contrário ao nazismo, à polícia militar ou aos regimes ditatoriais, inclui o bordado de símbolos, tais como, a máscara do Anonymous, os Black Blocs, o “Pato da FIESP”, a insígnia da CBF e homenagem aos desaparecidos políticos na ditatura. Esse é um trabalho sensível dentro do conjunto da obra da artista; ele é delicado na manufatura e também pelos diversos significados que lhe podem ser atribuídos, mas ele discute, sobretudo, a situação social, econômica, política e racial que cerca nossa realidade.

Em síntese, sem a pretensão de esgotar o paralelo entre arte e ação política e respondendo a primeira questão, toda arte é potencialmente política porque, para além de sua função social, ela é resistência, afeto, insubordinação e, muitas vezes, é a tomada de consciência de que as bandeiras partidárias são menos relevantes do que o ato de existir em sociedade e nela insistir nas revoluções diárias. Às vezes, os amores, os instintos e a inscrição do instante, se tornam declarações políticas. Cabe aos artistas o registro sensível desses “agoras” e aos historiadores o permanente reexame dessas proposições.

 

 

[1] RANCIÈRE, Jacques. “Política da arte”. In: São Paulo S.A. – práticas estéticas, sociais e políticas em debate. São Paulo: SESC

 

Referências

AMARAL, Aracy. Arte e sociedade: uma relação polêmica. São Paulo: Itaú Cultural, 2003.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232.

OLIVEIRA, Alecsandra Matias. Memória e resistência. Interthesis, Florianópolis, V. 10, n. 2, p. 429-433, jul/dez. 2013.

OTELLADO, Pablo e RYOKI, André. Estamos vencendo! Resistência global no Brasil. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004 (Coleção Baderna).


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