Algumas Sampas: novas paisagens artísticas que surgem sobre alicerces do passado

Por Silvio Dworecki, livre-docente pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e artista plástico

 06/03/2024 - Publicado há 2 meses
Silvio Dworecki – Foto: Ricardo de Vicq via @silviodworecki/Instagram

 

Eu costumava passar pelas lojas de turismo na Avenida São Luís e pedir cartões-postais. Fazia assim minha coleção de navios e aviões. Havia amigos que demonstravam pendores para o design e desenhavam carrinhos, aviões. Eu não estava interessado nestes artefatos nem em viajar. Estava povoando minha imaginação que já era voltada para a arte.

Meu percurso começava na escola Caetano de Campos onde eu estudava. Estávamos nos anos 1960. Depois o trajeto aumentou. Continuava na São Luís, lindamente arborizada, com seus prédios rentes à calçada, e virava à esquerda na Xavier de Toledo em direção à sala de arte da Biblioteca Mário de Andrade. Tenho lembrança de que era redonda com móveis de madeira escura. Ficava folhendo livros de arte, portanto, com muitas figuras.

Estas foram as minhas primeiras aulas de história da arte. Aos aviões e navios se somaram a monstros de Bosch e retirantes de Portinari. Estes passeios se davam ao cabular aulas — o que leva a crer que minha primeira aproximação com a arte foi através da transgressão, uma pequena transgressão. Quando já rapaz, podia sair à noite, tomar um gin fizz e ouvir jazz de New Orleans com Tito na clarineta no comando da Traditional Jazz Band, na Galeria Metrópole, também na Avenida São Luís. Isto para dizer das lembranças que voltaram ao ver esta mesma avenida da janela do Espaço República, um espaço de ateliês coletivos e individuais.

Diziam que no começo do século 20 houve um movimento, de inspiração socialista, a que se dava o nome de Casa dos Artistas. Eram casas espalhadas pelo território europeu, onde os artistas que ali chegassem, de qualquer nacionalidade, teriam abrigo e a possibilidade de trabalhar em sua arte. Quem pesquisar hoje sobre essas Casas terá muita dificuldade de encontrá-las, a ponto de questionar se de fato existiram. Mas tendo existido ou não, nos faz lembrar de que há muitos modos de ensinar, de aprender e fazer arte. E que há muitos modos de se relacionar para fazer arte.

Podemos traçar uma linha evolutiva dos modos de associação e mostrar como, a cada momento da história, se deram o ensino, a aprendizagem e as associações entre artistas. Como estes aprenderam a fazer arte apesar da ressalva feita por Mário de Andrade de que “arte não se ensina.” Nesta linha encontramos o artista em começo de carreira recebendo ensinamentos no ateliê do seu mestre. Com este padrão há inúmeros exemplos, e podemos nos lembrar das obras de Rembrandt que não foram autenticadas pois foram feitas por seus assistentes. Mais recentemente podemos falar em ateliês coletivos tanto para aprender como para produzir arte.

Há espaços frequentados por vários artistas que são loteados, como eram os do Royal College of Art nos anos 1970, e que periodicamente eram visitados por um mentor, tutor ou professor. Lembrando de “loteamento”, nos mesmos anos 1970, há que se lembrar do salão Jovem Arte Contemporânea-JAC proposto e realizado pelo professor Walter Zanini, então diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP. Ali, o piso mereceu delimitações, desenhando lotes, e um sorteio para indicar qual lote seria destinado a cada artista. Enquanto acontecia o salão, todos os artistas faziam seu trabalho simultaneamente em seus lotes, com a exceção de Circe Bernardes, que se deslocava encenando a Mona Lisa. Com relação à proposta vanguardista de Walter Zanini, cabe lembrar que o procedimento de produção de arte horizontal, colaborativa e experimental só veio a se concretizar muitos anos depois.

Com propostas deste mesmo teor é marcante a presença de alguns colégios de ensino médio que, nos anos 1960, pautavam pela liberdade na formação de jovens. Onde a arte tinha papel marcante e ser experimental era a tônica de seus procedimentos educacionais. Um deles foi o Colégio de Aplicação da USP. Ali, deram aula a atriz Maria Alice Vergueiro e Fabio Magalhães, que veio a dirigir o Museu de Arte de São Paulo. Já o Colégio Vocacional Oswaldo Aranha, da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, afirmava que estes resultados são provenientes da “liberdade concedida ao aluno para eficiente desenvolvimento da responsabilidade pessoal”. Foi ali que Evandro Carlos Jardim, da área de artes, e Angelo Schoenacker, das artes industriais, pensavam na interação entre estas duas áreas.

Bom lembrar que muitos artistas surgiram daí. Depois de 1968, momento em que o AI-5, decretado pelo governo militar, deu um duro golpe na liberdade de expressão, estes colégios experimentais foram fechados. Estes são lembrados aqui pelo papel relevante que a arte pode ter na formação de cidadãos e no surgimento de novos artistas.

O pintor e artista plástico Rodrigo Andrade incentivou, na periferia, a criação de algo que veio a ter o nome de Ali: Leste. “Propus para o pessoal, para a gente fazer um grupo, para pintar lá na quebrada e tudo mais. Porque também os artistas lá, todos já eram artistas. Só que artistas muito do picho, muito da pichação e do grafite. Mas eles não largam o muro por nada.” A partir daí criou-se um grupo com o modo de produção horizontal. Desde o início sua atividade constante é a pintura ao ar livre. Seu território, a Zona Leste. Um fato que quebrou o gelo e permitiu uma integração muito grande entre Rodrigo e os moradores da periferia foi a parceria com Link Museu, que pinta muros e que passou a pintar telas com o surgimento deste grupo.

Ali: Leste tem os núcleos de audiovisual, de cinema, fotografia e vídeo. Mas atividade constante só se encontra no núcleo de pintura — daí que os recursos são provenientes de venda das obras. Rodrigo acrescenta: “Apesar de eu coordenar, quem chama as pessoas, quem conhece os artistas que surgem na quebrada é o Link e o Evandro. Eles é que chamam as pessoas. O Link é um pichador de referência na Zona Leste. Assim como eu sou conhecido no meio de arte, ele é conhecido no meio de pichação”.

Outro exemplo de associação horizontal para fazer arte é a Galeria Reocupa da Ocupação 9 de Julho. Esta começou com o artista Nelson Félix, artista convidado da 33ª Bienal de São Paulo, quando quis expandir seu trabalho para outros espaços. Sua obra se assemelhava a uma rosa dos ventos que apontava para as quatro direções. Daí ele ter associado alguns pontos do planeta para que ali ocorressem acontecimentos. E a Ocupação 9 de Julho foi um dos escolhidos. A partir daí surgiu a ideia de fazer ali uma galeria. Uma galeria que possa, inclusive, gerar renda para o movimento.

A Ocupação 9 de Julho é talvez o espaço onde mais floresceu, ou onde ficou mais nítida, a colaboração entre artistas e movimentos sociais. Carmen da Silva Ferreira, a figura de maior destaque da Ocupação 9 de Julho, tem uma atitude de acolhimento em relação à arte, aos artistas, fato que contribuiu para a instalação da Galeria Reocupa no interior da Ocupação, que já mostrou nomes de peso da cena das artes visuais brasileiras como Adriana Varejão, André Komatsu, Ding Musa, Ernesto Neto, Nelson Félix, Nuno Ramos, Rivane Neuenschwander e outros. O aporte da Galeria para a Ocupação tem sido valioso.

Tanto os Colégios de Aplicação e Vocacional, quanto o Salão da Jovem Arte Contemporânea, tanto o Ali: Leste quanto a Galeria Reocupa são movimentos que aglutinam seus participantes de forma horizontal, participativa e experimental. Estão construindo novas paisagens plantadas sobre alicerces do passado e que se dirigem na direção de novas estruturas… que ainda sequer imaginamos, mas que supomos solidárias, como a Arte.
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